Balcãs: espasmos de uma guerra mal resolvida
01 outubro 2025 às 10h27

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Marcio Fernandes
A Guerra dos Balcãs, deflagrada após o fim da ex-Iugoslávia, se estendeu por várias etapas, em toda década de 1990, e foi uma barafunda sanguinária de briga entre irmãos. Mais de um quarto de século após a Resolução 1244 da ONU, documento responsável pelo encerramento da Guerra do Kosovo, a deposição das armas não conseguiu fechar todas as feridas.
Em Pristina, capital do Kosovo, último país balcânico criado depois da queda do Muro de Berlim, praticamente todos os dias há protestos dos kosovares contra o julgamento — no Tribunal Criminal Internacional (ICC, sigla em inglês) de Haia, Holanda — do ex-presidente do país Hashim Thaci.

Além do ex-primeiro mandatário, outros três ex-comandantes do Exército de Libertação do Kosovo (KLA, em inglês), Kadri Veseli, Rexhep Selimi e Jakup Krasniqi, estão denunciados por crimes contra a humanidade e são réus no processo.
O julgamento teve início em 3 de abril de 2023 e, na denúncia apresentada pelo Gabinete de Persecução Criminal (OTP, sigla em inglês) ao tribunal, a principal acusação é de que os réus são responsáveis pelo desaparecimento de 500 civis, sendo 400 de origem sérvia, após o encerramento da guerra em 1999.

Hashim Thaci renunciou à Presidência da República, em 5 de novembro de 2020, para não se submeter à desonra política e preservar a instituição, depois que a corte de Haia acatou a peça de acusação dos crimes de guerra no mesmo ano. Ele se encontra preso na cidade holandesa desde então.
As guerras balcânicas começaram com a secessão da Eslovênia em 27 de junho de 1991, primeira das seis províncias a se retirar da ex-Iugoslávia. O país foi formado em 1945 por uma aglomeração de nações e territórios concebida pelo Marechal Josip Broz Tito, líder partisan na Segunda Guerra Mundial.

O regime comunista manteve as províncias unidas a mão de ferro por 39 anos a partir de falsas premissas de identidade étnica, territorial e histórica próprias do dirigismo da doutrina comunista em voga na ocasião.
Tudo o que Tito manteve de pé até sua morte, em 1980, ruiu com o fim do comunismo no Leste Europeu. Interesses políticos nacionalistas de cada província, busca por poder executada por líderes locais e diferenças religiosas e raciais deram impulso aos conflitos.
A frente eslovena durou apenas dez dias e não teve maiores consequências. A Sérvia, sede da república Iugoslava e detentora do aparato militar, era a província mais poderosa das seis nações e conduziu os tanques até Luibliana. Em decorrência do fato de a Eslovênia fazer fronteira com a Itália e a Áustria, os sérvios recuaram das pretensões bonapartistas — prevendo a forte reação da Otan.

Na ocasião, a Rússia, aliada histórica dos sérvios, vivia a decadência que se seguiu à queda do Muro de Berlim. Assim, o que os russos podiam fazer, já que estavam com sua estrutura geopolítica abalada, era praticamente usar do poder de veto nas decisões do Conselho de Segurança da ONU.
O segundo capítulo da guerra foi escrito depois que a Croácia se declarou independente, em 31 de março de 1991.
Após fracassar na frente eslovena, em setembro daquele ano, o líder sérvio Slobodan Milošević, conhecido como o “Carniceiro dos Balcãs”, atacou a Croácia e saiu mais uma vez perdedor em uma guerra que durou até 12 de novembro de 1995. O saldo do conflito foi de 20 mil mortos, sendo três quartos de civis, e aproximadamente 400 mil desabrigados.

