O projeto ‘Goiás 300’ é uma oportunidade de ressignificação, de a civilização goiana ensimesmar-se dos valores ameríndios, afros e mamelucos bandeirantes que a formaram

Retirar ou erigir monumentos de bronze não restituirão a pureza perdida. Nossas ancestrais indígenas devem ser reverenciadas toda vez que nos assentamos para uma fausta refeição com frutos e ingredientes silvícolas; quando esclarecemos que o peixe à mesa é piramutaba ou piraíba; quando bebemos suco de caju ou de pitanga; quando brindamos nosso paladar com o doce ploque da jabuticaba e nostalgia de infância; quando chegamos em casa e tiramos os sapatos para o reconfortante descarregar de íons da peleja cotidiana; quando nos entregamos ao relaxante banho diário que aprendemos com nossas eneavós, cunhãs de diversas tribos.

Em 1954 São Paulo completou 400 anos de fundação, comemorada com a publicação de dezenas de livros sobre sua história, para a qual se criou até a Editora do Quarto Centenário e uma comissão com o mesmo nome. Para se celebrar a fundação da Vila de São Paulo de Piratininga, em 26 de janeiro de 1554 – pelos padres jesuítas liderados por Manoel da Nóbrega, protegidos pelo Cacique Tibiriçá, maioral dos Guaianazes do Planalto de Piratininga – criou-se também, naquele jubileu, a Orquestra Sinfônica de São Paulo (Osesp), ainda hoje destaque no cenário sinfônico nacional e internacional.

O Cacique Tibiriçá era pai da índia Bartira, consorte do náufrago português João Ramalho, casal ancestral dos bandeirantes mamelucos paulistas que fundariam dezenas de povoações nos estados de São Paulo (hoje, Sorocaba e Itu, por exemplo), Minas Gerais (Vila Rica, depois Ouro Preto) e Goiás (Sant’Anna, depois Vila Boa e Cidade de Goiás), além de outras povoações surgidas no rastro do bandeirismo e da mineração, e que dariam origem às atuais cidades de Pirenópolis, Corumbá de Goiás, Pilar, Jaraguá, Niquelândia, Anicuns, Santa Cruz, Catalão e diversas outras em Goiás e Tocantins.

Os bandeirantes paulistas não eram, portanto, os portugueses ou espanhóis do imaginário popular. Sequer “homens brancos”, como se pensa comumente, pois as bandeiras paulistas foram formadas, em sua maioria, por mamelucos, filhos, netos e bisnetos dos indígenas do Planalto de Piratininga. Acostumados, por isso, às agruras do sertão: feras, índios reativos, caminhos tortuosos, matas fechadas ou terrenos serpentínicos, enchentes e corredeiras de rios, insetos e doenças – tratadas com poções e ervas aprendidas com suas avós autóctones. A população branca só chegaria a Goiás posteriormente, através das missões religiosas e dos “aldeamentos” de indígenas, ou na busca da fortuna fácil dos garimpos, que se seguiu às primeiras incursões bandeirantes. Os restos mortais do Cacique Tibiriçá encontram-se na cripta da Catedral da Sé, centro de São Paulo, onde jazem também os restos mortais do padre Manoel da Nóbrega. A formação de São Paulo tem sua raiz étnica semelhante à de Goiás, formada por elementos indígenas, mamelucos e brancos, além dos povos africanos e europeus, que vieram depois. Os paulistas aproveitaram a oportunidade de comemoração de seus 400 anos e deixaram um legado cultural de valor inestimável.

300 anos de Goiás

Mas o início da colonização (aqui entendido como um “encontro de civilizações”) dessas paragens se deu ao final do mês de julho de 1722 – considerado o marco inicial de Goiás –, quando o filho homônimo de Bartolomeu Bueno da Silva, o segundo Anhanguera, estabeleceu ponto de pouso na região do hoje município de Catalão, em Goiás, durante a passagem de sua excursão bandeirante rumo às terras dos índio Goiá. O Segundo Anhanguera, que estivera pré-adolescente com seu pai na “descoberta” de 1682, partiu de Santana de Parnaíba, São Paulo, 3 de julho de 1722, em busca da lendária Serra dos Martírios, onde “a natureza esculpira a coroa, a lança e os cravos da Paixão de Cristo, ocultando riquíssimas jazidas auríferas”, na versão de Luiz Estevam (“Fuero – manuscritos de um catalão na bandeira do Araguaia”, 2022, 232 páginas) dessa lenda amplamente conhecida dos historiadores.

