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“Sade viu-se cercado, desde seu nascimento em 1740, por grandes predadores devassos, oriundos de uma nobreza arrogante, sem limites no exercício de seus prazeres, confinada no recôndito de seus castelos.” — Elisabeth Roudinesco em “A Parte Obscura de Nós Mesmos — Uma História dos Perversos”¹

Numa das cenas do documentário “Lo and Behold: Reveries of the Connected World”, do diretor alemão Werner Herzog, um robô remove lentamente a tampa do que aparenta ser uma garrafa térmica e se prepara para despejar o conteúdo num copo plástico.

Não é possível adivinhar o que há dentro do recipiente, nem a o quê ou a quem o autômato está se preparando para servir. Há uma dose desconfortável de humanidade na cena.

 Segundos antes, sem que tenhamos visto, a maquineta pode ter decidido misturar ao conteúdo da garrafa umas tantas gotas de cianureto, por exemplo – ou, em sentido contrário, uma pílula capaz de curar o câncer de uma criança em estado terminal.

Lo-and-Behold-Reveries-of-the-Connected-World

Não sabemos, assim como não sabemos quais terão sido os critérios para a escolha entre uma e a outra coisa.

Mas o que, sim, podemos ter como certo é que o que quer que ele tenha escolhido não terá sido a partir de uma noção de bem e mal.

Os critérios para a decisão dessas máquinas serão sempre e necessariamente de natureza funcional. Assim são elas, quaisquer que sejam seus níveis de sofisticação.

(Chegados aqui, vale lembrar que também os campos de extermínio de Auschwitz-Birkenau, como celebrou o ideólogo-mor da ala mais insana do trumpismo, Steve Bannon, funcionavam maravilhosamente bem.)

Ao final da sequência, o simpático robozinho experimental despeja no copo um líquido amarelo e, com o devido cuidado, o serve a uma jovem nipônica trajando um discreto terninho branco, o mais insosso possível — provavelmente uma inocente funcionária da empresa que o construiu.

Musk (a mãe)

“É muito doce e muito bom”, diz madame Maye Musk (vendo suas fotografias estampadas na matéria do “El País” não há como não chamá-la de madame, com toda a ênfase que o termo exige).

“Com seus 1,74 metros, cabelos brancos como a neve, rosto angulado e olhos azuis, Maye Musk parece uma extraterrestre que acabou de pousar por engano nas ruas de Nova York. Quando tinha 15 anos, uma amiga de seus pais percebeu sua beleza gélida”, assim a descreve o jornal espanhol — uma extraterrestre ou, quem sabe, um dos ilustres membros da dinastia Krupp lá pelos idos dos anos 1930.

Que uma mãe julgue o filho como doce e bom é uma platitude. A melhor definição de madame Maye, no entanto, é mais genérica e ambígua: “Não há nada que um Musk não possa fazer”.

Dito dessa forma, deixa-nos a oportunidade de pensar que de fato para um Musk não há e não pode haver interditos de qualquer espécie.

A mãe (e seus frutos)

Olhando para a beleza gélida daquela figura majestática, verdadeiramente bela sob determinados pontos de vista, mas indubitavelmente impecável, é possível perguntar, numa espécie de perscrutação antropológica, que tipo de humanismo ou qual dosagem de empatia é possível existir, sobreviver e se reproduzir nela – ou ali não há nem nunca houve espaço para nada além de conquistas e conquistadores?

Cinema e a alma dos outros

Muito longe dali e muito antes, num universo à parte, o cineasta Jean-Luc Godard dizia quase o mesmo que madame Musk.

“Nós fizemos isso para mostrar que tudo era permitido… O cinema pode tudo”.

Mas será de natureza similar, essa permissividade?

Ou será porque, finalmente, já não havendo mais o que comprar, os arquibilionários (que de tão ricos parecem extraterrestres, muito mais que um Krupp) começaram a adquirir o que em algum momento foram as palavras dos outros, o pensamento dos outros, a alma dos outros, o passado dos outros — e de todos nós.

Como vampiros.

