Rio de Janeiro: quando a polícia se iguala aos bandidos, e o comandante da tropa ao capo
29 outubro 2025 às 19h34

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O artigo do próximo final de semana já estava pronto – e não tratava de trivialidades. Mas é óbvio que ação da polícia do governador Claudio Castro do Rio de Janeiro cancelou todas as outras prioridades. A fotografia com a fileira de cadáveres – até agora, tarde desta quarta-feira, 29, já foram contabilizados mais de 130 mortos – pulou para o topo das primeiras páginas dos jornais daqui e do exterior, manchando mais uma vez a imagem do país. E a mácula é a da selvageria.
É óbvio também que não são poucos os que defendem a carnificina, a força bruta ao invés da inteligência, da investigação técnica e da atuação dentro da legalidade – por mais que essa política do porrete, à margem da lei ainda que levada a cabo pelas forças do Estado, já tenha se demonstrado como absolutamente inepta e incapaz de produzir os resultados que supostamente almeja. Supostamente, porque a hipótese mais provável é que essa política o que pretende de fato é manter o estado de guerra permanente para sacar dividendos políticos. Para seus defensores pouco importa. Há sempre muita gente disposta a se deixar encantar por essa pregação apelativa, que destina sanguinolência como bálsamo para todas as feridas, de poucos resultados práticos mas alimentado por doses cavalares de testosterona.
Ainda não se sabe qual a identidade de cada um daquelas dezenas de mortos enfileirados numa praça da Penha. É possível que boa parte deles seja dos assim chamados soldados do tráfico. Mas ali, com toda a certeza, não está o corpo de nenhum dos chefes do crime organizado. Por isso, ainda que de perfis distintos, não é descabida a comparação com a recente ação da Polícia Federal contra a cúpula do PCC em São Paulo, onde nem um só tiro disparado e pelo menos meia dúzia de chefes da organização criminosa foi capturada.
Bandido mata de qualquer maneira e não precisa prestar contas a quem quer que seja, exceto ao próprio bando – até por isso é considerado bandido. O Estado (a polícia), não – até por isso é o Estado, aquilo que a sociedade moderna criou para proteger o cidadão. Ao Estado cabe fazer cumprir as leis – e, por conseguinte, ele próprio é aquele que primeiro as deve cumprir. É isso o que lhe garante legitimidade para agir e usar a força em defesa da Cidadania – a força que o Estado, através da polícia, está autorizado a utilizar, no entanto, não é a de matar indiscriminadamente e sem a autorização da Justiça.
A frase entrou para os anais da crônica policial e foi cunhada por um bandido que por então enfrentava uma polícia que sem pudor algum costumava agir à margem da Lei. “Bandido é bandido, polícia é polícia” – o que parece ser e é uma platitude precisou ser lembrada por um dos personagens mais conhecidos do submundo do crime no país, Lúcio Flávio Vilar Lírio, para denunciar a corrupção policial, a extorsão e as execuções cometidas pelo Esquadrão da Morte (é um dos ápices dramáticos do filme Lucio Flávio, o Passageiro da Agonia, dirigido por Hector Babenco e baseado no livro homônimo de José Louzeiro).
E precisou ser lembrada porque não era raro que a polícia de então atuava como agora fez a polícia sob o comando de Claudio Castro. À época do famoso bandido – e também de um famoso policial corrupto, Mariel Mariscot, depois assassinado numa boate de luxo de Ipanema – a polícia podia se dar ao luxo de dar pouca bola para as leis, inclusive a Constituição, agindo à sombra e sob a proteção do estado de exceção. A polícia que atua para servir ao cidadão e que por isso conta com as garantias institucionais e a proteção das leis do Estado Democrático de Direito não pode atuar como atuam os bandidos, não pode matar à margem da lei.
Na realidade, só em situações excepcionalíssimas está autorizada a se utilizar da força letal – se e quando fracassarem todos os outros mecanismos de defesa da lei e, é claro, da própria força policial. Quando isso desgraçadamente ocorre, é obrigada, por força das leis, a se submeter a um estrito processo de esclarecimentos à sociedade e ao aparato legal do Estado. Se não o faz, corre o risco de deixar de ser polícia para se tornar um corpo organizado de assassinos – foi como assassino que o jurista Wálter Maierovitch caracterizou o governador do Rio de Janeiro, aquele que em última instância determinou e autorizou a ação que resultou na chacina da Penha de 28 de outubro de 2025.
