por Ycarim Melgaço*

Cruzeiro MSC Splendida | Foto: Reprodução

Vou falar sobre os navios de cruzeiro e a pandemia de Covid-19, mas, antes de adentrar na disseminação desse vírus nos navios de cruzeiro, vale a pena, de início, conhecer a história deste gigante setor do turismo e seus mistérios.

Os  navios de cruzeiros carregam um ar de muita magia e sedução, atuando com navios cada vez maiores e mais glamourosos, que parecem cidades flutuantes com seus parques temáticos. É o segmento do turismo que mais cresce. 

Uma curiosidade a ser ressaltada é que 1958 foi o último ano em que mais passageiros cruzaram o Oceano Atlântico de navio do que de avião, até esse período as viagens de um continente a outro eram realizadas  por navios de passageiros. Aliás, no início daquele século aconteceu a tragédia que virou lenda, o naufrágio do Titanic, em 1912, pertencente a uma das maiores empresas de navegação daquela época, a britânica White Star Line, que rivalizava com outra poderosa, a canadense Cunard, ambas dominando a navegação principalmente nas rotas entre a Europa e os EUA. 

Hoje, o modelo de negócio é radicalmente diferente e os navios de passageiros se transformaram em cruzeiros de lazer e entretenimento a bordo, perfazendo circuitos com tours de ida e volta. Assim, o lazer se consolida como o principal foco gerador de receita dessas gigantes empresas de navegação. 

Os navios de cruzeiro são imensos resorts de luxo, sustentados por toneladas de aço, emoldurados por apartamentos e espaçosas suítes, com suas majestosas sacadas nos muitos decks, com total cobertura de Wi-Fi e muitos, mas muitos turistas a bordo, desfrutando de diversificados entretenimentos, ou melhor, consumindo, pois estamos diante de um território direcionado ao consumo mesclado com variadas atrações: pistas de boliche, pistas de patinação no gelo, paredes de escalada, piscinas de surf, parques aquáticos com vários toboáguas, bungee-trampolins, enormes instalações de health club (saunas, jacuzzis e salas para aeróbica), planetário, gigantescas telas de led para filmes ao ar livre, simuladores de golfe, mesas de bilhar autonivelantes (giroscópio), cassino, shows e apresentações de espetáculos deslumbrantes, a propósito, alguns navios apresentam artistas do Cirque du Soleil. Agregue-se a isso uma farta gastronomia, distribuída nos restaurantes temáticos, de pratos internacionais para ninguém botar defeito!

Esse é um panorama dos famosos cruzeiros marítimos, que cruzam os mares e oceanos ao redor do planeta. Os navios de cruzeiro estão agora estabelecidos como um dos setores mais intensivos em serviços do mundo, com navios de última geração, cada vez maiores, construídos a cada ano, que acabam se parecendo com cidades, expondo sofisticados centros comerciais. O turismo de cruzeiros está se tornando uma “escolha de lazer” cada vez mais popular em todo o mundo, sendo possível considerá-lo mesmo como uma categoria massificada de Turismo. 

Segundo a CLIA (Cruise Lines International Association), a indústria global de cruzeiros é o setor que mais cresce no mundo do turismo, com mais de 50 linhas de cruzeiros e mais de 270 navios, no entanto, cerca de 75% do mercado é controlado fortemente por apenas três grandes empresas: a Carnival, a Royal Caribbean e a Norwegian Cuise Line, todas sediadas nos Estados Unidos, constituindo-se em um poderoso oligopólio. Essas empresas líderes supervisionam um império de linhas de cruzeiros subsidiárias, que gerou coletivamente US$ 34,2 bilhões em receita em 2018, antes da pandemia.

Uma explicação para esse crescimento, concentrado em poucas empresas, parte de uma ampla e complexa gestão racional, que passa pela lógica do processo de acumulação capitalista, ou seja, um business plan voltado para o consumo articulado: hospedagem, alimentação e diversão, tudo concentrado em um mesmo local, no navio, um esplêndido resort temático flutuante.

Esse crescimento fenomenal também criou a necessidade de estruturas gerenciais, organizacionais e de planejamento estratégico mais eficientes, de modo a superar a crescente concorrência e lidar com os muitos fatores de mudança em um mercado também em evolução, que gera mais de US$ 15 bilhões a cada ano. Ainda no plano estratégico, como meta de aumento de lucratividade, as gigantes de navios de cruzeiro focam no ganho de produtividade, direcionado para a redução de custo operacional, proveniente do quadro de tripulantes, a sua maior parte oriunda de países com baixos salários – Filipinas e América Central constituem bons exemplos. Soma-se a isso o fato de as maiores empresas, embora sediadas nos Estados Unidos, matriculam grande parte de seus navios a países do Caribe, onde é possível um ganho expressivo de rentabilidade com a drástica redução de impostos. 

No entanto, de uma hora para outra, precisamente no final de 2019, o glamour das viagens espetaculares em alto-mar sofre um revés, com o aparecimento de algo inesperado, a pandemia de Sarscov-2. A indústria de cruzeiros sofre grandes prejuízos, com navios parados. Como muitos países do mundo fecharam suas fronteiras em resposta à Covid-19, milhares de passageiros foram mantidos no mar, enquanto os navios buscavam um porto para atracar. 

Em meados de março de 2020, o Canadá proibiu todos os navios com mais de 500 pessoas de atracar em seus portos. Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos proibiram todos os navios que chegassem de portos estrangeiros e instruíram todos os navios de bandeira estrangeira a deixarem o país. O Brasil suspendeu a exploração de cruzeiros no verão. 