Aliás, a lenda do Anhanguera (“espírito mau” ou “diabo velho”), que teria incendiado uma travessa com álcool, ameaçando colocar fogo nas águas dos rios, foi popularizada pelo naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, em seu livro “Viagem às nascentes do Rio São Francisco e pela Província de Goiás”, publicado em 1848, sobre suas andanças pela então capitania (a partir de 1821, província) de Goiás, em 1819.

A chegada do Anhanguera, filho, é considerada o marco do início da atual civilização goiana, pois a partir dela se deu a fundação de povoados, formação de famílias e posterior chegada dos mamelucos paulistas e seus parentes de origem portuguesa e espanhola, além dos povos de origem afra, consolidando a colonização desse território. O povoamento da “região dos Goyazes” pelo bandeirantes legou a Portugal a posse dessas terras, até então pertencentes à Espanha por força do Tratado de Tordesilhas, de 1494. Não fora os bandeirantes, estaríamos falando o Espanhol, cotidianamente. A questão dos limites das colônias sul-americanas foram definidas pelo Tratado de Madri, de 13 de janeiro de 1750, assinado pelos reis João V, de Portugal, e Fernando VI, da Espanha, destinando Goiás e quase todo o atual território nacional – com exceção do Acre – a Portugal.

Descendência

A ideia de que os bandeirantes chegaram a Goiás, “roubaram o ouro” e se foram, não se sustenta, já que seus descendentes se radicaram, viveram, e foram sepultados em território goiano, deixando vasta linhagem. Prova do ânimo bandeirante de se estabelecer é que fundaram povoações e deixaram descendentes que constituiriam uma das duas primeiras oligarquias políticas de Goiás, a dos Fleury, juntamente com os Jardim. O padre Luiz Gonzaga de Camargo Fleury, que editou o primeiro jornal de Goiás – “A Matutina Meiapontense”, em 1830 – e foi o 5º presidente de Goiás (1837-1839) era pentaneto do primeiro Anhanguera, assim como seu irmão Antônio de Pádua Fleury, 8° presidente de Goiás (1848-1849).

Mostra da interação social, política e econômica que os mamelucos bandeirantes legaram a Goiás e ao Brasil são os milhares de homens e mulheres daquelas linhagens que fizeram e fazem a história deste e de outros estados brasileiros. Na Literatura, os escritores Erico José Curado (1880-1961), Maria José Fleury Monteiro Dupré (1905-1984), Ophélia Sócrates, Bernardo Élis (1915-1997), Renato Sêneca Fleury, Rosarita Fleury, Jesus de Aquino Jaime, Adriano Curado e Bento Fleury. Na música, destacam-se o maestro Joaquim Jayme e os cantores e compositores Leo Jaime, Fernando Perillo, Luciano Di Camargo e Zezé Di Camargo. Na Historiografia, Jarbas Jayme, José Sisenando Jayme, Ramir Curado, Tereza Caroline Lôbo, João Guilherme Curado e Jales Mendonça.

Na política, o presidente de três províncias brasileiras (Ceará, Espírito Santo e Paraná), André Augusto de Pádua Fleury (1830-1895), que foi deputado geral por Goiás (1861-1865), presidente da Assembleia Nacional, conselheiro do Império e ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Gabinete de Paranaguá (portanto, o primeiro goiano a ocupar um ministério em nível nacional), além de diretor da tradicional Faculdade de Direito de São Paulo (1883-1890). André Augusto, embora nascido circunstancialmente em Cuiabá, foi criado na Cidade de Goiás e em Meia-Ponte, filho de pai goiano. Também o governador de Goiás, Ronaldo Caiado e os ex-governadores Leonino Di Ramos Caiado (Goiás) e Luiz Antônio Fleury Filho (São Paulo); os senadores Luiz Gonzaga Jayme (1855-1921), Emival Ramos Caiado, Leoni Mendonça e Max Lânio Gonzaga Jayme; os deputados federais, marechal Eduardo Arthur Sócrates, Sebastião Fleury Curado (1864-1944), Tullo Hostílio Gonzaga Jayme, Elcival Ramos Caiado, Geraldo de Pina e Iturival Nascimento, além de três dezenas de deputados estaduais – dentre eles Frederico Jayme Filho, Ronaldo Jayme, Iron Jayme Nascimento, Altamir Mendonça e Leão Di Ramos Caiado Filho, todos com três mandatos – e igual número de prefeitos, nos últimos cem anos.

