A terra e as Caraíbas

21 novembro 2021 às 00h00

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“Ah, se essa caraíba falasse!”
Diria Rosa, fosse viva, em sua sabedoria sabida e matuta,
indesde que, mocinha em flor, saíra da roça e fora servir
na casa do menino Bernardo e seus pais – Erico e Marieta –
margem direita do Corumbá.
Fora Rosa – moça sertaneja valente, respondona,
palpitenta, teimosa, enxerida, analfabeta,
mas que sabia tudo sobre tudo – quem introduzira Bernardo
no mundo surreal dos seres míticos do sertão.
Fora Rosa – suas estórias contadas com
olhos arregalados, voz exagerada e afetada – quem instilara
no cachopo Bernardo o gosto pela ficção,
e sua principal ligação com o universo coloquial do sertão.
Mas hoje quem suspira – olhando o verde faiscante
das folhas compostas digitadas,
folíolos subsésseis-peciolulados, no calor do verão;
ou o galhario desfolhado da árvore decídua e heliófita
no inverno cerratense,
parecendo que enfezou e amorreu;
ou a aurífera florescência vivente com flores zigomorfas;
cálice tubuloso, irregularmente lobado e corola amarela,
que faz doer os olhos, quando agosto do desgosto chega –,
é Maria Carmelita,
segunda esposa e amor outonal
do imortal de Corumbá de Goiás.
A escritora e artista plástica Maria Carmelita Fleury Curado
– prima de Bernardo Élis –,
casou-se e viveu ao seu lado os últimos 16 anos de vida
do bardo do sertão.
Nos ermos do Jardim América,
o casal construiu ninho de felicidade,
em terreno adquirido pela ex-freira
quando ainda morava no convento.
Da porta do chalé, em estilo suíço,
o hexagenário escritor,
dezoito anos mais velho que sua consorte,
levantava os olhos e via chão a perder de vista.
O sertão cerrado sendo invadido pela cidade menina
que se achegava a cada dia.
Dava pra assuntar o morro da Serrinha ao Sul
e o Mendanha a Oeste,
com sua vegetação exuberante.
Invadindo as ruas de terra recém-abertas,
capoeiras de douradinha do campo,
alecrins dourados, flores de jacintos,
capim barba de bode, lobeiras, baru
e até um pé de araticum.
Nos amanheceres molhados
e nos entardeceres chuvosos,
miríades de tanajuras, bitus e aleluias
prenunciavam a estiagem em nuvens prateadas,
fazendo a alegria dos bem-te-vis,
anus brancos e anus pretos.
Quero-queros implicavam com os raros passantes.
A noite chegava em lusco-fusco,
iluminada por vaga-lumes e pirilampos,
ofuscados pela luz elétrica de Cachoeira Dourada,
enquanto sapos e rãs coaxavam pouco abaixo,
nos brejos e veredas do Vaca Brava.
Um casal de araras grasnava no oco dos buritis abaixo.
Curiangos, corujas e rasga-mortalhas,
aves agourentas,
anunciavam em rasque-rasque a hora de dormir.
O casal de primos –
descendentes longínquos de “Fradinho” e “Mãe Grande”;
dos Bartolomeu Bueno, Anhangueras, pai e filho;
de João Ramalho e Bartira;
de Piqueroby e Tibiriçá –
intentou plantar árvore em celebração ao amor florescente.
“Tem que ser madeira forte e florescer com viço”.
O ipê-amarelo, árvore símbolo do Brasil,
foi preferência de Bernardo.
Dizer do zoto é árvore símbolo de Goiás,
mas qual o quê!
Bernardo sabia pelo amigo sertanista Leolídio
que o pau-papel da Serra Dourada é que é!
O escritor nunca falava Ipê, mas caraíba.
Caraíba é nome arrumado dos índios,
na língua deles “homem sabido”.
A muda da árvore, chegada em lata de querosene
perfurada ao fundo, para não ajuntar água e encharcar raiz,
veio com recomendação expressa:
“tem que plantar na lua cheia de dezembro ou janeiro,
pra mó de dar sustança e viço nas folhas”.
“A caraíba é planta da família Bignoniácea.
O gênero “Tabebuia” a que pertence, possui mais de 60 espécies”,
ensina o professor Rizzo.
Árvore farturenta, pau pra toda obra,
serviria a cabo da enxada que negaram a Supriano.
Ou fazer caixão do moribundo,
quase defuntento de Liduvino,
do “Veranico de Janeiro”.
Ou engenhar pinguela ou canoa
para “Nhola dos Anjos” nas cheias do Corumbá.
Cruz para os desgraçados no Tronco.
“Pau de dar em doido” – ou forca –
para a jagunçada excomunguenta do Duro,
que fez tanta mardade.
Ou instrumento musical para
“O Sujeitinho Metido a Rabequista”.
