por Ycarim Melgaço, especial para o Jornal Opção*

Dubai | Foto: Reprodução

Desde tempos remotos, Dubai se estende sobre as areias de um deserto, onde o sol brilha intensamente durante todo o ano, onde tribos nômades fizeram dali o seu lar e onde pescadores de pérola negociavam seu sustento. Nesse mesmo lugar, posteriormente, houve a descoberta do ouro negro, transformando-se na grande riqueza de muitos países árabes.  

Essa cidade-estado também pertence aos Emirados Árabes Unidos, nas proximidades do Golfo Pérsico, e vem sendo destino bastante conhecido e muito procurado por turistas e investidores do mundo todo. Essa fama surgiu a partir do que poderia ser considerado um projeto de urbanização estruturado sob a concepção de urbanização nos moldes empresariais ou, em outras palavras, um megaprojeto estratégico de urbanização.

Na década de 1990, esse megaprojeto foi concebido como modelo de cidade turistificada, em face da queda das receitas petrolíferas, pois Dubai não detém grandes reservas de petróleo e gás em comparação com as de seu vizinho, o outro emirado Abu Dhabi. Assim, seu líder máximo, o sheikh Mohammed bin Rashid Al Maktoum começou a procurar novas formas de investimentos. E o setor imobiliário passou a ser, portanto, a melhor opção.

Desde então, iniciou-se o projeto da Dubai sedutora, com seus megaempreendimentos estendidos sobre as areias quentes do deserto. A cidade, com o maior número de guindastes do mundo, expõe um grande mosaico de superlativos, ergue dezenas de novos edifícios residenciais, o maior shopping do planeta, modernos museus, ilhas artificiais e inúmeros arranha-céus, incluindo-se aí o maior do mundo: o Burj Khalifa.

Dubai vai desafiando as próprias leis da natureza, seguindo seu percurso de autoridade monumental e transformando-se em disputado cartão-postal para encantar turistas de todos os confins do planeta. Nesse ritmo de construções, o desenvolvimento imobiliário tem sido uma importante fonte de renda para Dubai, ao atrair capital estrangeiro e pessoas ricas de todo o mundo.

À primeira vista, para o turista, Dubai salta aos olhos de qualquer incrédulo. Todo o encanto desse lugar mágico começa logo ao desembarcar na principal porta de entrada da cidade, o moderno Aeroporto Internacional de Dubai, que está entre os maiores e mais movimentados do mundo.

Em 2019, antes dos impactos da pandemia de Covid-19, segundo a Dubai Tourism, a cidade recebeu 16,73 milhões de visitantes. Ao comparar com o Brasil, um país continental, por exemplo, a diferença é vergonhosa, uma vez que se atingiu, em solo brasileiro, a cifra de pouco mais de 6 milhões de turistas no mesmo período, segundo dados do Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur).

E, nesse quesito turismo, Dubai segue na poli, muito embora tenha sofrido com perdas em razão da Covid-19, mas aos poucos já começa a recuperar a economia de bens e serviços relacionados à cadeia turística.

Com o intuito de fortalecer o projeto estratégico de urbanização empresarial de Dubai, uma das medidas adotadas foi modernizar a empresa aérea oficial, a Emirates, tornando-a arrojada e, mais do que isso, imponente, disponibilizando a maior frota (100 aeronaves) do maior avião de passageiros do mundo, o A380. Isso exemplifica o poder da Emirates frente às tradicionais empresas de aviação. Essa situação amplia o ar de grandeza que integra o perfil das obras monumentais de Dubai. Diante desse cenário com muitos atrativos, esse emirado vem recebendo mais turistas ano após ano, embalados na imagem de lugar espetacularizado, semelhante ao dos parques temáticos da Disney.

Por ser empolgante e atraente, Dubai, com certeza, pode ser considerada modelo turístico de sucesso. Entretanto, os milhares de visitantes que desembarcam ali anualmente não imaginam que, exatamente nessa majestosa e eletrizante cidade, se esconde um dos mais importantes hubs de lavagem de dinheiro do mundo, sendo um verdadeiro paraíso fiscal na Arábia para onde se destina muito dinheiro ilícito de traficantes, corruptos e terroristas.

Chegaria a afirmar, sem pestanejar, que estamos diante de duas Dubais: uma é a mais conhecida dos folders de todas as agências de turismo do mundo; e a outra Dubai, a do dinheiro sujo, originado de atividades escusas.

