Os perigos da intolerância e da ignorância
04 agosto 2022 às 17h27
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por Ycarim Melgaço*, especial para o Jornal Oção
Somos seres emocionais, imbuídos de cultura e influenciados pelo meio social do qual provém a opinião pública. E, como pano de fundo, destacam-se a liberdade de expressão e a democracia, integrantes sólidos de sociedades mais avançadas politicamente.
No entanto, a partir do advento das redes sociais, no campo dos negócios públicos, políticos e adeptos têm explorado essas mídias tecnológicas com o propósito de esparramar notícias inverídicas, falsas, gerando uma overdose de ódio e desinformação que se espalha rapidamente na sociedade. Essa intolerância provocada por divergências de opiniões e rompantes de fúria vem crescendo em proporções inimagináveis, algumas vezes até resultando em violência física ou em morte.
Em ano eleitoral no Brasil, observa-se que os ânimos vão ficando bastante acirrados frente a uma população exaltada, propiciando um ambiente de muitas discórdias, as quais são fontes primárias dessa intolerância. É como se o ódio ficasse cristalizado à flor da pele de certas pessoas, bastando apenas um simples motivo para ser externado. Acrescente, a esse clima hostil, a ignorância.
O termo ignorância, em sua primeira acepção, refere-se ao que ignora ou desconhece algo. Sua origem está ligada ao verbo ignorar, do latim ignorare, mas, aqui, está empregado apenas para esboçar o início de uma interminável discussão, cujo objetivo é entender o comportamento emocional das pessoas perante a junção de ignorância e intolerância e as repercussões de atos delas provenientes.
Assim, preocupado ao ver atitudes recentes de agressividade entre pessoas de ideias divergentes, sobretudo em questões políticas, assumi a missão de tentar chegar a um mínimo de compreensão sobre o alcance dessas duas palavras aterrorizantes: ignorância e intolerância. Para tal empreitada, trouxe para análise alguns filósofos e sociólogos da área específica do campo da ciência cognitiva.
Marilena Chauí, por exemplo, associa ignorância ao conhecimento do senso comum, popular, ingênuo, assistemático. Segundo a filósofa, “ignorar é não saber alguma coisa. A ignorância pode ser tão profunda que sequer a percebemos ou a sentimos, isto é, não sabemos que não sabemos e não sabemos que ignoramos”.
Segundo Michael Smithson, autor do livro Ignorância e Incerteza, a ignorância é um tópico negligenciado no estudo da vida social e, por isso, sofre vários tipos de problemas conceituais. Mais relatos convencionais desse fenômeno a colocam em condição marginal ou mesmo a um status totalmente negativo (geralmente em referência a uma condição supostamente destrutiva, provocando consequências para a interação humana ou para o funcionamento mental).
É possível até falar de uma ignorância ingênua, quando o indivíduo chega ao ponto de não saber que não sabe. E o pior: não tem culpa de não saber. Ou seja, não sabe, ignora por falta de instrução ou por cegueira física ou mesmo mental, como surdez, inteligência insuficiente, moralismo, fanatismo, e por aí vai…
Efetivamente, tende-se a considerar a ignorância tão somente como falta de educação, de cultura geral ou de conhecimento de qualquer tipo. Aqui não se trata especialmente desse tipo de acepção, como a usada por aqueles que não sabem muito bem de determinado assunto, e, no sentido popular, deflagram a palavra burro. Nem irá ser tratado aqui da relação entre o saber e o não saber, tema já discorrido por Nicolau de Cusa em sua preciosa obra A Douta Ignorância, escrita entre 1438 e 1440, demonstrando que, quanto mais sábia for uma pessoa, mais ela reconhecerá sua ignorância.
Com efeito, nenhum outro saber mais perfeito pode advir ao homem, mesmo ao mais estudioso, do que se descobrir sumamente douto em sua ignorância, que lhe é própria, e será tanto mais douto quanto mais ignorante se souber.
A realidade absoluta das coisas, que é infinita, permanece eternamente incognoscível à razão finita dos homens. É o saber de seu não saber que permite, portanto, que o ser humano construa, de forma progressiva, o conhecimento. Aqui é possível perceber a humildade de uma pessoa quando ela reconhece sua própria ignorância em certas situações.
