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O julgamento criminal do ex-presidente Jair Bolsonaro pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), que culminou em sua condenação, é considerado histórico no contexto brasileiro, pela gravidade dos crimes imputados (tentativa de golpe de Estado, organização criminosa, danos ao patrimônio público, dentre outros) e pelo fato de envolver um ex-presidente. 

Contudo, esse processo também suscitou graves questionamentos jurídicos, muitos advindos da defesa, de parlamentares da oposição e de especialistas em Direito Constitucional e Processual Penal.  Concluso o julgamento, e com um placar de 4 a 1, juristas discutem qual tipo de recurso a ser proposto.

Não restam dúvidas que os Embargos de Declaração foram instrument processual para afastar omissão, contradição e obscuridade de decisão ou acórdão colegiado. Porém, a expectative jurídica da defesa bolsonarista, é alcançar os embargos infrigentes: justamente por esse instrumento poder alcançar o efeito modificativo da decisão desvantavosa.

Segundo o advogado do almirante Almir Guanier Santos, condenado a 24 anos pela trama golpista, o goiano Demóstenes Torres afirmou insister nos embargos infrigentes, uma vez verificado que o regimento interno do STF não prevê o número de votos divergentes para o conhecimento do referido recurso. Na outra ponta, o próprio pleno já solidificou que os embargos infringentes só são aplicados quando haja mais de uma divergencia na turma, o que diferentemente ocorreu.

Assim, o extenso e não sólido voto do ministro Luiz Fux perde o valor processual judicante, emu ma tentantiva de modificar o conteúdo decisório dos oito reus, condenados pelos atos de 8 de janeiro.

A seguir, analiso alguns dos principais pontos contraditórios apontados, suas implicações jurídicas e também os argumentos contrários.

1. Jurisdição do STF versus foro competente

Ponto em controvérsia:

Foi levantada pela defesa, e também por ao menos um ministro do STF, a tese de que o Supremo não teria competência para julgar Bolsonaro pelos fatos imputados, uma vez que ele já não era presidente quando muitos dos atos confrontados ocorreram. Para o ministro Luiz Fux, por exemplo, há falta absoluta de jurisdição para alguns dos crimes atribuídos.

Argumento jurídico:
A Constituição Federal prevê foro especial para crimes cometidos no exercício do cargo (art. 102, I, se forem crimes comuns ou conexos a crimes de responsabilidade, e art. 86, que trata de crimes de responsabilidade do presidente).
Após deixar o cargo, em regra, o foro especial deixa de se aplicar.
Se o STF julga crimes que foram praticados fora do exercício funcional ou após o mandato, isso poderá configurar usurpação de competência ou violação do princípio constitucional do juiz natural.

Contradições apontadas e tensionamentos:

Se se admite que crimes relacionados à tentativa de golpe e organização criminosa compreendem atos anteriores, concomitantes ou posteriores ao mandato, em que medida o STF é competente? A delimitação temporal e funcional é crucial, mas nem sempre clara no acusado ou na acusação.

O julgamento foi feito por uma Turma do STF (formada por cinco ministros), enquanto há argumentos de que o caso deveria ter sido levado ao Plenário (todos os ministros). O ministro Fux sustentou que, pela gravidade e pela natureza dos crimes cometidos quando Bolsonaro era presidente, deveria haver julgamento em Plenário.

2. Ampla defesa, contraditório e suposto cerceamento

Ponto em controvérsia:

A defesa alegou que foi cerceada, sobretudo no que toca ao acesso completo às provas (documentos, imputações, delações), em dificuldades na produção de prova suplementar, envio desorganizado de muitos documentos e insuficiência de fundamentação individualizada em algumas prisões preventivas.

Normas aplicáveis:
Constituição Federal, art. 5º, inciso LV, assegura aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, o contraditório e a ampla defesa.

Código de Processo Penal (CPP) prevê garantias básicas ao réu, inclusive produção de provas, contraditório e direito ao silêncio.
Leis relativas à colaboração premiada, provas e diligências também se aplicam.