Enquanto a grande maioria das empresas de cunho financeiro, comercial e imobiliário de Dubai aparentemente não está associada a atividades ilegais, a outra parte do empresariado que sustenta a prosperidade da cidade tem sua origem no constante fluxo de receitas provenientes da corrupção e de crimes oriundos de várias partes do mundo. A riqueza ajudou a alimentar o setor imobiliário em rápida expansão na cidade do deserto e a enriquecer banqueiros, cambistas e elites empresariais, podendo, assim, transformar Dubai em um importante centro de comércio de ouro. Aliás, o ouro que brilha naquelas bandas desperta o interesse dos mais diversos tipos de investidores.

Afinal de contas, como é que Dubai se desponta como hub de lavagem de dinheiro e um verdadeiro paraíso fiscal? Os dados apurados provêm de entidades de combate à lavagem de dinheiro e a outras formas de crime financeiro no mundo, algumas delas, inclusive, sem fins lucrativos, por exemplo, o Center for Advanced Defense Studies (C4ADS), com sede em Washington, nos Estados Unidos da América (EUA); a E24, agência financeira sediada na Noruega; o The Tax Justice Network (Rede de Justiça Fiscal), de Londres, Inglaterra, que explora os sistemas tributários e financeiros como ferramentas para uma sociedade mais justa e analisa a lavagem de dinheiro; a Transparência Internacional, em Berlim, Alemanha, movimento global que trabalha em mais de 100 países no combate à corrupção; e o International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ), consórcio internacional de jornalistas investigativos, em Washington, EUA.

Ainda nesse rol do combate à lavagem de dinheiro, incluem-se importantes órgãos internacionais, entre eles: o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Grupo de Ação Financeira (GAFI), ou, em inglês, Financial Action Task Force (FATF).

O GAFI é o órgão de vigilância global contra a lavagem de dinheiro e o financiamento ao terrorismo. Pertence ao Grupo dos Sete (G7), uma organização de líderes de algumas das maiores economias do mundo: Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e Estados Unidos; a Rússia foi suspensa, anteriormente tratava-se, então, do G8.

Na luta contra paraísos fiscais e lavagem de dinheiro, essa teia global de entidades chegou a Dubai, nos Emirados Unidos. Inicialmente, houve informações gravíssimas baseadas em vazamento de dados imobiliários, os quais revelavam o número de investidores estrangeiros na aquisição de imóveis por lá. Esses dados datam de 2020, obtidos pelo C4ADS, em seguida, foram compartilhados com a norueguesa E24, que coordenou uma investigação sobre os bens imobiliários.

O relato desse vazamento possibilitou a primeira visão pública acerca de quem havia adquirido propriedades nesse importante centro financeiro do Oriente Médio, haja vista que esse documento expõe nomes dos investidores, algo quase impossível em se tratando de Dubai, em face da não obrigatoriedade de o adquirente informar seu nome, colocando, então, a razão social de empresas como pessoa jurídica.

Nessa fase inicial da apuração, os jornalistas concentraram-se em nomes europeus constantes da lista, quando sobreveio a grande surpresa:  diversos proprietários de imóveis em Dubai são acusados, condenados por crimes ou, ainda, encontravam-se sob sanções internacionais. O documento apresentado pelo C4ADS inclui mais de 100 membros da elite política russa, funcionários públicos ou empresários próximos ao Kremlin.

Nesse campo de veias abertas, de acordo com The Tax Justice Network, “Dubai é uma das jurisdições offshore mais secretas do mundo, principalmente devido à falta de transparência financeira. O grupo de defesa classifica os Emirados Árabes Unidos, e principalmente Dubai, como um dos dez maiores facilitadores do abuso fiscal corporativo e de sigilo financeiro no mundo, em razão de Dubai não perguntar e não colocar resistência às regulamentações comerciais e financeiras, dessa forma, atrai grandes fluxos de capital e alguns dos mais famosos criminosos do mundo”.

Pesquisadores, no total dez professores de renomadas universidades de vários países, publicaram, em 2020, o livroDubai’s Role in Facilitating Corruption and Global Ilicit Financial Flows, que aborda, de forma profunda, as transações financeiras de lavagem de dinheiro identificadas em Dubai, chegando a listar os setores em que se realizam esse procedimento ilícito.

