A única jornada possível é a do louco. Eu e Clarissa falávamos de tarot, mas é uma metáfora da vida. Só o louco parte para as viagens sem medo da estrada. Uma das bênçãos da velhice deve ser o esquecimento e a loucura. Não à toa, o homem desde sempre recorre aos entorpecentes para conseguir fugir da realidade. Desde tempos imemoriais que os tóxicos dão tratos à imaginação humana. Com esse pensamento, numa daquelas coincidências junguianas escuto Alceu Valença.

“Lembro um flamboyant vermelho/ No desmantelo da tarde/ A mala azul arrumada/ Que projetava a viagem”, canta Alceu em “Sete Desejos” (1992). Fiquei o dia todo com essa música na cabeça que dá nome ao disco e é um dos melhores do incrível poeta. É nele que tem “Tesoura do Desejo” e “La Belle de Jour”. São aquelas canções que se enveredam por todas as rodas de violão. É fantástico como um compositor consegue fazer onze faixas sobre desejo. Sobre aquilo que é a única coisa que legitima a existência humana.

Sempre enxerguei o compositor pernambucano meio como o louco – aquela carta do tarot – de imagem dionisíaca e talvez por isso tenha me fascinado. Via na imagem performática o exato contrário de Apolo. Por um tempo, talvez por ter sido tema de novela, essa música não iria entrar para o rol daquelas que eu gosto muito. Como fiz as pazes com a difusão de massa, hoje nem me incomoda mais a quantidade de “Anunciação” em remix para falar do nascimento de filhos.

Em entrevista ao El País, o poeta se diz maravilhado com o sucesso contemporâneo de canções como Belle de Jour, que não tiveram tanto êxito assim quando foram lançadas em décadas passadas. São mais de 300 milhões de reproduções da canção sobre a “moça bonita da praia de Boa Viagem” no YouTube e mais de 84 milhões de visualizações de Anunciação. Atualmente os vídeos que fazem sucesso mesmo são aqueles de músicas do Alceu para fazer bebês dormirem, diz a reportagem.

Em um mundo anterior à escrita, os povos se reuniam para ouvir os sábios, também chamados poetas, que com suas palavras tornavam presentes os acontecimentos do passado, assim como os dos dias seguintes. Era um mundo onde música e poesia se misturavam. “Recomeçando das cinzas/ Vou renascendo pra ela/ E agora penso na réstia/ Daquela luz amarela/ E agora penso que a estrada/Da vida tem ida e volta/ Ninguém foge do destino/ Esse trem que nos transporta”.

O Wikipédia conta que o envolvimento de Alceu com a música começou na infância, através dos cantadores de feira da sua cidade natal. Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga e Marinês, três dos principais irradiadores da cultura musical nordestina foram captados por ele. Em casa, a formação ficou por conta do avô, Orestes Alves Valença, que também era poeta e violeiro. Depois de formado em Direito no Recife, em 1969, desistiu das carreiras de advogado e jornalista – trabalhou como correspondente do Jornal do Brasil – e resolveu investir na música (ainda bem). Em 1996, ao lado de Geraldo Azevedo, Zé Ramalho e Elba Ramalho participou da série de shows O Grande Encontro que percorreu diversas cidades brasileiras.

Recentemente, Alceu escreveu o livro “O Poeta da Madrugada” para a editora portuguesa Chiado. Músico de tantas canções e poesias lindas, 76 anos, e que continua embalando sonhos e divagações das gerações mais novas.