Controvérsias específicas levantadas:
Se o volume e a forma de entrega das provas dificultaram de fato a análise adequada da defesa, isso poderia configurar cerceamento.
A defesa também argumentou que alguns depoimentos acusatórios, especialmente a delação premiada do ex-ajudante de ordens Mauro Cid, teriam vícios de voluntariedade ou confiabilidade.
Por outro lado, o relator argumentou que as defesas tiveram tempo suficiente para se manifestar, acesso aos autos e possibilidade de contestar provas.

3. Atos preparatórios versus consumação ou tentativa configurada

Ponto em controvérsia:
A defesa sustenta que muitos dos atos imputados a Bolsonaro seriam meramente preparatórios, ou seja, ainda não configurariam crime por si só, e, portanto, não poderiam fundamentar condenações graves como tentativa de golpe ou organização criminosa.

Elementos legais relevantes:
No Código Penal, a tentativa é crime quando há início de execução, mas atos meramente preparatórios, sem que avance para execução, geralmente não são puníveis como tentativa.
Normas específicas também regulam crime de organização criminosa, que exige certos elementos objetivos e subjetivos.

Tensão jurídica:
O Ministério Público Geral e o relator sustentam que no caso foram identificados atos que ultrapassam o mero preparatório, com articulação entre agentes, efetiva produção de documentos, reuniões e manifestações de ordenamento de logística.
A contradição surge na medida em que a denúncia ou os pedidos de condenação às vezes se baseiam em atuações indiretas ou indícios que a defesa considera insuficientes para caracterizar execução ou ato concreto de tentativa.

4. Usos de delações premiadas e confiabilidade das provas

Ponto em controvérsia:

A delação premiada de Mauro Cid é peça central do processo. A defesa questionou sua credibilidade, voluntariedade, contradições internas nos depoimentos, omissão de partes e alegou que certas provas seriam frágeis ou baseadas em impressões ou minutas não comprovadas.

Contrapontos jurídicos:

A delação premiada é instituto legal previsto no ordenamento jurídico brasileiro (Lei 12.850/2013), sujeita a requisitos como voluntariedade, integridade, ratificação judicial dentre outros.

O STF, e em especial o relator, têm afirmado que houve verificação desses requisitos, e que a defesa teve oportunidade de impugnar.

Contradições e problemas práticos destacados:
Em alguns depoimentos, há pontos em que Bolsonaro confirmou partes do que Mauro Cid disse, mas negou outros; isso cria tensão sobre quais partes são verídicas e como isso influencia a convicção do julgador.
A defesa alega falta de demonstração clara de ligação entre Bolsonaro e planos específicos como Punhal Verde e Amarelo, Operação Luneta ou práticas concretas de mando ou execução dessas ações. Se não houver essa prova, parte da acusação pode ficar em terreno de conjectura.

5. Impessoalidade, neutralidade do juiz-relator e suspeição

Ponto em controvérsia:

Há críticas sobre a possível parcialidade ou suspeição, se o ministro Alexandre de Moraes, relator, teria pré-julgado o caso, havendo manifestações públicas ou posicionamentos prévios que poderiam indicar juízo prévio. Também se questiona a composição do STF, com ministros que teriam históricos ou ligações políticas adversas a Bolsonaro.

Norma aplicável:

Constituição Federal, art. 5º, assegura o juiz natural e o princípio da imparcialidade.
O Código de Processo Penal e a Lei Orgânica da Magistratura Nacional preveem impedimentos e suspeições para garantir que juízes não participem de julgamentos em que haja conflito de interesse ou imparcialidade comprometida.

Tensão jurídica real:
Se houver declarações anteriores do ministro relator ou de outros ministros que pareçam predispostos, a defesa pode alegar suspeição.

Para configuração, geralmente exige-se que essas declarações ou atitudes efetivamente afetem o julgamento ou demonstrem predeterminação de juízo, não apenas opiniões sobre regime democrático ou crítica institucional.

6. Desproporcionalidade das penas e critérios de dosimetria

Ponto em controvérsia:
A defesa alegou que as penas aplicadas são excessivas e desproporcionais. Também há questionamentos sobre os critérios usados na dosimetria: gravidade concreta, antecedentes, culpabilidade, efeito multiplicador e outros.

