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Eu deixei Tirana em direção de Ohrid (Macedônia do Norte) pela manhã com um sol moderado se escondendo em nuvens razoáveis como manchas horizontais no céu. Eu estava uns 37% ressaqueado por conta de um piau (gafarra de vinho) da noite passada e um pouco cismado por ter encontrado a primeira senhora de burca. Havia alguns questionamentos.

Como será que ela observa o mundo debaixo de um vestuário negro que cobre rigorosamente todo o corpo? Seria necessário protetor solar no caso de se expor ao meio-dia? Qual mecanismo lançaria mão para tomar sopa de cebola? Se fosse imprescindível alimentaria o bebê na rodoviária? São considerações importantes que você deve fazer ao se apaixonar por uma muçulmana de burca, mesmo sem ter visto a silhueta do corpo, o traço dos lábios e a cor dos cabelos. Há limites para se fazer um casamento às cegas.

Josip Broz Tito Foto Reprodução
O ditador Josip Broz Tito virou ímã de geladeira | Foto: Marcio Fernandes/2025

Por falar de laços matrimoniais, encontrei no paredão leste da Igreja de Santa Sofia, erguida no século 9 com tijolo exposto de terracota e argamassa, os noivos Hristijan & Borkica, em traje de casamento para fazer as fotografias pré-nupciais. Eles prontamente posaram para minha câmera e saí de lá feliz da vida em busca do Lago Ohrid após ter desejado o melhor dos mundos ao casal.

Tanto o espaço urbano quanto o ambiente do lago são consagrados pela Unesco Patrimônio Cultural e Natural da Humanidade.  A cidade, construída entre os séculos 7 e 19, foi agraciada por abrigar, entre outros monumentos, o Monastério de São Pantaleão, edificação religiosa eslava mais antiga da Europa, além de 800 ícones bizantinos.

Hristijan e Borkica casal da Macedônia Foto Marcio Fernandes 1
Hristijan e Borkica: casal de noivos em ensaio fotográfico pré-nupcial | Foto: Marcio Fernandes/2025

Já o Lago Ohrid recebeu o título da ONU em razão de guardar 200 espécies endêmicas da fauna e flora nas suas águas doces formadas no Período Terciário, mais ou menos entre 2 e 3 milhões de anos atrás. Situado na fronteira sudeste da Macedônia do Norte com a Albânia, com 2/3 da sua área de 347 km² pertencentes ao primeiro país, o Lago Ohrid possui águas de cor verde chá em suas bordas. Elas ganham uma coloração fechada de esmeralda à medida em que atingem a profundidade máxima de 286 metros.

À primeira vista não há sinal de poluição das águas transparentes nem odor desagradável, no entanto o Lago Ohrid, conforme dados da Unesco, sofre graves impactos ambientais por conta do lançamento in natura de esgoto, excesso de atividade pesqueira, turismo descontrolado e adensamento urbano sem critérios. A Estação de Tratamento de Esgoto, construída em Ohrid em 1980, tem capacidade saturada de operação uma vez que a população na orla do lago teve um crescimento de 56% nos últimos  50 anos.

Por do sol em Ohrid foto de Marcio Fernandes 2025
Pôr-do-sol na Muralha de Samuel | Foto: Marcio Fernandes/2025

Existem duas Ohrid: a turística, que mora na orla do lago, plena de atividades caça-níqueis, e a monumental, repleta de tesouros arquitetônicos prontos para serem descobertos. É preciso bater pernas para desvendá-los em vez de se fazer roubadas típicas, como passeio de barco com falatório de guias enfadonhos.

Na cidade há mesquitas de arquitetura altamente sofisticada, minúsculas igrejas, casario centenário e um calçadão revestido em marmóre de várias tonalidades que parece ter sido polido à mão. Foi em uma dessas andanças que descobri, muito bem escondido, na ladeira da ruela Brakja Miladinovci, 54, um sino cheio de pompa e circunstância que me pediu para ser fotografado, ainda que não houvesse o menor sinal de badalo.

Sino da ruela Brakja Miladinovci Foto de Marcio Fernandes 2025
Sem qualquer badalo, o sino pediu para ser fotografado | Foto: Marcio Fernandes/2025

Ohrid é de uma lindeza de chorar e povo tem na simplicidade o traço mais relevante de caráter, além da gentileza natural do balcânico. Por aqui, hospedagem é algo inacreditavelmente barato, enquanto os itens alimentação e vinho temperam para cima o custo do turismo. Nada exorbitante se você correr longe dos estabelecimentos situados à beira do lago.

Para chegar à Ohrid, o caminho desde a capital da Macedônia do Norte, Escópia, ou da Albânia é a via rodoviária. Como não dirijo automóvel e tenho pavor de locadora de veículo, tomei um micro-ônibus em Tirana na viagem de 2h40 minutos por estrada movimentada e com padrão brasileiro de qualidade meia-boca de conservação. O desembaraço na fronteira dos países é feito pelo próprio motorista e sem qualquer indagação das autoridades imigratórias dos dois lados.

A Macedônia do Norte foi a única das sete nações que compuseram a ex-Iugoslávia a se tornar uma república independente sem ser afetada pelas guerras balcânicas que atravessaram os anos 1990. Governada pelo líder partisan Josip Broz Tito (1945-1980), a Iugoslávia socialista se desintegrou após a queda do Muro de Berlim em 1989. Hoje a figura de Tito na Macedônia do Norte virou imã de geladeira nas lojas de souvenir.

Durante 30 anos, travou uma batalha política com a Grécia, uma vez que este país exigia que o nome Macedônia fosse uma propriedade imaterial do qual não abria mão. No final, acabou se submetendo ao capricho grego e acrescentou a palavra “do Norte” na denominação do país.

Meu primeiro dia em Ohrid não poderia ter sido melhor. Amei a cidade em paixão à primeira vista. Estou regiamente instalado em flat cuja varanda tem vista para Igreja de Santa Sofia. Ganhei de presente chá de limão vindo de Constantinopla. Comprei uma bandana que me faz parecer ter um milhão de dólares na conta bancária. Fiz amizade com um cisne de elegância extraordinária. Fotografei o pôr do sol tardio desde a Muralha de Samuel e pude respirar sem ser incomodado cada aroma de alecrim selvagem que encontrei na cidade.

Marcio Fernandes, jornalista, é colaborador do Jornal Opção.