Diante desse cenário apocalíptico, passageiros ficaram em quarentena a bordo por quase um mês antes de serem repatriados para seus países de origem. A indústria de cruzeiros mergulhava em um abismo e encontrava-se à deriva. As empresas de cruzeiro não sabiam o que fazer frente a esse panorama inesperado, proibidas de atracar nos portos de escala, sem autorização para o desembarque de passageiros e ainda sem condições de devolver a tripulação para suas bases.

A partir da vacinação, porém, surge uma esperança para os amantes de cruzeiros, geradores de uma demanda reprimida, e parecia que os navios iriam zarpar novamente com ótimas perspectivas. O mar anunciava calmaria. Pensou-se até que a Covid-19 seria uma página virada na paralisação das viagens de cruzeiros e boas perspectivas surgiam no horizonte.

O inesperado, contudo, acontece de forma surpreendente e, no final de dezembro de 2021, apenas seis meses após os navios de cruzeiro retomarem a navegação nos portos dos Estados Unidos, segundo a National Geographic Magazine (20/01/2022), os casos de Covid-19 a bordo começaram a disparar – passando de 162, nas duas primeiras semanas do mês, para 5.000 na segunda metade. Parecia que o mundo iria desabar novamente para a indústria de cruzeiros. 

Como a Covid-19 está no ar e os navios de cruzeiro são ambientes fechados, os barcos são locais de maior risco para transmissão. Milhares de pessoas passam por salas de jantar, cassinos e outras áreas onde gotículas transportando o vírus podem estar no ar, aerossóis. Os navios são grandes confinamentos, com pessoas que circulam milhares de vezes em um único dia e, se você for a um restaurante e a pessoa ao seu lado estiver doente, você provavelmente não saberá disso. 

Tendo em vista o Brasil, a estimativa para a temporada 2021-2022 de cruzeiros era considerada muito promissora para o Turismo de lazer, com expectativas de recuperação de um setor da economia e uma estimativa de movimentar R$ 1,7 bilhão, além da geração de 24 mil empregos. Segundo projeção feita pela CLIA Brasil, em conjunto com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), cada navio gera em torno de R$ 350 milhões de impacto para a economia brasileira. A cada 13 turistas em um cruzeiro, em média, um emprego é gerado.

Em agosto de 2021, a Anvisa manifestou-se pela inviabilidade da retomada da temporada de navios de cruzeiro no Brasil, a qual deveria estar condicionada à melhora do cenário epidemiológico do País. Apesar disso, a Portaria Interministerial nº 658, de 5 de outubro de 2021, previu a possibilidade de retomada das operações dos navios de cruzeiro para a temporada de 2021/2022, desde que houvesse planejamento por parte dos diferentes atores envolvidos. Nesse sentido, a Portaria nº 2.928, de 26 de outubro de 2021, autorizou a operação de navios de cruzeiro a partir de 1° de novembro daquele mesmo ano, tendo em vista o cenário de pandemia de Covid-19 à época.

Nessa trajetória dos cruzeiros no País, a temporada 2021-2022 teve início no começo do mês de novembro de 2021, com a embarcação MSC Preziosa. Ainda no final de novembro, e ao longo do mês de dezembro, outras quatro embarcações iniciaram suas operações: MSC Seaside, Costa Fascinosa, MSC Splendida e Costa Diadema.

A Clia argumenta que os cruzeiros são o único segmento que exige, antes do embarque, para passageiros e tripulantes, níveis altos de vacinação e 100% de testes de cada indivíduo. No Brasil, os protocolos exigem que todos os hóspedes estejam com o ciclo vacinal completo, apresentem testes negativos antes do embarque, testagem contínua a bordo e uso de máscaras. 

Tais procedimentos não impediram um rápido alastramento da Ômicron nas viagens de cruzeiros no litoral do Brasil. Assim, em face do aumento do número de casos de Covid-19 confirmados ainda no mês de janeiro, como recomendação, a Anvisa solicitou ao Ministério da Saúde e à Casa Civil da Presidência da República, no dia 12 de janeiro de 2022, a suspensão da temporada 2021-2022 de navios de cruzeiro no Brasil, como ação necessária à proteção da saúde da população.

Desde a recomendação de suspensão temporária, a Agência vem avaliando a evolução do cenário epidemiológico do Sars-CoV-2 a bordo dos navios e também no Brasil e no mundo. Observa-se que o cenário tem se tornado ainda mais desafiador tendo em vista, em especial, o aumento vertiginoso do número de casos nas embarcações e no País.

Yacrim Melgaço | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção

Desse modo, nesse contexto da rápida disseminação da variante Ômicron, a Anvisa entende que o cenário atual é desfavorável à continuidade das operações dos navios de cruzeiro. Para isso, fundamenta-se no princípio da precaução, a partir de todos os dados disponíveis, com a recomendação da suspensão definitiva da temporada de navios de cruzeiro no Brasil, como ação necessária à proteção da saúde da população, segundo o próprio órgão regulador.

Embora a Ômicron tenha criado um impacto nos cruzeiros, as empresas de navegação alimentam a esperança de uma rápida recuperação no setor e, assim, a bilionária indústria de cruzeiros voltará majestosa em busca de turistas loucos para zarpar no mar, de preferência dentro de um imenso navio.

* Ycarim Melgaço é professor no Programa de Mestrado em Desenvolvimento e Planejamento Territorial (MDPT-PUCGO), Doutor em Geografia (USP) e pós-doc em Economia (Unicamp)