Paralelo ao conflito servo-croata, em 1992 a Bósnia-Herzegovina declarou a sua independência e a Croácia não admitiu a situação sob o pretexto de proteger a sua comunidade que habitava e habita o país fronteiriço. Ou seja, croatas e bósnios, que no começo se uniram contra o inimigo comum, a Sérvia, partiram para lutar entre si.
O auge desta fase do conflito foi o bombardeio da Ponte de Mostar, cidade bósnia, pela artilharia croata em 9 de novembro de 1994. Trata-se de uma obra-prima da engenharia otomana erguida em pedra, em um único arco, terminada no ano 1566, com 30 metros de tabuleiro e 24 metros de altura em relação ao Rio Neretva.
Para se ter noção da importância da ponte, para reconstruí-la foi realizado um esforço conjunto da Turquia, da Unesco, do Centro de Pesquisa Histórico, Artístico e Cultural Islâmico e do Banco Mundial. Mergulhadores do exército da Hungria recuperaram no fundo do Rio Neretva 456 blocos de pedra e, em 2004, a restauração foi concluída.
Eu estive em Mostar na primavera de 2019 e conversei muito com croatas e bósnios que viviam nos dois lados do rio. Os primeiros enxergavam a reconstrução da ponte como um ponto de virada na humilhação e traição a que foram submetidos pelos croatas. Estes, negavam de pés juntos que tinham destruído a belíssima ponte.
É por isso, entre outras razões, que todo desprezo é pouco para o traidor. Até hoje nas cidades da Bósnia-Herzegovina há várias casas com sinais de atividades de artilharia e edifícios em ruínas. A guerra entre Croácia e Bósnia-Herzegovina ocorreu entre 1992 e 1994.
No entanto, os sérvios que viviam em território bósnio, apoiados pelo poder militar de Milosevic, estenderam o conflito até 1995 e promoveram uma limpeza étnica no país de enorme proporção. As atrocidades mais marcantes foram o genocídio de 8 mil civis bósnios muçulmanos em julho de 1995 na cidade de Srebrenica.
Também foram estabelecidos seis campos de concentração de trabalhos forçados — três em território sérvio e três em território bósnio. Por conta dos crimes de guerra, Slobodan Milosevic morreu em sua cela de ataque cardíaco durante o andamento do processo penal da corte de Haia por crime contra a humanidade.
O Velho Continente, que parecia amargar a vergonha do Holocausto do regime nazista — cujo resultado foi o extermínio de 6 milhões de judeus e milhares de ciganos e testemunhas de Jeová —, voltava a cometer a mesma iniquidade para selar o século 20 como a Era dos Genocídios. A guerra entre sérvios, croatas e bósnios terminou com a celebração do Tratado de Dayton, assinado em 14 de dezembro de 1995 em Paris, França.

Fim da Guerra do Kosovo: 1999
Por outro lado, o acordo internacional não encerrou os conflitos nos Balcãs. Em 1989, Milosevic revogou a autonomia da província do Kosovo e alijou todos os kosovares de origem albanesa dos postos de poder. Como resultado, eles criam uma organização de fundamento guerrilheiro para combater a dominação da Sérvia. Os conflitos desencadearam a Guerra do Kosovo entre 1998 e 1999, com um saldo estimado de 13 mil mortos e uma população deslocada de 1 milhão de pessoas, sendo 80% de kosovares albaneses.
No centro histórico revitalizado de Pristina após a guerra foi erguido um monumento para marcar as atrocidades da Sérvia no conflito. A escultura foi realizada com a fundição de 20 mil medalhas de aço em honra das mulheres de igual número estupradas no período. A Guerra do Kosovo terminou em 11 de junho de 1999, após 78 dias de intensos bombardeios das forças aéreas da Otan em território sérvio, especialmente na capital do país, Belgrado.
O Brasil participou indiretamente da ação militar, uma vez que a Força Aérea Italiana empregou o caça AMX desenvolvido em conjunto com a Embraer.
O Kosovo só foi declarar a independência em 17 de fevereiro de 2008 e vive sob constante ameaça da projeção do poder militar sérvio. Em junho de 2023 houve uma grande mobilização de tropas sérvias na fronteira com o Kosovo. Embora hoje a circulação esteja aberta, é difícil prever até quando isso irá durar.
Os ressentimentos permanecem acentuados nos Balcãs. No geral, croatas e bósnios têm uma relação baseada na desconfiança, a Eslovênia não quer saber muito dos seus vizinhos e a Croácia tem restrição aos motenegrinos por serem aliados incondicionais dos sérvios. Só há um ponto em comum: com exceção de Montenegro, todos odeiam a Sérvia.
Marcio Fernandes, jornalista, é colaborador do Jornal Opção.