Assim, embasada em tais pressupostos, a ignorância inicia-se a partir de algo que deveríamos saber, mas não sabemos, uma trajetória pela qual deveríamos ter percorrido, mas acabamos não a realizando. Então, a ignorância abandona seu significado passivo para ter um significado ativo, que implica não reconhecer algo ou agir como se não fosse conhecido.
Prosseguindo com Smithson, o principal problema conceitual da ignorância decorre da suposição de que a ignorância consiste simplesmente na ausência ou distorção de conhecimento verdadeiro. Subjacente a essa suposição, destaca-se uma ingênua e absolutista epistemologia que sustenta sempre haver apenas uma maneira correta de pensar sobre qualquer coisa, como se houvesse uma única e definitiva resposta para algum questionamento. A própria ciência transmuta de um lado a outro diante de novas descobertas, que, no caso da Medicina, podem, inclusive, alterar tratamentos.
Baseando-se em análises, ainda citando Smithson, a ignorância é construída socialmente e permeia a vida social de maneiras cruciais. Assim como as pessoas são socializadas para aceitar e manter certas visões da realidade, também elas são socializadas contra a manutenção de outros pontos de vista específicos ou mesmo para atender a partes específicas do mundo.
Nesse contexto de análise sobre a ignorância, vale muito a pena citar algumas das reflexões de Lenin Bárbara, em sua tese de doutorado (USP), na qual afirma: “Antes de ser um fardo, uma bênção ou um insulto, a ignorância ou desconhecimento é um fato humano incontornável, decorrente da condição de que só nos é dado conhecer a realidade à nossa volta de modo parcial e fragmentário”.
Por isso, assegura Lenin: “Superar ou deixar para trás a ignorância em definitivo é um projeto fadado a se converter ou em autoengano ou em frustração, e a vida em sociedade é marcada por essa situação. Construímos estereótipos dos coabitantes do nosso mundo social, para saber o que fazer diante dos outros, sem precisarmos, antes de agir, conhecê-los a fundo”. Complemento essas observações chamando atenção para o fanatismo observado em certas pessoas que soltam suas fúrias sem saber o que representam de fato.
A ignorância alimenta a intolerância
Não é de hoje que a humanidade enfrenta a intolerância. Lá no século XVI, período marcante das guerras religiosas, católicos e protestantes já estavam se estranhando, daí a necessidade da tolerância religiosa. Já pelos idos do século XX, tivemos a ideologia de superioridade de raças, e o nazismo, na Segunda Guerra, apodera-se desse terrível discurso para dominar o mundo, ampliando a intolerância. Os campos de concentração são as maiores demonstrações dos horrores desse período.
O filósofo austríaco Karl Popper (1922 a 1936) escreveu O paradoxo da tolerância, inserido no livro A Sociedade Aberta e os Inimigos. A palavra paradoxo tem o sentido de falta de nexo, de lógica ou de contradição. Todo o livro é uma defesa da sociedade aberta e pluralista.
Segundo Popper, é comumente aceito em nosso tempo que, para uma sociedade ser justa, deve permitir ideias divergentes, bem como liberdades de expressão e de opinião e, para isso, precisa praticar a tolerância. Assim, a tolerância é entendida como a aceitação de ideias ou de ações vindas de pessoas das quais discordamos. Até aí, tudo bem! Mas, há um problema nessas proposições, alertadas por Popper, ao aceitarmos toda a diversidade de opinião com a qual não concordamos, o que dizer de pessoas resistentes que não querem aceitar as opiniões de quem elas discordam? Devemos tolerá-las?
O paradoxo de Popper surge quando ele defende sua posição, dizendo que, se permitirmos tolerância ilimitada, a intolerância usará sua liberdade para atacar a tolerância e destruí-la. E não é o que se quer.
Popper não pretende que as silenciemos ou as censuremos, mas que as combatamos com argumentos razoáveis, passando por essa tentativa pacífica, assegurava o autor. No entanto, dizia que deveríamos “ter o direito de ser intolerantes (até mesmo violentamente!), caso essas pessoas não estivessem prontas para um debate ou se recusassem a um diálogo em nível racional e mesmo em níveis legais”. Aí, por fim, o jeito é ir mesmo pro cacete!
