Os pés de romã do Lago Shkodra não nascem na favela dos ciganos

06 outubro 2025 às 10h57

COMPARTILHAR
O último dia na Albânia foi dedicado a fazer caminhada de longo curso. Foram 14,45 km desde Shiroka, às margens do Lago Shkodra, até a cidade do mesmo nome. O trajeto passou por ecovia e calçadas dos dois aglomerados urbanos em terreno bastante plano. No caminho, fiz um desvio para subir até o Castelo Rozafa em busca de visão panorâmica do ambiente em que ele se insere.
Shkodra é bem simpática e tem um centro histórico com vários casarões em ruínas. Artistas de rua locais aproveitaram portas e paredes em decadência para se expressarem em pinturas alegres com frases inteligentes. Por lá, existe uma deliciosa atmosfera hippie e muitos lugares descolados, a exemplo de pub irlandês no qual se escutam as maiores feras do blues na porta do bar.

Embora tenha um bom equipamento urbano, a cidade está longe de ser um destino turístico. No mais, o que há para se fazer é visitar o lago, o castelo e a Ponte Mesi. Na verdade, Shkodra é a porta de entrada para a galera praticante de trekking, montanhismo e escalada nos contrafortes dos Alpes Albaneses e nas reservas ambientais vizinhas da cidade.
Mochileiros também se dão bem em razão do custo muito baixo de hospedagem. Eles cruzam a cidade com muita desenvoltura em busca dos albergues de quartos coletivos. Já fiquei em muito albergue na minha vida, mas hoje não dá mais para dormir em beliche e dividir banheiro com gente com idade para ser meu neto.
O Lago Shkodra é absolutamente azul, de águas transparentes, cercado por montanhas e delimita a fronteira entre a Albânia e Montenegro, a vizinha situada ao norte. A coloração da lâmina d’água de área entre 370 e 530 km² — variação determinada pelo período de estiagem e das cheias provocadas pelo derretimento da neve que cobre as montanhas — é meio enganadora. O reservatório natural, ainda que seja um espaço de proteção ambiental permanente, é bastante poluído do lado albanês.

Os principais impactos ambientais são produzidos pelo lançamento de esgoto doméstico sem tratamento da população de 170 mil habitantes — situada tanto na orla quanto ao longo dos rios contribuintes do lago. Há também o despejamento de metais pesados da indústria de processamento do alumínio, carreamento de fertilizantes químicos e muito lixo depositado nas margens sem o correto manejo. Outros pontos de prejuízo para a saúde ecológica do corpo hídrico é o incremento não planejado do turismo e as construções irregulares.
De acordo com minhas primeiras intenções, o projeto era comer peixe assado vindo das águas azuis do lago, mas o mau cheiro de esgoto me fez mudar de ideia e contentar com meio panino (sanduíche) de queijo, rúcula e tomate desidratado que sobrou do café da manhã que comi mais tarde.
A pobre condição ambiental do lago não difere em nada do que ocorre no Brasil, especialmente nas cidades da Amazônia. O problema de lançamento de efluentes não tratados é o mesmo, com a única diferença da escala de volume nacional. Acho que só a Índia e a vizinha Bangladesh superam o Bananal Imundo em matéria de contaminação dos recursos hídricos com coliforme fecal, resíduos industriais e lixo.
Pode anotar aí que será a mais bela mentira do ano a realização da COP-30 em Belém (PA). Médicos e farmácias vão encher os bolsos com prescrição e venda de antibióticos para combater infecção do sistema digestivo de ecologistas woke que amam visitar favelas no Brasil para ganhar likes no Facebook.
Como o tempo era bom, com céu azul e temperatura por volta dos 17 graus, imprimi um ritmo franco à caminhada. Parava só para fazer fotografia interessante e tomar água mineral colhida nos Alpes Albaneses a 2487 metros acima do nível do mar, deliciosa por sinal.

