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O Kosovo é um país pobre e se assume como tal. Mesmo assim, por aqui não há favela, esgoto a céu aberto, analfabetismo, áreas dominadas por facção criminosa, jaboti que sobe em árvore —nunca cometeu a irresponsabilidade fiscal de sediar copa do mundo e olimpíadas em intervalo de dois anos — e não tem uma capital produtora de escândalos chamada Brasília.

Com os poucos recursos orçamentários disponíveis e o auxílio financeiro do Fundo Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento e do Banco Mundial, o menor país dos Balcãs está fazendo esforço enorme de investimento em infraestrutura, caminho obrigatório para superar a pobreza.

Visão geral da capital cultural do Kosovo Foto Marcio Fernandes 2025
Visão geral da capital cultural do Kosovo | Foto: Marcio Fernandes/2025

São várias frentes de ação em transporte, energia renovável, economia digital, sistemas de irrigação e saneamento etc. E não se tratam de obras típicas do Bananal Meia-Boca com indicadores de superfaturamento e baixa qualidade. Ao contrário, o país está conectado com seus vizinhos por autoestradas de padrão europeu de qualidade.

Por outro lado, as marcas dos 45 anos de dominação comunista ainda estão presentes na paisagem urbana. Antigos edifícios cinzentos, com concreto aparente e despojados de qualquer adorno, estão em toda parte. Eles foram construídos de acordo com a concepção arquitetônica do “realismo socialista”.

O horroroso estilo de arquitetura comunista Foto Marcio Fernandes 2025
O horroroso estilo de arquitetura comunista | Foto: Marcio Fernandes/2025

As edificações seguiam a regra cultural rígida do stalinismo traduzida em três mandamentos-chave: onipresença, onisciência e onipotência. Tratava-se de uma pirotecnia ideológica por meio da qual o primeiro conceito traria a igualdade, que conduzia as massas ao pensamento unificado, que por sua vez iria desaguar na aceitação bovina do Estado como provedor dos interesses sociais sob os auspícios de um líder político incontestável.

Na ocasião, havia Ióssif Stálin na ex-União Soviética e os asseclas do mandonismo marxista-leninista nos países satélites que compuseram o Pacto de Varsóvia. Ou seja, a execução do manual prático da ditadura do proletariado, a maior mentira do século 20. E não adianta me chamar de títere do bolsonarismo, pois tenho horror dos prejuízos causados por essa galera ao país. Minha ideia de Brasil é o nem Lula e nem Bolsonaro.

Cena da periferia da cidade foto Marcio Fernandes 2025
Cena da periferia da cidade | Foto: Marcio Fernandes/2025

Eu tive oportunidade de conhecer estas gigantescas edificações de aparência apavorante em Kiev, Belgrado, Escópia, entre outras cidades sitiadas pelo “realismo socialista”. São resultado desta concepção arquitetônica a expressão de se conviver com o elefante na sala. Os prédios residenciais da Asa Sul de Brasília seguem o mesmo conceito com o ponto de inflexão de terem sido desenhados para dar teto à elite política penduricalha nacional dos três poderes.

Eu achei peremptória e fantástica uma frase, estampada no alto de um paredão no centro histórico de Prizren, que resume o pesadelo das ditaduras comunistas no Leste Europeu: “A noite tenebrosa do passado abriu meus olhos e nunca mais eu dormirei como um tolo na madrugada.”

Esta torneira foi escolhida a mais linda de todas foto Marcio Fernandes 2025
Esta torneira foi escolhida a mais linda de todas | Foto: Marcio Fernandes/2025

Novas construções brotam na segunda mais importante cidade do Kosovo, Prizren, considerada o centro cultural e histórico do país.

Não há rigorosamente nada do modelo cafona dos prédios envidraçados de Miami, moda que se espalhou pelo mundo, especialmente nos países milionários produtores de petróleo. No menor país de todas as nações balcânicas, com território equivalente à metade de Sergipe e menos provido de orçamento, houve uma adaptação criativa da arquitetura comunista. Em vez do concreto seco e aparente, os novos edifícios são coloridos e com muitas facilidades de convivência social em amplos espaços verdes.

Durante a Guerra do Kosovo, esta joia rara e delicada da cultura balcânica, como de resto todo o país, sofreu inúmeros danos materiais e humanos produzidos pelas forças armadas da Sérvia. Casas foram incendidas, monumentos deliberadamente destruídos, mulheres estupradas, civis assassinados etc. Tudo programado para expulsar os kosovares de origem albanesa e muçulmana do seu país em formação.