Na magistratura, descendem do primeiro Anhanguera os desembargadores João Augusto de Pádua Fleury (1831-1910), Luiz Gonzaga Jayme (1855-1921), Arinan de Loyola Fleury, Alfredo Augusto Curado Fleury (1864-1931), Maurílio Augusto Curado Fleury (1868-1962), Jerônimo José de Campos Curado Fleury (1869-1942), Heitor de Morais Fleury (1889-1972), Odorico Gonzaga de Siqueira, Eládio de Amorim e Celso Fleury, além de dezenas de juízes de direito em Goiás, São Paulo e Minas Gerais.

Na área militar, descendem do Anhanguera, pai, os generais do Exército Luiz Augusto Confúcio, Augusto Otávio Confúcio, Maurílio Augusto Curado Fleury, Antônio Godinho Fleury Curado, Antônio Félix de Sousa Amorim, João Fleury de Sousa Amorim, Félix Fleury de Sousa Amorim (os três últimos, irmãos) o major-brigadeiro Antônio de Castro Fleury e o marechal da Aeronáutica, Benedito Péricles Fleury. A lista é extensa, com dezenas de milhares de descendentes, que lança por terra o argumento de que os mamelucos bandeirantes foram forasteiros. Todos os citados são descendentes do Cacique Tibiriçá, pela linhagem de José Cardoso de Camargo, casado com Mécia Bueno da Fonseca, tetraneta do primeiro Anhanguera.

Goiás 300

Para marcar os 300 anos do início da colonização de Goiás, o Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG) e a Sociedade Goiana de História da Agricultura (SGHA) conceberam o projeto “Goiás 300 – Reflexões sobre a formação de Goiás”, com espaço para o debate ao longo de todo o ano de 2022, envolvendo centenas de intelectuais e quase duas dezenas de instituições culturais.

O projeto “Goiás 300” não tem o viés negativo de comemorar o genocídio dos povos originários no território goiano, nem alimentar o negacionismo ou o revanchismo histórico. Antes, pretende chamar ao debate historiadores, geógrafos, antropólogos, educadores, literatos e profissionais de todas as áreas do conhecimento, além de instituições representantes das comunidades indígenas e afrodescendentes.

Não é um jubileu laudatório aos bandeirantes, antes um chamado à correção histórica sobre os povos colonizados, de etnias diversas que habitavam o território dos índios Goiá naqueles dias, muitas delas ainda resilientes em Goiás e Tocantins.

Goiás 300 não pretende debater a retirada da estátua do Bandeirante do centro de Goiânia ou medidas semelhantes que só encontram paralelo entre os Talibãs, no Afeganistão, ou em regimes totalitários de direita e de esquerda. Estudantes indígenas e quilombolas de doutorado e pesquisadores das questões autóctones serão chamados a colaborar e publicarem suas visões e suas formas de resistência.

A ressignificação está na compreensão de elementos indígenas e africanos de nosso cotidiano, como no quibebe de mandioca, herança cafuza que frequenta nossas mesas. | Foto: Nilson Jaime

Goiás 300 pretende ressignificar nossas origens ao som do afrosamba e do berimbau de Baden Powell, do potente violão e na religiosidade benguela de Dorival Caymmi; a goianidade no “Manakereki” de Wanda e Adalto; no “Araguaia” de Rinaldo Barra; nos “Frutos da Terra” de Genésio Tocantins e Hamilton Carneiro; na “Saudade Brejeira” do maestro José Eduardo e Nasr Chaul; na “Vila Operária” de Antônio Siqueira e Renato Castelo; no “Rio Vermelho” de Manoel Amorim; nas “Noites Goianas” dos Joaquins – o Bonifácio e o Santana – na “Cantiga Boa” de Itamar Correia… nas Cavalhadas, nas Folias de Reis e do Divino (“Nós Fiéis”) com Gustavo Veiga e Carlos Brandão; no Fogaréu; em “Goiás – sempre no coração” com João Caetano e Nasr Chaul; nas Congadas catalanas; nas serestas com Marcelo Barra e no “Fado de Vila Boa”, com Pádua e Chaul; no “Pantanalto”, com Luiz Augusto e Mustafé, “até o Rio Coxim”, ou até “O outro lado da lua”, com Fernando Perillo e o historiador letrista. Em todos esses sons, o violão onipresente e a guitarra de Chaffin, o baixo de Bororó, de Marcelo Maia, a bateria de Sérgio Pato; as vozes marcantes de Maria Eugênia, de Bel Maia, de Débora Di Sá (undecaneta do Anhanguera), de Larissa Moura, de Cláudia Vieira, e todas as “Flores de Goiá”. Ressignificar Goiás nos atabaques e nos zabumbas, no pandeiro e no chocalho. No pequi. No quibebe de mandioca, herança das mães América e África.