Por acá no comércio, e por alá no sertão, é chamada
“para-tudo-do-campo”; “para-tudo-do-cerrado”;
“pau-d’arco”; “caraibeira”; “carnaúba-do-campo”;
“caroba-do-campo”; “carobeira”; “carobinha”;
“cinco-em-rama”; “cinco-folhas-do-campo”; “claraíba”;
“ipê-do-cerrado”; “ipê-do-campo”; “ipê-amarelo-paulista”;
“aipé”; “ipê-amarelo-cascudo”;
e um sem número de nomes nesse sertão de meu Deus
que só Rosa saberia dizer.
Se não soubesse, inventava.
Um botânico diz se chamar “Tabebuia aurea” (Mart.) Bur.,
ou “Tabebuia caraiba” (Mart.) Bur.,
que é a mesma coisa.
“Um entendido ficou de assuntá as flor
pra mode saber melhor”.
Belo dia no mês de agosto,
a árvore desfolhada e sequilenta,
apareceram as primeiras flores,
o sexo das plantas: cálice, corola, estames, anteras, ovário.
Amarelo de dar gosto, parecia oiro.
Uma abóboda aurífera de afrontar as vistas,
encantando os passantes e os convivas no chalé do feliz casal.
Ano a ano a árvore foi crescendo, até se tornar adulta –
noiva coroada de amarelo-ouro.
“Ah, se essa caraíba falasse!”.
Quanta prosa!
Quanta poesia!
Quanta proesia!
Quantos projetos e sonhos feitos e desfeitos.
Sob sua copa florescente,
pisando corolas amarelas coalescentes ao chão,
caíram e coroaram-se reis.
Fizeram-se imortais da AGL.
Carmo recitou sua “Jurubatuba”,
Ely o seu “Pium”
e a prima Rosarita os “Elos da mesma corrente”.
Miguel Jorge sorveu “Veias e Vinhos”
para não subir “Nos ombros do Cão”.
Com os irmãos Jesus e Joaquim Jayme
fizeram revoluções.
Sob a copa primaveril ou outonal da caraibeira,
poetou com Gilberto
polemizou com o mano José Mendonça Teles e Siron.
Sonhou com Brasigóis, Coelho Vaz, Kleber Adorno, PX e Aidenor.
Viu nascer Bira Galli, Luiz de Aquino, Paulo Bertran, Edival,
Abílio Wolney, Maria de Fátima e Lêda Selma.
Sofreu as dores da ditadura com Horieste e Euriquinho.
Posou para Confaloni, Amaury, José Asmar, DJ, Isa Costa,
Octo marques, Gomes de Souza e Maria Carmelita.
Filosofou com Jávier Godinho, Licínio,
Ursulino e Jerônimo Geraldo de Queiroz.
Politicou com Hélio de Britto, e José Luís Bittencourt.
Tomou chá com Amália, Nelly Alves e Ana Braga.
Dois dedos de prosa viravam
duzentas braças de conversa
com José Fernandes e Modesto Gomes.
Descobriu-se expressionista com Emílio Vieira.
Sob a chuva prateada de flores decíduas,
discutiu dez novos colóquios
com Bariani e Carmo, caraíbas como ele.
“Ah, se essa caraíba falasse!”.
Mil amigos por ali se despediram:
Alaor, Antônio Moura, Augustinha, Delermando, Targino;
Hélio e Reinaldo Rocha;
Martiniano, Hamilton Carneiro e Moema;
Leôncio, Catelan e Mário;
Paulo Araújo, Olavo Tormim, Taylor Oriente
e uma constelação de astros de variados quilates
da cultura goiana.
Foi sob a copa da caraibeira,
com o jovem Euler Belém,
que desatou o nó górdio
da Fundação de Cultura
no Dia do Não-Fico:
quebrou o cálice de fel e cicuta,
rompeu os grilhões da burocracia.
Foi à sombra da caraibeira que Goiás ficou
mais imortal
com Austregésilo de Athayde,
Alceu Amoroso Lima,
José Olympio,
Luís Jardim,
Jorge Amado
e Arnaldo Niskier.
O mais frequente de todos os amigos –
Leolídio Di Ramos Caiado –
visitou Bernardo diariamente,
no ocaso da vida do imortal.
As frequentes despedidas
testemunhadas pela árvore caraíba
foram se escasseando…
até desaparecer,
quando o velho Caraíba se foi.
Foi debaixo da icônica caraibeira que se deu
o juramento de uma vida:
“Maria, promete que não vende essa casa?”.
“Que isso, meu amor! Você será imortalizado nela!”.
Bem vindos à Casa Bernardo, sede do Icebe!
Aqui se pensa e se estuda Goiás,
sua cultura e os povos do Cerrado.
Uma casa de caraíbas – a árvore e o escritor.
Salve Bernardo Élis!
*A quinzena Bernardo Élis acontece entre os dias 15 de novembro (aniversário de seu nascimento) e dia 30 do mesmo mês (aniversário de sua morte) de cada ano, comemorada com a realização de concerto sinfônico, exposição de arte, mostra de filmes, palestras, saraus, debates temáticos e publicação da Revista Sapiência, em parceria com a Universidade Estadual de Goiás.