Musk (o pai)

Notícia de jornal: “Uma investigação publicada pelo ‘The New York Times’ revelou que Errol Musk, pai de Elon Musk, o homem mais rico do mundo, foi acusado de abusar sexualmente de cinco de seus filhos e enteados desde 1993”.

Stálin e Rockefeller

O arquiteto holandês Rem Koolhaas conta que quando o bilionário Nelson Rockefeller viu finalmente o esboço para o mural do edifício RCA (Radio Corporation of America — nome original do atual Rockefeller Plaza), inaugurado em 1933, que ele próprio havia encomendado ao muralista mexicano Diego Rivera, escreveu polidamente ao artista: “Esta obra está pintada com grande beleza, mas me parece que a aparição deste retrato no mural poderia ofender facilmente a um grande número de pessoas… Por muito que me desgoste fazê-lo, temo que devemos te pedir que coloque o rosto de algum outro homem onde agora aparece a cabeça de Lênin” (Delirio de Nueva York, Rem Koolhaas).

Lênin discursa e Trótski aparece e depois desaparece
Na primeira foto, Lênin discursa e Liev Trótski aparece em baixo; na segunda foto, Trótski foi limado pelo stalinismo | Foto: Reprodução

Não é exatamente a mesma coisa, mas certamente não será um abuso lembrar o retoque que Stálin mandou fazer numa famosa fotografia do ano da revolução na qual aparecia Lênin discursando num pequeno palanque de madeira e quase a seu lado, Trótski: simplesmente ordenou que dali em diante o fundador do Exército Vermelho e provável sucessor do líder bolchevique fosse apagado daquela fotografia e de todos os outros registros históricos.

E assim se fez.

Essa a razão pela qual há os que sugerem que Stálin tenha sido um dos pais do Photoshop.

Longe dos holofotes (os filhos do Imperador)

O exercício do poder no Estado Democrático de Direito quase sempre está associado ao poder do dinheiro.

Raríssimas são as vezes em que os subalternos ocupam os gabinetes dos palácios para dali se colocarem como protagonistas da administração do bem comum.

Na Democracia, na forma como a conhecemos e que agora mesmo defendemos com unhas de dentes, quase que invariavelmente, quem manuseia o timão são os membros das classes privilegiadas — e não fazem de graça o seu trabalho pela res publica.

Estão ali para defender os interesses dos grandes sócios, mas também os dos mais achegados e, é claro, os dos muito achegados.

Por isso, enquanto o chefe do clã (sim, também o Império está infestado de clãs) e Imperador comanda o espetáculo, aos seus filhos foi encarregada a tarefa de fazer crescer a já avantajada fortuna familiar. E, como os antigos mercadores de Veneza e Amsterdã, sob a volumosa sombra do pai, saíram a mercadejar.

Assim, enquanto o Imperador cuida do bem-estar da nação, é ao que estão se dedicando os herdeiros dinásticos Donald Jr. e Eric — ao que se diz, com ânimo de abnegados entrepreneurs.

Máquinas de guerra

Enclausurados numa montanha de privilégios, nunca se permitiram e jamais se permitirão saber do mundo do outro, sobretudo dos outros excluídos de qualquer ordem de privilégio e condenados ao inferno da invisibilidade, das realidades degradadas e da miséria como motor da vida.

Não foram condenados à cegueira. Eles a escolheram.

Tampouco é que desconheçam o universo para além dos muros dos seus palácios. Mas se acostumaram de tal maneira a negar-lhe direito à existência que seu reconhecimento existe neles apenas como negatividade. Está lá, mas não está. Não serve para nada – a não ser como eventual componente de uma equação cujo propósito é fazer crescer suas fortunas.

Essa cegueira voluntária é uma forma de eliminar o outro – o que não se vê não existe.

O outro preto, o outro pobre ou remediado, qualquer outro que não seja ele.

Nota sobre livro de Elisabeth Roudinesco

Elisabeth Roudinesco capa de A parte obscura de nós mesmos ok1

¹ “A Parte Obscura de Nós Mesmos — Uma História dos Perversos” (Zahar, 224 páginas, tradução de André Telles), da historiadora francesa Elisabeth Roudinesco.