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De Valência, Espanha — Se eu soubesse quanto tempo me resta de eternidade, iria pedir a Deus que me desse um dia a mais para conhecer melhor Valência, cidade espanhola que não imaginava ser a coisa mais linda do mundo. Cheguei de madrugada, depois de um voo cheio de perrengues e rodei em menos de oito horas 13,46 km pelo coração deste lugar encantado.

Valência é mais monumental do que Madri, tem um bairro chamado Eixample, assim como Barcelona, só que muito mais descolado e limpo, orla litorânea que bate de 7×1 em San Sebastian, e um povo mais feliz do que encontrei em Medina del Campo. Como se não bastasse, tem porte médio, com 850 mil habitantes.

Catedral de Valência é mais linda do que Barcelona e Madrid Foto Marcio Fernandes 2025
Ela é mais linda do que Barcelona e Madrid | Foto: Marcio Fernandes/2025

Dá para imaginar um rio seco ser transformado em um parque ambiental com 10 km de extensão, 160 metros de largura e área de 120 hectares? Chamado de Jardins do Túria, em referência ao nome do rio, esse arrojado projeto de engenharia ambiental foi realizado após uma inundação devastadora ocorrida na cidade no outono de 1957.

Para os apressados em atribuir ao aquecimento global toda ocorrência ambiental, os Jardins do Túria são uma obra planejada de desvio e drenagem do antigo leito do manancial e está em constante aprimoramento. Ao contrário, trata-se de monumental exemplo de conversão de um dano ecológico em resultado de ampla abrangência socioeconômica.

A cidade pós-moderna em perfeita transformação Foto Marcio Fernandes 2025
A cidade pós-moderna em perfeita transformação | Foto: Marcio Fernandes/2025

Construído durante a ditadura de Francisco Franco (1939-1975), sem dúvida é o espaço mais democrático de Valência. Dividido em 18 trechos, delimitados por igual número de pontes, as mais antigas construídas entre os séculos 15 e 18, os Jardins do Túria abrigam um extraordinário equipamento cultural e científico.

Ao longo do leito seco de riquíssima arborização estão situados oceanário, ecozoo, palácio dedicado à música, pinacoteca, monumentos históricos com mais de 700 anos, para não mencionar a magnífica Cidade das Ciências e Artes incorporada à paisagem urbana em 1998 a partir de arrojada e funcional arquitetura pós-moderna.

Com amplas ciclovias e espaços para todo tipo de lazer, os Jardins do Túria são um lugar ideal para se exercer a liberdade. Ao percorrê-los você vai encontrar gente fazendo piquenique, alma solitária em meditação, praticantes de ioga, fontes de água pura e oliviais com cachos prontos para a colheita.

Centro histórico: coisa de outro mundo

Palácio quinhentista em estilo gótico Marcio Fernandes 2025
Palácio quinhentista em estilo gótico | Foto: Marcio Fernandes/2025

O centro histórico de Valência é alguma coisa de outro mundo com um esbanjamento de modelos arquitetônicos de suntuosidade sem igual traduzidos nos estilos gótico, neobarroco, art decó, entre outros. Para os amantes de mercado de alimentos, como eu, a cidade supera os mais renomados de Madri e Barcelona.

Devem constar da lista de mercados imprescindíveis em sua passagem pela cidade, o Central e Colón pela beleza e monumentalidade, mas não deixe de dar uma passada pelo Ruzafa, onde se encontra de tudo sem ter de esbarrar em turistada tirando selfie.

Um dos magníficos mercados de Valência Foto Marcio Fernandes 2025
Um dos magníficos mercados de Valência | Foto: Marcio Fernandes/2025

De igual forma, depois do exaurimento do centro histórico, cheio de paellas falsificadas e croquetas impostoras, vá se alimentar nas centenas de restaurantes, bares e cafeteiras tradicionais e rigorosamente de todas as partes do mundo em Eixample.

As padarias são lindas de chorar e as adegas verdadeiras catedrais de vinhos qualificados e muito baratos de toda a Espanha. Certamente você vai encontrar um vendedor que entenda tudo do assunto e se sentir muito orgulhoso de apresentar as castas locais de indispensável apreciação.

Uma linda porta da sofisticada Eixample Foto Marcio Fernandes 2025
Uma linda porta da sofisticada Eixample | Foto: Marcio Fernandes/2025

Aliás, o valenciano não precisava se sentir honrado com elogios sobre a cidade, no entanto os locais vão abrir as portas do céu caso você diga, mesmo em portunhol, alguma palavra de carinho ou afeição. Por falar em portas, eu dediquei o pouco tempo em Valência para fazer um circuito aleatório de namoro das entradas dos edifícios.

Seja em aço de desenho detalhado seja em madeira com entalhe sofisticado, as portas de Valência são um detalhe fundamental desta cidade feita de arte. Elas estão em toda parte no centro histórico, mas como demandam tempo de observação e namoro ininterruptos, recomendo muito as portas de Eixample, desenhadas no começo do século passado, e absolutamente invisíveis para turista de ônibus de excursão.

Torres de Serrano na Valência de dois milênios Foto Marcio Fernandes 2025
Torres de Serrano na Valência de dois milênios | Foto: Marcio Fernandes/2025

Guardo uma paixão antiga por portas medievais, pois elas me trazem a segurança própria de inexpugnáveis fortalezas e muralhas. Em Valência, encontrei nas Torres de Serrano a mais opulenta porta desde que comecei a admirá-las, quando ainda habitava um burgo muito pobre em Navarra, antes da peste negra dizimar minha aldeia em 1349. Situada no arco central das duas torres, possui cinco metros de altura, seis de largura e um palmo e meio de espessura em madeira de lei. Fotografá-la me fez ganhar o dia.

Os Jardins do Túria, espaço democrático da ditadura de Franco Foto Marcio Fernandes 2025
Os Jardins do Túria, espaço democrático da ditadura de Franco | Foto: Marcio Fernandes/2025

Você pode revirar Eixample de ponta a cabeça e não vai encontrar uma porta igual a outra. Não tenho certeza, mas é razoável supor que os arquitetos as desenhavam para habilidosos artesãos as esculpissem ou moldassem para distinguir cada edifício. O fato é que nunca meu amor pelas portas foi tão correspondido como em Valência, ainda que elas estivassem fechadas.

O detalhe de uma fechadura em bronze e do entalhe do brasão de nobre família foram fundamentais para que eu jurasse amor eterno à cidade. Deus sabe o que faz e decidiu que era hora de eu voltar para casa. Em todo o caso, se algo acontecer no caminho, por favor entregue essa carta de amor por Valência, que está quase no fim, na Calle Conde de Altea, 14, aos cuidados de Romón Vivó — Serviços Funerários. E brinde com ele um vinho chamado Ladrão de Lua, servido com paella comprada no Mercado de Ruzafa.

Marcio Fernandes, jornalista, é colaborador do Jornal Opção.