Base legal para a dosimetria:
O Código Penal Brasileiro, arts. 59 e seguintes, estabelece critérios para fixação da pena: culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos, maneira de execução e consequências.
A jurisprudência do STF e dos tribunais superiores costuma enfatizar que a pena deve ser proporcional ao grau de participação no crime, ao dano e à gravidade do ato.

Contradições ou críticas:

Defensores afirmam que houve atenuação por idade, mas que mesmo assim a pena é muito alta, em regime inicialmente fechado.

Outros dizem que crimes como tentativa de golpe e danos ao patrimônio público têm gravidade institucional tão alta que justificam pena rígida, e que a jurisprudência do STF costuma adotar critérios rígidos nesses casos. O confronto entre segurança institucional e garantias individuais é central aqui.

7. Publicidade, transparência e moralidade do processo

Ponto em controvérsia:
Há críticas ao que alguns acusam de narrativa previamente construída e votação preparada, constituindo um julgamento com ambientação política ou midiática que poderia comprometer a percepção de imparcialidade ou mesmo a efetiva independência institucional. Em entrevistas e pronunciamentos, parlamentares mencionaram que alguns votos ou decisões preliminares pareciam estar pré-escritos.

Aspecto legal:

O princípio constitucional da publicidade (CF, art. 5º, LX) exige que atos processuais sejam públicos.
O princípio do juiz natural e da imparcialidade inclui que o julgamento não venha contaminado de preconceitos ou predisposições externas.

A moralidade administrativa e a legalidade também entram no sentido de que o procedimento deve observar padrões éticos de conduta institucional.

Contradições percebidas:

Se há público acesso aos votos e manifestações, mas há alegações de que as decisões dos ministros já indicavam o resultado antes da deliberação, isso pode comprometer a confiança no sistema judicial.

No entanto, parte da narrativa de julgamento antecipado também é uma estratégia retórica de defesa ou de oposição, não necessariamente provada nos autos. Exigir prova de que realmente houve predeterminação é difícil.

8. Consequências políticas versus jurisdição técnica

Ponto em controvérsia:

Um julgamento de caráter criminal, com fortes implicações políticas como inelegibilidade futura e impacto eleitoral, acaba sendo invocado pela defesa e por apoiadores para alegações de que o processo estaria contaminado por motivações extra-judiciais.

Aspectos jurídicos:

O Direito brasileiro admite que decisões judiciais tenham repercussão política, porém, elas devem se basear em provas, normas legais e procedimento regular.

A inelegibilidade decorre de condenações criminais transitadas em julgado ou outras hipóteses previstas em lei. O impacto eleitoral é legítimo, mas não pode ser usado como argumento para violar garantias processuais.

Tensão real:
Alguns ministros e apoiadores veem o julgamento como resposta institucional ao risco de arbítrio ou golpe, o que pode justificar postura rigorosa.
A defesa vê excessos ou violações de garantias como indício de que a decisão foi também política.


O julgamento do caso Bolsonaro levanta questões jurídicas complexas e com alto grau de relevância para o sistema de controle institucional, para a legitimidade do STF e para a estabilidade democrática. Os pontos contraditórios identificados — jurisdição, equilíbrio entre ato preparatório e consumação, confiabilidade das provas, amplitude da defesa, neutralidade do julgador, publicidade versus predisposição e dosimetria das penas — não são meramente formais, mas podem se tornar matérias de recurso, nulidades ou mesmo de revisão pela instância superior ou internacional.

Para garantir que a decisão seja vista não só como correta do ponto de vista político ou social, mas legítima do ponto de vista jurídico, será fundamental que o processo de apelação, eventual recurso especial ou extraordinário, seja realizado observando rigorosamente os princípios legais aplicáveis: devido processo legal, amplo direito de defesa, contraditório, juiz natural, imparcialidade e proporcionalidade.

A complexidade do caso, exige maior debate, inclusive quanto ao cabimento do processo politico de anistia para os crimes contra o Estado Democrático de Direito – que, ao sentir jurídico da Suprema Corte, já nasce inconstitucional pela propria natureza. Anistiar esse tipo de crime, será, antes de qualquer situação – quebrar os valores máximos da democracia e do Estado brasileiro.