Metodologia

Iniciado no dia 1° de fevereiro último, o projeto “Goiás 300” visa à publicação de uma série de livros de história sobre 20 temas, que comporão a “Coleção Goiás 300”. Será desenvolvida a temática dos “Povos originários indígenas, quilombolas e formadores”, “Artes Visuais”, “Artes Cênicas”, “Hip-hop”, “Direito”, “Medicina”, “Arte Popular”, “Educação” e “Cinema”, dentre outros.

Na primeira fase do projeto, já em execução, serão produzidos seis livros, com os respectivos organizadores: Literatura (Bento Fleury, do ICEBE, e Átila Teixeira, da PUC-Goiás); História (Eliézer Oliveira e Thales Vaz Costa, ambos da UEG); Geografia (Eguimar Felício Chaveiro, do IESA/UFG e Ricardo Assis, da UEG); Agricultura (Sandro Dutra e Silva, da UEG e UniEvangélica); Música (Aline Lôbo e Tereza Caroline Lôbo) e Memória e Patrimônio (Lenora Barbo), todos a serem publicados em 2022. A cada nova fase serão acrescidos cinco novos títulos à coleção. Cada livro comportará dezenas de autores, com verbetes e artigos de opinião. A curadoria da coleção é do presidente do IHGG, Jales Mendonça e deste autor.

Na reunião inicial, estiveram presentes representantes das seguintes instituições culturais: Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG); Academia Goiana de Letras (AGL); Instituto Bernardo Élis para os Povos do Cerrado (ICEBE); Instituto Sicoob Unicentro Br; Academia Feminina de Letras e Artes (Aflag); Academia Goianiense de Letras (AGnL); União Brasileira de Escritores (UBE-GO); Academia Pirenopolina de Letras e Artes (Aplam); Academia Palmeirense de Letras, Artes, Música e Ciência (Aplamc), Eco-Academia, Academia de Letras e Artes de Anicuns (ALAA); Escola de Artes Basileu França, Crea-GO, Associação de Engenheiros Agrônomos de Goiás (AEAGO), Associação Goiana de Imprensa (AGI); e das seguintes universidades: UFG, UEG, PUC e UniEvangélica.

Compareceram 45 intelectuais, dentre eles os presidentes Aidenor Aires (AGnL), Ubirajara Galli (AGL), Bento Fleury (Icebe), Fernando Cupertino (Instituto Cultural Sicoob Unicentro Br) e Aline Lôbo (Aplam), além dos coordenadores gerais, Jales Mendonça (IHGG) e Nilson Jaime (SGHA e Aplamc).

Presenças dos historiadores Itami Campos, Eliézer Oliveira e Thales Vaz Costa; dos professores e pesquisadores Ricardo Assis, Sandro  Dutra e Silva, Átila Teixeira, Heloisa Campos, Eguimar Felicio Chaveiro, João Guilherme Curado, Tereza Caroline Lôbo, Maria Teresinha Campos, Maria Clorinda Soares Fioravanti, Divina Paiva, Wanderson Barbosa e Arivaldo Fernandes de Araújo; do maestro Eliseu Ferreira; dos musicistas Othaniel  Alcântara e Andrea Luísa Teixeira; da poeta Cláudia Machado; da advogada Cláudia Silveira; da artista plástica Helena Vasconcelos; da diretora da Escola Basileu França, Lóide Magalhães; das arquitetas e urbanistas Maria Narcisa de Abreu Cordeiro, Lenora Barbo e Jacira Rosa Pires; da tesoureira do Icebe, Raquel Jaime; de Jane Sebba, da AGI; do conselheiro do CREA-GO, engenheiro agrônomo José Reis, e do jornalista Jales Naves, coordenador de Comunicação do Goiás 300.

O Maestro Eliseu Ferreira, da Orquestra Sinfônica de Goiânia (OSGO), prepara a peça sinfônica “O Anhanguera”, já gravada em disco, porém nunca executada, para um grande evento em junho deste ano. Mensalmente haverá colóquios para reflexão e debate sobre os temas, em conjunto com o Instituto Bernardo Élis. A participação é aberta a artistas, escritores, professores, estudantes, profissionais liberais e comunidade em geral.