Em um posto de gasolina encontrei o jornalista Ardi(s) Beqiri, 47 anos, que lamentou muito a degradação do lago no qual habitam dezenas de espécies endêmicas da fauna e flora. O “s” do seu primeiro nome é importante ser escrito entre parênteses e tem explicação. O jornalista nasceu durante a ditadura de Enver Hoxha, época em que Ardi não podia ser registrado com a última letra por ser um nome europeu, condição proibida nos 40 anos ditatoriais do regime comunista.
Definitivamente, Ardi me recomendou seguir adiante e almoçar em restaurante tradicional de Shkodra, no qual comi regiamente sopa de legumes de entrada, pimentão recheado de arroz e carne moída, como prato principal, e certa sobremesa da casa feita à base de castanhas da terra, canela de Constantinopla e mel puro da região. Olha só pessoal, o suco de laranja do restaurante é alguma coisa de alta estirpe e será considerado na saudade que terei da Albânia.

Depois de cruzar a ponte de pedestres sobre o Rio Buna, fui aconselhado por um senhor de origem romani (cigano) — que buscava algum objeto com valor econômico em um container de lixo — a subir a elevação de 130 metros por um atalho. Foi tudo de bom. Evitei dar uma volta grande para alcançar a estrada de entrada do castelo, dei uma parada estratégica em cafeteria para carregar meu celular vagabundo e pedi leite com café para comer o sanduíche.
Lidi, uma albanesa muito gente fina, que estava de saída, se compadeceu da minha situação de idoso, pedestre e escurinho, me ofereceu carona e pude concluir a subida em confortável automóvel com ar-condicionado. Não saberia dizer mais detalhes da motorista, pois ela estava apurada para estacionar o carro e me desovou sem mais comentários em local próximo do guichê da compra do ingresso do castelo. Depois, não a encontrei mais no meio da turistada tirando selfie para o Instagram.

É muito linda a visão panorâmica do encontro dos rios Buna e Drin a verter suas águas poluídas no Lago Shkodra desde o castelo.
Do alto das muralhas que cobrem um perímetro de 800 metros, e ocupam uma área de 9 hectares, parece que você tem uma intimidade com as nuvens e uma relação estável com o céu azul do horizonte. De lá, me despedi dos Balcãs e prometi às ruínas da fortaleza, ocupada no passado por imperadores e príncipes, que ainda vou voltar para me encontrar com os ilírios, primeiros habitantes da colina na Idade do Bronze.

Na caminhada de longo curso, encontrei senhoras cristãs de senho fechado e lenço branco sobre a cabeça a indicar a viuvez. Vendedor de uma abóbora, 37 cabeças de cebola e 72 ramas de fava. Ou o sábado, 4, foi muito bom para o comércio ou a colheita foi fraca. Não saberia dizer, mas morri de tristeza assim mesmo. E descobri que o Lago Shkodra tem a mesma configuração das linhas geográficas da cidade peruana de Huaraz. Talvez um dia aparecerei no país vizinho, conhecido por Machu Picchu, produção de cocaína e políticos malandros protegidos pelo governo Lula.
Antes da ponte de pedestres, encontrei na estrada pela primeira vez uma favela, em toda viagem pelos Balcãs.Trata-se de uma comunidade cigana abrigada em moradias extremamente precárias a margear a estrada por uns 350 metros. Favela não tem muito o que descrever, pois somos especialistas na matéria.
O ambiente urbano é sujo, superpovoado, sem saneamento básico e expressa a condição de miséria da comunidade afim. Há aproximadamente 10 mil habitantes da etnia na Albânia a mendigar nas ruas, de criança a idoso. Os albaneses os consideram uma escória de “vagabundos”. Os indicadores sociais apontam que eles têm menos acesso à educação, saúde, alimentação e com altíssima taxa de pobreza e mortalidade infantil.
O mais interessante é observar os militantes albaneses nas ruas de Tirana e Shkodra a protestar em apoio aos terroristas do Hamas e expressar indiferença aos cidadãos romani. A hipocrisia woke não deixa que pés de romã cresçam na favela dos ciganos.
No ônibus até aeroporto uma mochileira lia cartas manuscritas e fui embora ouvindo Marisa Monte cantar o som dos Novos Baianos: “Minha velha é louca por mim só porque sou assim…”.
Marcio Fernandes, jornalista, é colaborador do Jornal Opção.
[Email: [email protected]]