Ainda sobre a intolerância, o professor de Ciência Política da Universidade Autônoma de Madri, Fernando Vallespín, traz uma afirmação pontual ao ressaltar que a cultura liberal não está funcionando. Para o professor, há eleições, há partidos políticos, há enfrentamento entre partidos, no entanto, há algo mais intangível que está falhando: exatamente a tal intolerância.
Nesse caso, há relação com a dificuldade de compreender que, para sermos capazes de ver um mundo minimamente compartilhado, precisamos praticar a tolerância.
O problema é quando um limita a liberdade de expressão do outro, ocasionando uma falta de respeito pelo interlocutor. Creio que estamos perdendo de vista o significado da tolerância. Além daquelas querelas ideológicas, o Brasil ainda possui tímidas políticas de reconhecimento da mulher, do afrodescendente, dos grupos LGBTs, dos territórios quilombolas, de territórios indígenas, etc.
Portanto, essas definições acerca da ignorância seguida pela intolerância acendem um alerta para algumas particularidades no mundo e no Brasil de hoje. A situação torna-se mais evidente sobretudo nesse período de aproximação das eleições, isto é, as pessoas não admitem a ignorância e saem de forma truculenta batendo nos inimigos. Em outras palavras, a população sofre influência de ideologias responsáveis por sua maneira de pensar, abrindo um amplo caminho para a intolerância. Em muitas circunstâncias, as pessoas reproduzem o discurso da classe política sem saber o real significado das coisas.
Nessa perspectiva da ignorância, aflora a oportunidade de esclarecer um dos assuntos mais polêmicos no Brasil na época atual: as ideologias de esquerda e de direita. Os dois vocábulos, que se pressupõem antagônicos, têm sido empregados largamente no senso comum, gerando muito atrito entre as divergências ideológicas. O uso indiscriminado desses termos no pós-Guerra Fria omite a realidade dos fatos, incluindo uma adjetivação sem fim, como na utilização de termos como esquerdopatas, coxinhas e outros nessa linha. Percebe-se aí uma douta ignorância. E bota ignorância nisso!
Se buscarmos na história, observa-se que a divisão entre as alas esquerda e direita tem origem na França de 1789 e no subsequente Império de Napoleão Bonaparte. Os partidários do rei sentavam-se à direita do presidente da Assembleia; e os simpatizantes da revolução ficavam à sua esquerda. Pronto: esquerda e direita!
Particularidades brasileiras
A história recente traz um revés e, com isso, tem embaralhado as divergências entre esquerda e direita. Na verdade, desculpem-me pela franqueza, é necessário deixar de lado a cegueira ideológica para tentar entender de uma vez por todas que os discursos propalados de uma tal esquerda e de uma determinada direita não passam de utopias armadas para alcançar o poder. Exatamente ele: o atraente Poder.
O pior é que a população engole essas matrizes ideológicas cegamente, chegando ao ápice de uns se degladiarem com outros em defesa de algo aparentemente correto. Esses termos, direita e esquerda, não passam de figuras pictóricas criadas por partidos políticos, quase todos entrelaçados a uma estrutura corrupta e sistêmica que abocanhou o país desde longa data e que, por um tortuoso caminho, mantém falsos ideais, carregando-os em suas bandeiras políticas. Isso é tão evidente que as alianças, nos últimos anos no Brasil redemocratizado, expõem os arranjos e interesses das forças econômicas que dominam este país.
Vivemos no Brasil, em grande parte a partir de 2018, a transformação da esquerda em inimigo mortal do país, assiste-se a um retrocesso da bipolaridade dos tempos de Guerra Fria. Essa tal esquerda, um produto elaborado para disseminar ódio, ao ser radiografada, apresenta evidentes sinais que a aproxima dos discursos de direita.
Identifica-se, então, o populismo, o velho e tão conhecido populismo latino-americano, exemplo dos recentes governos latino-americanos de países, como Argentina, Equador, Venezuela e México. Aparecem traços de políticas de mercado liberal (aliás, a esquerda liberal), demonstração de ligações próximas aos mercados financeiros e com propostas de apoio a grandes grupos empresarias, como as gigantes indústrias da carne e da construção civil. Portanto, entender a verdadeira realidade exige conhecimento das pessoas, mas, como elas se encontram hipnotizadas, isso vai ficando quase impossível. Interesses de cá e de lá manipulam e seguem incólumes em seu curso.
