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A artista plástica e cineasta francesa Lucía Wainberg Sasson, 45 anos — radicada em Montevidéu — chegou atrasada 46 minutos do combinado para a entrevista às 20 horas no último dia 16. Como na cidade na qual ela mora não há problemas de tráfego, nem bandido armado para roubar seu carro e o irmão do cachorro da sua vizinha não morreu, ela não tinha uma justificativa brasileira. Está perdoada, querida Lucía.

O motivo do atraso foi uma sessão de meditação da qual ela participava ter se estendido além do normal. Lucía está sempre refletindo sobre alguma coisa e buscando conexões com situações improváveis, virtude que transforma em arte, como toda pessoa criativa de fôlego. Ela estava atrasada porque se encontrava em um lugar além.

Acabou que, mais ou menos, tudo deu certo em uma conversa internacional de Whatsapp. A gravação da entrevista foi perdida por um problema técnico que parecia ter sido solucionado. Consegui gravar a minha voz, mas a da Lucía ficou em branco. Mesmo assim, foi uma conversa deliciosa e de boa memória.

Lucía Wainberg Sasson
Lucía Wainberg Sasson, artista plástica e cineasta francesa, no Ateliê de Luz | Foto: Divulgação

Eu na Casa do Beco do Sapo, em Pirenópolis, e ela fazendo barulho na cozinha em Montevidéu, capital do Uruguai, quase 3 mil quilômetros de distância entre a gente. Eu senti que ela estava tomando um vinho Tanat nacional pelo áudio do Whatsapp, mas Lucía disse que não. Era água. Combinamos que faríamos a princípio a entrevista em inglês. Lucía me disse, e era verdade, que o português dela havia melhorado muito. Assim, a deixei à vontade para completar com espanhol onde o português falhasse. Só não podia francês, pois eu não entendo e não falo.

Rolou um portunhol de alto nível sobre um monte de coisa interessante e no fim nossa conversa virou uma miscigenação de idiomas, já que Lucía pronunciou o significado de algumas das 22 letras do alfabeto hebraico que constaram de uma fase antiga da sua obra em desenho. Ela não é religiosa, mas pertence à sua comunidade, pratica a cabala, tem profunda ligação com os ensinamentos do budismo e uma relação telúrica com os povos da Amazônia.

No momento da entrevista, ela preparava um frango ao forno que não saberia dizer se ficou bom, pois Lucía pensa muito para falar em pausas programadas e depois fala sem parar. Conversamos desde a última luz de uma supernova até os sons que devem emergir no ventre da mãe e só o embrião escuta. Falamos muito da relação com a espiritualidade e do seu compromisso profissional de fazer arte para despertar a mente e iluminar o conhecimento.

Trabalhos de Lucía Wainberg Sasson expostos na 6ª Bienal de Montevideu
Trabalhos de Lucía Wainberg Sasson expostos na 6ª Bienal de Montevidéu | Foto: Divulgação

Tanto que ela realiza oficinas para desenvolver a expressão artística em quem não tem o menor talento. “Há sempre alguma forma de entender o artístico que você pode colocar para fora, mesmo não sendo um artista e nem ter a pretensão de ser. O importante é a arte transformadora.”

Lucía Wainberg estudou literatura na Sorbonne e artes na Universidade de Paris, onde nasceu. Ela teve boa vida na França proporcionada pelos negócios da família na arte do couro. Das memórias da loja sofisticada vem a lembrança dos calçados, das carteiras, dos cintos, das bolsas, tudo de alto padrão, que a mãe desenhava e o pai executava. Na primeira e única vez em que nos encontramos por 10 minutos, Lucía me falou do avô, um refinado intelectual que foi diretor artístico da Ópera de Montevidéu.

A Amazônia dominou a nossa conversa em razão de Lucía Wainberg participar — em conjunto com mais 32 artistas locais, do Brasil, do Chile, do Peru e da Venezuela — da 6ª Bienal de Montevideu, cuja abertura ocorre no dia 23 no “Palacio Legislativo” do Uruguai. O tema da grande mostra de arte contemporânea é Amazônia Ancestral e tem uma ligação de suporte à COP-30.