Segundo dados levantados nessa pesquisa, atores corruptos e criminosos de todo o mundo operam através ou a partir de Dubai. Senhores da guerra afegãos, mafiosos russos, cleptocratas nigerianos, lavadores de dinheiro europeus, destruidores de sanções iranianas e contrabandistas de ouro da África Oriental, todos consideram Dubai o lugar ideal para lavagem de dinheiro e transações financeiras.

Os caminhos para a lavagem de dinheiro percorrem certos setores: o mercado imobiliário de Dubai, por exemplo, como já exposto anteriormente, integra um deles, pois é um ímã para dinheiro contaminado. E haja contaminação! Promotores e agentes imobiliários, aliás, aceitam muitas pessoas politicamente expostas, indivíduos encarregados de função pública proeminentes em seus países, bem como suas famílias e seus correligionários — e outros compradores suspeitos. Mesmo indivíduos visados por sanções internacionais usam propriedades em Dubai para lavar dinheiro por conta de seu fraco regulamento e frouxa fiscalização.

No colossal mercado imobiliário de Dubai, segundo dados divulgados pela Transparência Internacional, as transações, em 2019, em investimentos atingiram a cifra de US$ 21,7 bilhões por meio de 41 mil transações imobiliárias de mais de 31 mil investidores de todo o mundo. Essa cifra gigantesca provém do forte sigilo do setor imobiliário e ainda de suas taxas adotadas próximas de zero, ou seja, está instalado ali o ambiente ideal para lavagem de dinheiro. Portanto, Dubai dispõe de jurisdição altamente atraente não apenas para investidores ricos (cerca de 5 mil milionários se estabeleceram nos Emirados Árabes Unidos no ano de 2017), mas também para corruptos e outros criminosos de todo o mundo.

Uma infinidade de casos mostrou como imóveis de alto padrão em Dubai oferecem uma oportunidade para despejar grandes somas de dinheiro sem revelar sua origem. Dubai foi apontada, ainda segundo a Transparência Internacional, como um local de destaque para nigerianos politicamente expostos em seus países comprarem propriedades de luxo. Um vazamento de dados, por exemplo, revelou o número de 800 propriedades avaliadas em US$ 400 milhões, vinculadas a 334 pessoas públicas desse país, bem como a seus familiares e a outros suspeitos.

O mesmo vazamento de dados também apontou seis pessoas públicas da Armênia como proprietárias de vários apartamentos de luxo em Dubai. Um deles, membro do Parlamento, possui um apartamento no valor de aproximadamente US$ 350 mil. No entanto, o salário mensal era de apenas US$ 1.350.

O ouro entra também no processo de lavagem de dinheiro. Dubai, um dos maiores centros de ouro do mundo, é mercado principalmente para a lavagem artesanal da extração de ouro, muito conhecida no Brasil: a do garimpo. O ouro sai da África, chega a Dubai e se esparrama por muitos destinos mundo afora. Vale ressaltar que o ouro é − e continua sendo − uma das commodities mais importantes usadas para lavar outros fundos ilícitos. Isso ocorre, em parte, por causa de seu alto valor em peso, sua fácil portabilidade e, ainda, pela existência de mercados globais com excelentes compradores e ótimos preços. Em razão disso, torna-se um componente-chave do sistema global de lavagem de dinheiro.

No século XXI, Dubai emergiu rapidamente como um dos principais pontos focais no comércio ilícito de ouro e lavagem de dinheiro. Muitos autores que se concentraram na produção de ouro africano focaram quase exclusivamente em Dubai como mercado de exportação do ouro africano.

Essa abordagem, no entanto, é falha porque o país não possui mineração credenciada pela London Bullion Market Association (LBMA), principal centro negociador de ouro de Londres. Portanto, o ouro de Dubai deve ser reprocessado em outros países para entrar na cadeia de valor global, independentemente de sua procedência. Assim, o comércio África-Dubai não pode ser visto isoladamente, mas sim como parte de uma rede mundial que atravessa a Ásia, a Europa e o Oriente Médio.

Por fim, existem, ainda em Dubai, zonas de livre comércio com mais de 30 dessas áreas, as quais operam com supervisão regulatória mínima ou fiscalização alfandegária quase míope. Assim, essas zonas permitem que as empresas disfarcem os produtos do crime por meio de superfaturamento e subfaturamento de mercadorias, faturamento múltiplo e falsificação de outros documentos comerciais. Um verdadeiro paraíso fiscal aberto ao mundo da legalização de capitais de diversas partes do mundo.

