O minhoto que criou o Sul de Minas

18 setembro 2025 às 20h34

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De Portugal — O fato de eu ter sido ateu quase a vida toda me impediu de acreditar na sorte, embora ela sempre estivesse logo ali adiante seja para fazer a boa fotografia, seja para encontrar a grande matéria que faz o repórter. Desta vez não foi diferente. Eu sofri bicas de suor para chegar à Quinta de Cypriano, em Vila Nova de Muía (Portugal), ao vencer um sol escaldante em uma estrada perigosamente movimentada de carros e caminhões.
A única informação disponível era de que se tratava de um lugar lindo, que produzia excelentes vinhos e cujos parreirais se situavam às margens do Rio Lima, três quilômetros a montante de Ponte da Barca (Portugal).

Qual o quê! Ao chegar lá fui recebido pela mulher mais gentil de todo o Alto Minho, de olhos da cor de mel bem açucarado e intenso, que me atendeu com um sorriso de apagar todas as dores do corpo e do mundo. A hora era a mais inconveniente possível, já que interrompi o seu almoço. Mesmo assim, Leonor Howorth Andresen Guimarães, 45 anos, lisboeta da gema, descendente de ingleses e dinamarqueses, foi só atenção e elegância.
De imediato, me pediu para não tratá-la de “senhora” e foi logo contando a história centenária da propriedade. A quinta foi fundada em 1696 pelo juiz de fora de Melgaço, José Cerqueira de Araújo, primeiro senhor da Casa de Quintela, e pertence à família de Leonor há nove gerações documentadas em árvore genealógica exposta em quadro na sua sala de estar com os brasões afins.

O mais interessante viria em seguida. Leonor buscou sobre a mesa da sala de prova de vinhos um livro editado pela Imprensa Nacional Casa da Moeda portuguesa e começou a contar a história de seu ancestral Cypriano Joseph da Rocha. Formado em leis na Universidade de Coimbra, em 26 de maio 1728, o jurista deixou Lisboa em direção ao Brasil com dois filhos de 14 e 11 anos para assumir o cargo de juiz de fora na Capitania da Bahia, por encargo de Sua Majestade el-rei D. João V, o Magnânimo.
Depois, foi designado a assumir a função de ouvidor geral na Capitania de Minas Gerais, com a missão de organizar especialmente a cobrança do quinto naquela altura bastante sonegado pelos mineradores locais que faziam acontecer o magnífico ciclo do ouro na América portuguesa.
Cypriano ficou apenas 15 anos no país, mas fez muita história no curto período. O magistrado foi responsável pela expansão da exploração do ouro no Sul de Minas e fundou o Arraial de São Cypriano, que deu origem a nada menos do que 200 municípios no Estado. Mais do que isso, agregou a região à Capitania de Minas Gerais, uma vez que a vasta área situada no Vale dos Rios Baependi, Lambari e Sapucaí era reivindicada como território paulista.

Na sala de prova de vinhos se encontra muito bem-conservado o arreio usado por Cypriano no Brasil com mais de 300 de história. Ainda mais interessante é o fato de que a saga do ouvidor-geral era desconhecida da família tempos atrás até que o seu pai, o advogado Antônio João de Lacerda Andresen Guimarães, 72 anos, decidiu restaurar o enorme casarão da quinta. Assim, foram descobertas em um baú as cartas enviadas por Cypriano do Brasil para sua mulher, Maria Luísa Cerqueira de Araújo.
A correspondência, que demorava três meses para chegar a Portugal, documenta o cotidiano do ouvidor-geral nos sertões de Minas Gerais, narra a lamentável morte de um dos filhos do casal no Brasil e envia instruções detalhadas sobre os cuidados que Maria Luísa deveria dedicar às vinhas.
Todo o riquíssimo material historiográfico está registrado no livro “Cypriano Joseph da Rocha — Relato de uma Vida entre Portugal e o Brasil na ‘Idade do Ouro’”, escrito por João de Lacerda Andresen Guimarães.

A produção vinicultora da quinta tem origem no começo do século 18, mas só foi retomada pela família em 2017. A propriedade de 6,5 hectares produz em cada safra aproximadamente 90 toneladas de uvas, cuja maior parte é comercializada com as cooperativas de Ponte da Barca. O que fica na quinta é destinado à produção de vinho artesanal, com todo o processo da colheita à etiquetagem, passando pela numeração das garrafas, feito à mão.
A Quinta de Cypriano produz vinhos brancos de curtimenta — processo diferenciado que confere sabor, aroma e coloração ao produto — e tintos da casta Vinhões. Ambos elaborados a partir do esmagamento das uvas com os pés em lagar de granito, como faziam os antepassados de Leonor 300 anos atrás. A produção anual é limitada a 4 mil garrafas e repousa em barris de carvalho francês por 12 meses.
É possível fazer visita para prova e aquisição de vinhos, bem como se hospedar em um dos requintados seis quartos da linda propriedade com vista tanto do Rio Lima quanto das montanhas que cobrem o Parque Nacional da Peneda-Gerês.
Leonor é praticante de hiking e caminhada de longo curso. Embora esteja na rota do Caminho Português de Santiago, só irá fazê-lo depois de cumprir a promessa de restauração da capela de Nossa Senhora do Pilar existente na quinta, local onde estão sepultados Cyprino e Maria Luísa. Aliás, a missa do velório do ouvidor-mor, conta Leonor, foi celebrada por exatamente cem padres.
Os santos da capela estão em fase de restauração e são curiosamente negros. Leonor são sabe dizer se eles vieram do Brasil, mas há grande possibilidade, pois fazia parte da tradição portuguesa da época esculpi-los nesta coloração para a catequização dos escravos africanos.
Já a história de Nossa Senhora do Pilar está intimamente relacionada a Santiago de Compostela. Ela teria feito uma aparição para o apóstolo maior quando ele pregava na Galícia a boa nova no princípio do primeiro século da era cristã. Diz a lenda que a santa o teria convencido a não desistir de converter os povos pagãos que habitavam o noroeste da Espanha.
Marcio Fernandes, jornalista, é colaborador do Jornal Opção.