No texto de apresentação da bienal, a Amazônia é descrita com toda a sua crueza: “(…) um lugar onde o céu e o inferno, a abundância e a extrema necessidade convivem lado a lado, onde a imaginação fértil e a desolação se combinam no realismo mágico, o excesso e o tédio se alternam. Em nenhum outro lugar o homem está mais próximo da vida, mas também mais próximo da morte”.

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Lucía Wainberg Sasson e sua arte | Foto: Divulgação

Lucía participa da bienal com duas obras significativas chamadas “Memórias Embrionárias” e “Colmeia”, além da exibição do filme “O Canto da Floresta”, dirigido e produzido por ela e com participação da atriz Maria Paula Fidalgo em 2017. A primeira tela de 277×160 cm conta a história das vozes dos povos originários e evoca a força das canções coletivas e do próprio sangue da vida. Já “Colmeia” de 270×160 cm, tem toda uma relação com o entrelaçamento dos reinos humano, vegetal e animal que Lucía teve a oportunidade de vivenciar quando esteve no Baixo Jordão, Acre, e conviveu com os huni kuin.

Eu fiz questão de dizer para uma pessoa que verdadeiramente ama o povo amazônico, se inspira na floresta, nutre a sua iconografia dos elementos vindos dos xamãs e das avós-mãe dos huni kuin, que há muita mentira sobre a Amazônia. Apresentei a Lucía uns números interessantes do déficit amazônico de coleta e tratamento de esgoto, de gerenciamento de resíduos sólidos (lixo) e de abastecimento de água potável no maior rio do mundo em extensão e volume de água doce.

Lucía entendeu, pois ela esteve e conhece a Amazônia. Agora, supostamente se uma outra parisiense sardenta, moradora de Montevidéu — cidade de padrão de saneamento europeu — que nunca tivesse pisado na Amazônia, imaginaria estar nas ruas imundas de Bangladesh ao deixar as instalações do “Palácio Legislativo” e cair nas palafitas de Belém da COP-30. Acho bacana ter um dia de índio, mas não se pode mitificar a relação. Tenho a honra de ter participado do ritual do hetohoky em 1999 na Aldeia de Fontoura na Ilha do Bananal, no entanto não posso dizer que isso foi um ponto de virada de rigorosamente nada em minha vida.

Eu fiquei uns cinco dias namorando de longe uma tela da Lucía Wainberg Sasson em seu ateliê situado na Cidade Velha de Montevidéu. Às vezes na volta do treino pela orla oriental da foz do Rio do Prata era inevitável passar na frente do “Atelier da Luz — Lucía Wainberg” e dar uma espiada mais detida no quadro. Ela sorria para mim, com aqueles olhos arregalados, mas bateu uma timidez danada. Aquele sorriso foi um consentimento para eu poder olhar a pintura da vitrine com mais tempo e sem medo do lado de fora.

Na parte superior da tela, um naturalmente longitudinal navio em laranja pronunciado, sobreposto por quatro menores barcos — cada um indicando uma cidade da Polônia à França — atraca no sol nascente de um porto qualquer, como se tivesse navegado na direção contrária dos pontos cardeais. E assim, a artista escreve no meio do mar que “o nosso norte é o sul”. Wainberg se refere aos milhões de imigrantes europeus que vieram fazer a América do Sul, especialmente Montevidéu, Buenos Aires e alguma coisa do Brasil.

Ela estava sempre de macacão branco ou azul coberto das tintas que escapavam das suas telas. Além disso, me impressionou o ritmo inquieto do trabalho cotidiano da artista, visto desde meu ponto de observação ao norte da Praça Zabala. Era linda a imagem da artista no Ateliê de Luz ligada no 220. Adquiri o quadro e só pude conversar pessoalmente com Lucía por 10 minutos, pois era meu último dia na cidade e eu tinha um concerto agendado, que acabou por ter um chatíssimo prelúdio, seguido de extraordinário pianista e a vontade de voltar para casa e colocar na parede o navio cujo norte é o sul. O porto de chegada é o de Montevideu, logo ali bem próximo do ateliê de Lucía Wainberg Sasson.

Marcio Fernandes, jornalista, é colaborador do Jornal Opção.