Mais recentemente, em março de 2022, o GAFI, com sede em Paris, colocou os Emirados Árabes Unidos em sua lista cinza, uma das duas classificações usadas pelo órgão intergovernamental para nações determinadas como tendo deficiências estratégicas. A designação é potencialmente o passo mais significativo dado pelo GAFI em sua história de três décadas, dada a posição dos Emirados Árabes Unidos como centro financeiro regional. A organização, criada pelo G7, tem cerca de duas dúzias de países sob vigilância de lavagem de dinheiro.

Em 1990, para atingir seus propósitos, o GAFI tomou uma decisão avançada no combate à lavagem de dinheiro no mundo, estabelecida mediante quarenta recomendações, as quais foram revisadas em 1996, com alinhamento às novas tipologias de lavagem de dinheiro inseridas no denominado padrão internacional de combate à lavagem de dinheiro.

Com mais de 200 países e jurisdições comprometidos em implementá-las, essas recomendações ajudam as autoridades a ir atrás do dinheiro de criminosos que traficam drogas ilegais, fazem tráfico de pessoas e cometem outros crimes. O GAFI também trabalha para interromper o financiamento de armas de destruição em massa.

Esse mesmo órgão analisa as técnicas de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo e fortalece continuamente seus padrões para lidar com novos riscos, como a regulamentação de ativos virtuais, que se espalham à medida que as criptomoedas ganham popularidade. O GAFI monitora os países para garantir que implementem os padrões estabelecidos pelo órgão, de forma completa e eficaz e, também, responsabiliza os países que não os cumprem. Aqui estamos falando exclusivamente de Dubai.

O braço antilavagem de dinheiro dos Emirados Árabes Unidos, por sua vez, reiterou seu compromisso de trabalhar com o GAFI para levar adiante o plano de ação. O fato de Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, estar na lista cinza é um revés no momento em que enfrenta maior concorrência da vizinha Arábia Saudita, que está aumentando seus mercados financeiros e tomando medidas para atrair mais investimentos.

Outras informações sobre lavagem de dinheiro em Dubai são embasadas pelo relatório do FMI, de 2021, no qual se descobriu que a lista cinza do GAFI resultou em “uma redução grande e estatisticamente significativa nos fluxos de capital”. As ações de combate à lavagem de dinheiro em Dubai podem ser difíceis de quantificar, uma vez que as empresas financeiras já podem abordar o país como uma área de maior risco.

O que acontece em Dubai – e nos Emirados Árabes Unidos, tendo em vista a presença de dinheiro sujo e sua legalização – é estrategicamente importante para os Estados Unidos e, certamente, para outros países saberem a procedência desses valores e, claro, muita sonegação fiscal corre solta. Ainda deve-se levar em conta que essa lavagem alimenta inimigos, como terroristas, e a Al-Qaeda constitui um exemplo.

Mais um detalhe a ser considerado nesse aspecto é o fato de Dubai estar entre os principais parceiros de comércio e segurança de Washington naquela região. Em particular, esse emirado tem estreitos laços históricos e comerciais com o vizinho Irã, que sofre sanções norte-americanas desde longo tempo, e muitas dessas atividades ilícitas têm consequências estratégicas para os Estados Unidos.

A Rússia é um exemplo mais recente de envolvimento com Dubai, na tentativa de superar as sanções pela invasão da Ucrânia. Assim, muitos negócios russos estão entrando em Dubai, além dos milionários que já passavam por lá para lavagem de dinheiro de corrupção.

*Ycarim Melgaço é doutor em Geografia Humana (USP), pós-doutor em Economia (Unicamp), em Administração de Organizações (FEARP-USP) e professor do MDPT-PUCGO

Na realidade, a lavagem de dinheiro corre solta mesmo em países ricos que combatem essa atividade. Desde Washington até a famosa city de Londres e seus vertedouros de atividades ilícitas, mas isso é assunto para outra conversa, que, aliás, será longa e repleta de surpresas.

Após essa triste história percorrida por Dubai no tocante à lavagem de dinheiro, denominada por alguns como paraíso fiscal das Arábias, o que dizer daquela famosa Dubai do encantamento turístico? Bem, essa continua seu caminho intacto, atraindo visitantes hipnotizados aos montes para visitar e conhecer o deslumbrante deserto forrado de grandezas arquitetônicas. E você? Vai visitar Dubai?