Portanto, essas ideias de esquerda e de direita estão muito distantes de uma verdadeira esquerda revolucionária, aliás, como pregava o economista político Karl Marx com a revolução proletária.
Vou ser franco: é mais do mesmo, ou até, em certas circunstâncias, muda-se para ficar do mesmo jeito. Existem formas distintas de manipulação, nas quais se percebe facilmente a força da ignorância, ou seja, o total desconhecimento de candidatos à presidência no Brasil no processo de redemocratização.
Podemos começar com o presidente, cujo grande lema de campanha foi o de ser o caçador de marajás. Trata-se de 1989, depois de 25 anos de regime de exceção. Esse super-homem jurou acabar com os marajás no Brasil. Seu discurso criou o inimigo do povo, ou seja: os funcionários públicos com altos salários. Convencendo boa parte da população, sentou na cadeira do palácio, mas terminou atropelado no meio do mandato pela própria caça, e seu tesoureiro mor teve aquele fim trágico, isto é, foi suicidado juntamente com sua amada.
Depois, novas promessas ressurgem, despontando o professor da melhor universidade do país, um sociólogo burguês, mas continuamos mergulhados em altos índices de analfabetismo. É bem verdade que a educação superior virou uma indústria altamente lucrativa: “quem quer diploma?”.
Em seguida, a esquerda parecia realmente chegar ao poder através do tão cobiçado voto, na pessoa de um ex-líder sindical. Mas, a festa durou pouco, pois logo o ex-operário fez alianças com o sistema financeiro a partir da nomeação de representante do sistema financeiro para o Banco Central. Diria eu: a raposa vigiando o galinheiro. E como tem gente que ignora esses fatos!
A primeira presidenta do país, uma ex-revolucionária, ou guerrilheira, como diriam os milicos, deu o ar da graça, mas não suportou a pressão das ratazanas e… deram o fora nela!
Para 2018, do nada, aparece um candidato de pouca expressão, mas a rebeldia era seu traço maior. Exaltado e pior, revestido de militar frustrado, faz questão de mostrar o símbolo fálico, a metralhadora, e traz de volta ao cenário político a Guerra Fria. Prometa acabar com ela: a tão malvada corrupção. Aliás, odiada por uns e adorada por outros poucos aproveitadores.
Nesse intuito, nomeia para o Ministério da Justiça nada mais nada menos que o mais famoso xerife do país, um forte candidato a lampião do século XXI, responsável pelo enjaulamento de empresários, de políticos e de um ex-presidente. O resto da história vocês já sabem… a volta da polaridade entre as ideologias de esquerda e de direita e muita porrada no palco.
O pior de tudo isso é que a opinião pública não vem do resultado de um pensamento crítico, reflexivo, tampouco é fruto de opinião própria das pessoas. Geralmente, não somos educados para pensar. Eis, então, a questão! Sofremos influências do meio, dos discursos e das narrativas muito bem-elaboradas por agências de marketing para atender aos políticos e ao interesse pelo poder, o qual, mais do nunca, está sendo reforçado pelas mídias tecnológicas.
Desculpem-me pela franqueza, mas algo precisa ficar bem claro: os poderosos deste país de berço esplêndido não vão permitir que um governo, seja de direita, seja de esquerda, promova políticas públicas para contemplar a distribuição de renda ‒ algo tão grave no Brasil. No máximo, haverá uma bolsinha família ali e uma rendinha mínima acolá para que os pobres não terminem em uma cova rasa. Quanto aos bancos, melhor nem tratar desse tema. Reforma agrária oferecendo terra e apoio ao pequeno produtor: nem pensar! Educação pública de qualidade desde o fundamental: utopia pura! Saúde, tente o Sistema Único de Sáude (SUS) e reze, mas comece rápido para conseguir atendimento em tempo. A fila é longa e a vida vale ouro! Lembre-se: atualmente o que vale por aqui é pop, é soja, é milho e é sugar.
O restante da história, bem, é puro lirismo em meio ao escaldado de ignorância, temperado com bastante intolerância entre os irmãos. Ah! Mais uma dúvida: será que ainda somos abençoados por Deus?
*Ycarim Melgaço é doutor em Geografia Humana na USP, pós-doutor em Economia na Unicamp, pós-doutor em Administração de Organizações na FEARP-USP, e professor do MDPT PUC-GO,