Qual a cor das eleições?

30 agosto 2020 às 00h00

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Desigualdade racial segue sendo obstáculo na busca por representatividade política no Brasil
Mesmos correspondendo a mais da metade da população brasileira, os negros não possuem a mesma representatividade no ambiente político. Apenas 24,4% dos deputados federais e 28,9% dos deputados estaduais eleitos em 2018 se autodeclararam negros. Na última terça-feira, 25, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) deu um passo importante na busca de tornar igualitário às eleições – ficou decidido que os recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) devem ser distribuídos pelos partidos de forma proporcional entre as candidaturas de brancos e negros.
A primeira vista pode parecer que estamos tratando apenas de números. No entanto é preciso enxergar mais do que isso. É preciso ver cores, desigualdade racial, déficit democrático e sub-representação. Já que neste ano teremos as eleições municipais, vamos evocar os números de 2016, quando 51% dos candidatos se declararam brancos, 39% pardos e 9% negros. Essa estatística eleitoral/racial já demonstra a desigualdade gritante, quando 56% da população brasileira é composta por negros.
Mas esse cenário consegue ficar ainda pior quando buscamos os números dos eleitos. Entre os que tiveram êxito nas urnas, 59% são brancos, 36% são pardos e 5% negros. Entre os prefeitos eleitos para governar as capitais brasileiras quatro são pardos. Nenhum é negro. Entre os vereadores eleitos em 2016, é preciso somar pardos e negros para chegar ao percentual de 42,1%. Os dados são do Estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, do IBGE.
O que todos esses números têm a dizer? É a demonstração que as eleições no Brasil tem cor. É branca. E se tornou um processo que perpetua. Podemos recorrer novamente aos números para demonstrar que não há meritocracia numa concorrência em que o ponto de partida não é o mesmo para todos os concorrentes. Exemplo é a discrepância entre a receita financeira das candidaturas de pessoas brancas e a de pessoas pretas ou pardas. Enquanto 9,7% das candidaturas de pessoas brancas a deputado federal tiveram receita igual ou superior a R$ 1 milhão, entre as candidaturas de pessoas pretas ou pardas, apenas 2,7% contaram com esse valor.
Claro que a escassez de recursos financeiros é um dos fatores que diminuem as chances de sucesso eleitoral de uma candidatura. E aí surge outro elemento que fomenta a continuidade desse cenário desigual: quando o candidato já possui cargo parlamentar há uma chance maior de se reeleger, portanto, mais uma dificuldade para um grupo sub-representado reverter esse quadro.
Talvez nem todos saibam, mas há uma dependência financeira dos candidatos. Isso porque são as lideranças partidárias que fazem a divisão dos recursos eleitorais. Essas fatias são repartidas por conveniência eleitoral. Na maioria dos casos as verbas e apoio para as campanhas são distribuídas visando atender interesses próprios ou de grupos, reforçando o poder de quem já tem mandato – conforme os números, a maioria é branco.
Não é surpresa alguma que no núcleo dos partidos eleitorais a democracia não é algo primordial. As siglas tendem a privilegiar os candidatos que mobilizam mais recursos, que tem mais exposição e relacionamento, ou aqueles que compõem famílias tradicionais na política – conforme os números, a cor da minoria é preto.
Essa assimetria na distribuição das fatias de financiamento eleitoral é também reflexo da inexistência de blocos robustos formados por negros dentro das composições partidárias. Esse quadro permite que outros grupos exijam os maiores repasses. Esse é um efeito que se repete em todas as eleições.
A baixa representatividade ou total ausência de negros nas Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e Congresso acaba por ser naturalizada. Assim, propostas e decisões que interferem em uma comunidade ou em todo o País acabam por serem tomadas sem que se faça representar a maior parcela racial.
TSE demonstra disposição em ampliar representatividade negra
Diante da desigualdade racial nos poderes, é importante que o sistema político-eleitoral brasileiro crie mecanismos para evitar o tratamento arbitrário em relação a candidaturas. A nova regra prevê a distribuição de recursos e tempo de rádio de TV de forma proporcional para negros. Assim o TSE abre espaço para ampliar a representatividade. A proposta era que já valesse a partir deste ano, mas o entendimento da maioria foi para que passasse a valer somente a partir de 2022.
O relator da consulta, ministro Luís Roberto Barroso, foi favorável ao entendimento de que as formas de distribuição de recursos e tempo em rádio e TV deverão ser divididos 50% para mulheres brancas e 50% para mulheres negras; destinação de, no mínimo, 30% do fundo eleitoral para candidaturas de negros; e assegurar tempo de propaganda eleitoral gratuita de TV e rádio proporcional às candidaturas de pessoas negras, respeitando-se o mínimo de 30%. O ministro, no entanto, foi contrário à proposta para que houvesse uma reserva de 30% das vagas nos partidos políticos para candidatos negros.
A decisão do TSE não é de fato uma solução para a sub-representação. Mas é preciso reconhecer a importância de colocar o tema para debate e reconhecer que o cenário precisa se alterado, pois não se pode reduzir a população negra em eleitores de brancos. Não se pode seguir afastando os negros do espaço público, dando tonalidade branca para as eleições brasileiras.