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De Portugal — O fato de eu ter sido ateu quase a vida toda me impediu de acreditar na sorte, embora ela sempre estivesse logo ali adiante seja para fazer a boa fotografia, seja para encontrar a grande matéria que faz o repórter. Desta vez não foi diferente. Eu sofri bicas de suor para chegar à Quinta de Cypriano, em Vila Nova de Muía (Portugal), ao vencer um sol escaldante em uma estrada perigosamente movimentada de carros e caminhões.

A única informação disponível era de que se tratava de um lugar lindo, que produzia excelentes vinhos e cujos parreirais se situavam às margens do Rio Lima, três quilômetros a montante de Ponte da Barca (Portugal).

Quinta de Cypriano em Portugal foto Divulgação da Quinta
Fotografia aérea da Quinta de Cypriano | Foto: Divulgação da Quinta

Qual o quê! Ao chegar lá fui recebido pela mulher mais gentil de todo o Alto Minho, de olhos da cor de mel bem açucarado e intenso, que me atendeu com um sorriso de apagar todas as dores do corpo e do mundo. A hora era a mais inconveniente possível, já que interrompi o seu almoço. Mesmo assim, Leonor Howorth Andresen Guimarães, 45 anos, lisboeta da gema, descendente de ingleses e dinamarqueses, foi só atenção e elegância.

De imediato, me pediu para não tratá-la de “senhora” e foi logo contando a história centenária da propriedade. A quinta foi fundada em 1696 pelo juiz de fora de Melgaço, José Cerqueira de Araújo, primeiro senhor da Casa de Quintela, e pertence à família de Leonor há nove gerações documentadas em árvore genealógica exposta em quadro na sua sala de estar com os brasões afins.

Vista geral da Quinta de Cypriano desde a piscina Divulgação da empresa.
Vista geral da Quinta de Cypriano desde a piscina | Foto: Divulgação da Quinta

O mais interessante viria em seguida. Leonor buscou sobre a mesa da sala de prova de vinhos um livro editado pela Imprensa Nacional Casa da Moeda portuguesa e começou a contar a história de seu ancestral Cypriano Joseph da Rocha. Formado em leis na Universidade de Coimbra, em 26 de maio 1728, o jurista deixou Lisboa em direção ao Brasil com dois filhos de 14 e 11 anos para assumir o cargo de juiz de fora na Capitania da Bahia, por encargo de Sua Majestade el-rei D. João V, o Magnânimo.

Depois, foi designado a assumir a função de ouvidor geral na Capitania de Minas Gerais, com a missão de organizar especialmente a cobrança do quinto naquela altura bastante sonegado pelos mineradores locais que faziam acontecer o magnífico ciclo do ouro na América portuguesa.

Cypriano ficou apenas 15 anos no país, mas fez muita história no curto período. O magistrado foi responsável pela expansão da exploração do ouro no Sul de Minas e fundou o Arraial de São Cypriano, que deu origem a nada menos do que 200 municípios no Estado. Mais do que isso, agregou a região à Capitania de Minas Gerais, uma vez que a vasta área situada no Vale dos Rios Baependi, Lambari e Sapucaí era reivindicada como território paulista.

Arreio de Cypriano Joseph da Rocha Foto de Marcio Fernandes 2025
Arreio usado por Cypriano da Rocha no Brasil, no século 18, há 300 anos | Foto: Marcio Fernandes/2025

Na sala de prova de vinhos se encontra muito bem-conservado o arreio usado por Cypriano no Brasil com mais de 300 de história. Ainda mais interessante é o fato de que a saga do ouvidor-geral era desconhecida da família tempos atrás até que o seu pai, o advogado Antônio João de Lacerda Andresen Guimarães, 72 anos, decidiu restaurar o enorme casarão da quinta. Assim, foram descobertas em um baú as cartas enviadas por Cypriano do Brasil para sua mulher, Maria Luísa Cerqueira de Araújo.

A correspondência, que demorava três meses para chegar a Portugal, documenta o cotidiano do ouvidor-geral nos sertões de Minas Gerais, narra a lamentável morte de um dos filhos do casal no Brasil e envia instruções detalhadas sobre os cuidados que Maria Luísa deveria dedicar às vinhas.

Todo o riquíssimo material historiográfico está registrado no livro “Cypriano Joseph da Rocha — Relato de uma Vida entre Portugal e o Brasil na ‘Idade do Ouro’”, escrito por João de Lacerda Andresen Guimarães.

Vinhos da Quinta de Cypriano em Vila Nova de Muía Foto Marcio Fernandes 2025
Sala de prova de vinhos da Quinta de Cypriano | Foto: Marcio Fernandes/2025

A produção vinicultora da quinta tem origem no começo do século 18, mas só foi retomada pela família em 2017. A propriedade de 6,5 hectares produz em cada safra aproximadamente 90 toneladas de uvas, cuja maior parte é comercializada com as cooperativas de Ponte da Barca. O que fica na quinta é destinado à produção de vinho artesanal, com todo o processo da colheita à etiquetagem, passando pela numeração das garrafas, feito à mão.

A Quinta de Cypriano produz vinhos brancos de curtimenta — processo diferenciado que confere sabor, aroma e coloração ao produto — e tintos da casta Vinhões. Ambos elaborados a partir do esmagamento das uvas com os pés em lagar de granito, como faziam os antepassados de Leonor 300 anos atrás. A produção anual é limitada a 4 mil garrafas e repousa em barris de carvalho francês por 12 meses.

É possível fazer visita para prova e aquisição de vinhos, bem como se hospedar em um dos requintados seis quartos da linda propriedade com vista tanto do Rio Lima quanto das montanhas que cobrem o Parque Nacional da Peneda-Gerês.

Leonor é praticante de hiking e caminhada de longo curso. Embora esteja na rota do Caminho Português de Santiago, só irá fazê-lo depois de cumprir a promessa de restauração da capela de Nossa Senhora do Pilar existente na quinta, local onde estão sepultados Cyprino e Maria Luísa. Aliás, a missa do velório do ouvidor-mor, conta Leonor, foi celebrada por exatamente cem padres.

Os santos da capela estão em fase de restauração e são curiosamente negros. Leonor são sabe dizer se eles vieram do Brasil, mas há grande possibilidade, pois fazia parte da tradição portuguesa da época esculpi-los nesta coloração para a catequização dos escravos africanos.

Já a história de Nossa Senhora do Pilar está intimamente relacionada a Santiago de Compostela. Ela teria feito uma aparição para o apóstolo maior quando ele pregava na Galícia a boa nova no princípio do primeiro século da era cristã. Diz a lenda que a santa o teria convencido a não desistir de converter os povos pagãos que habitavam o noroeste da Espanha.

Marcio Fernandes, jornalista, é colaborador do Jornal Opção.