Logomarca das forças armadas kosovares Foto de Marcio Fernandes 2025
Logomarca das forças armadas kosovares | Foto: Marcio Fernandes/2025

Em Prizren há várias esculturas em bronze em tamanho real de militares que tombaram no campo de batalha para defender o Kosovo. Em letras gigantescas (UÇK), abreviatura em albanês das forças armadas locais, existe um placar sobre a muralha do castelo para avisar o inimigo sérvio de que os militares estão sempre alertas. No mesmo sentido, os kosovares têm muito orgulho da instituição que os libertou.

Na quinta-feira, 2, em Prizren os termômetros marcavam 3 graus. Além do frio cortante, uma garoa insistente começou nas primeiras horas da manhã e não deu trégua. Chuva me deixa muito irritado por dificultar a exploração da cidade. Mesmo assim, saí para dar uma última olhada na região e conheci Illir Hodaj, um sapateiro à moda antiga que também conserta relógios de parede. Pedi licença para fotografar o ambiente da microempresa e ele continuou o trabalho na máquina de costura.

m dos minaretes da minha nova coleção foto Marcio Fernandes 2025
Um dos minaretes da minha nova coleção | Foto: Marcio Fernandes/2025

Sempre fui um admirador de portas antigas e tenho um catálogo de fotografias de fechos, cadeados e correntes que as protegem. As melhores portas são das casas abandonadas com a pintura estragada pelo tempo. Em Prizren passei a colecionar minaretes. Os brancos são os mais atraentes, mas há os ocres, os de pedra furta-cor aparente, os feitos de tijolos e por aí vai.

Por ser adepto de caminhadas de longo curso e gostar muito de praticar o montanhismo, sou desesperado por água de mina e fontes urbanas. Em Prizren elas estão por todos os lugares. Não saberia dizer a razão de as águas disponíveis em frente das mesquitas terem um sabor de pureza mais pronunciado. O detalhe mais interessante são as torneiras ricamente confeccionadas em metal trabalhado por hábeis artesãos. Eu escolhi a torneira da mesquita Saraçve, a mais bela; e a da mesquita Sinan Pasha, a mais democrática.

O sapateiro Illir Hodaj que também conserta relógios Foto de Marcio Fernandes 2025
O sapateiro Illir Hodaj também conserta relógios | Foto: Marcio Fernandes/2025

A paciência é o segredo da boa fotografia. Uma vez definido o enquadramento, é só esperar que a melhor composição venha agraciar a lente da câmera.

Em um café na periferia de Prizren havia uma banca de frutas muito bacana. Do nada, passa um senhor e faz o aperto de mão, sem parar, a um conhecido que estava sentado. Era o que eu precisava para ilustrar a reportagem. Deus está sempre ao meu lado nessas horas de precisão. Gostei demais também de uma casa cuja estrutura acompanha a curva da rua e até a chuva ajudou na composição do material.

Quando estou fora do Brasil “alguma coisa acontece em meu coração”. Sinto potencializado meu pavor pelo Zé Ramalho e o Djavan. O primeiro em decorrência do “avohai.” Não sei o que significa tamanha idiotice de péssima sonoridade. O segundo pelo incompreensível “açaí cordiã”.

O funk já dominou a cultura ocidental e no Kosovo pessoas da minha geração escutam o lixo musical, enquanto nos cafés gente de menor idade se debruça a fumar narguilé sob o batefundo da música insuportável em albanês.

No Brasil, o funk é um símbolo de uma tal resistência sem explicação. Antimusical por excelência, trata do desvalor de uma sociedade que cultua a favela, o tráfico de cocaína, a pornografia e todo tipo de ato contrário à construção de um projeto civilizacional.

O país não cabe no abismo, como disse o professor Joveny Cândido de Oliveira, em razão de sempre testar o fundo do poço. Se prosseguir na escavação da nossa capacidade de buscar o fracasso pode dar em alguma ilha da Indonésia povoada pelos dragões de Comodo.

O Brasil nasceu como uma instituição canavieira e tem como destino perder a competividade bananeira para Honduras, se insistir nos erros atuais.Tocamos tambor como ninguém e temos um capital intelectual de superficialidade superior às flores sintéticas de uma loja de bugigangas da China.

Tanto é verdade que o brasileiro com consciência investidora está transferindo os ativos financeiros para o Paraguai, país que até pouco tempo atrás era tratado por nós como sinônimo de paraíso da falsificação. Temos saída? Sim, e ela começa no aeroporto de Brasília com voo direto para o Lago Azul de Ipararaí. Quanto voltar ao Brasil vou querer minha cidadania paraguaia e baixar as músicas da Perla no Spotify.

Feliz mesmo é o Kosovo. Penou por quatro décadas e meia sob governança de ditadura comunista, foi massacrado em uma guerra que não lhe cabia participar, mas é muito feliz por ter estar a 9,5 mil km de Brasília.

Marcio Fernandes, jornalista, é colaborador do Jornal Opção.

[Email: [email protected]]