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Respeito, mas estou longe de ser admirador da suntuosidade das igrejas. Se tiver de pagar para ingressar em qualquer catedral, passo só uma olhada por fora e está vista a monumental obra. Nos meus 30 anos de viagem, em Escópia, capital da Macedônia do Norte, tive pela primeira vez a oportunidade de presenciar a inauguração de uma igreja. Nunca testemunhei nada parecido, mesmo no que se refere a esses templos evangélicos de pastores malandros.

Interior da Igreja São Constantino e Santa Helena foto Marcio Fernandes 2025
Interior da Igreja São Constantino e Santa Helena | Foto: Marcio Fernandes/2025

Trata-se da Igreja de São Constantino e Santa Helena, cuja pedra fundamental foi lançada em 2025, dentro do Projeto Escópia 2010, destinado a revitalizar o até então cinzento centro histórico da cidade. A obra gerou várias controvérsias em Escópia.

A primeira partiu da comunidade muçulmana minoritária de origem albanesa. Os islamitas reivindicaram o direito de construir uma mesquita na apertada Praça Macedônia, local em que foi erguida a igreja cristã ortodoxa, como se não houvesse na cidade 22 templos destinados aos seguidores de Maomé e 580 em todo país.

Outra questão levantada foi em relação à impropriedade de o dinheiro do pagador de impostos ser empregado na realização da obra, uma vez que na Macedônia o Estado é laico. A igreja é linda, com domos revestidos em material metálicco dourado, e guarda no interior muito luxuoso um lampadário com uns cinco metros de diâmetro em ouro. Também são alguma coisa de outro mundo os mosaicos de ícones bizantinos nas paredes do templo, bem como o piso revestido em um mármore muito sofisticado.

O governo macedônico não revela o custo do projeto, mas com certeza alcançou algumas centenas de milhões de euros. Na manhã do domingo, 27, havia fila de dobrar quarteirão de cristãos ortodoxos para ingressar na igreja pela primeira vez e os patriarcas estavam felizes da vida com a obra. Falta terminar a torre de 50 metros de altura.

Eu sei que não há solução para minha capacidade de manchar todas as roupas com dentifrício. Deve ser porque tenho pai e filha dentistas. Deve ser por conta da dislexia que me faz perder uma melancia na geladeira de casa. Foi por isso que parei de dirigir automóveis, depois de destruir o meu amado Fiat Cinquencento. Ele tinha 12 anos de uso, estava novinho, e nunca vai me perdoar pela perda total da companhia de seguros.

Saco de amendoim anunciado em cirílico Marcio Fernandes 2025
Saco de amendoim anunciado em cirílico | Foto: Marcio Fernandes/2025

Eu nunca fui aos cemitérios para limpar ou deixar flores em honra dos meus ancestrais e parentes colaterais. Acho o Dia dos Mortos uma abominação da doutrina cristã. Eles se foram e a saudade doída não precisa de enfeites ou aroma das rosas. Não há reparo para coração mordido. Por ser um observador distante de cemitérios, decidi nunca mais visitar memoriais destinados ao Holocausto. Acabei por quebrar a regra em Escópia e saí do museu impressionado com a falta de respeito dos negadores do extermínio em massa do povo judeu na Segunda Guerra Mundial.

Tudo o que sei fazer na cozinha é omelete, além da habilidade extraordinária de compor sucos com a mixação de frutas que não se dialogam. Deve ser por isso que tenho fascinação por feiras livres. Elas estão em todas as minhas agendas das cidades que descobri. Foi assim em La Paz, na Bolívia, em Marraquexe, no Marrocos, ou em Kiev, na Ucrânia. Em Escópia não foi diferente no sábado, 27, de garoa intransigente. Fui lá conhecer cebola, alho, temperos, melões, azeitonas e um fascinante saco de amendoim anunciado em cirílico.

Sorriso aberto da vendedora de abóboras ornamentais foto Marcio Fernandes 2025
Sorriso aberto da vendedora de abóboras ornamentais | Foto: Marcio Fernandes/2025

Por não conseguir decifrar nada do idioma eslavo, dei à feira de alimentos a denominação de Alegria, embora ela se chame Mercado Bunjakovec. Encontrei uma vendedora de abóboras ornamentais que abriu largo sorriso para a fotografia autorizada. Outra dona de banca de maçãs adorou eu ser brasileiro sem mencionar nada de futebol, samba, mulata, carnaval e Amazônia.

Por fim, a que falava inglês, me disse se chamar Ajnur e me deu de presente a prova de várias sementes. Não fossem as necessárias barreiras sanitárias do Aeroporto de Brasília, iria levar para casa as abóboras ornamentais que colhi na câmera fotográfica.

Vou morrer de saudade da Macedônia do Norte pelo tanto que fui bem tratado por lá e para exercitar esse sentimento tão peculiar e gostoso que a civilização portuguesa legou ao Brasil. Eu tenho uma lista de saudades escritas a lápis. Nunca usei a borracha para apagá-las.

Uma das dezenas de joalheiras do Antigo Bazar Foto Marcio Fernandes 2025
Uma das dezenas de joalheiras do Antigo Bazar | Foto: Marcio Fernandes/2025

No topo das saudades comestíveis estão o picolé de groselha, a Mirinda sabor laranja, o chá de canela da avó Joanita, o horrível arroz Maria Isabel da avó Carlota, o biscoito de queijo tipo orelha da minha mãe, o frango capira da Guilhermina e o Filé à Chateaubriand do falecido Restaurante Salerno em Goiânia.

Embora tivesse pouco mais de 1 ano de idade quando ocorreu o golpe militar de 1964, tenho saudade do ex-presidente João Goulart pelo tanto que falavam dele na casa de meu pai nos almoços subversivos de domingo com o avô e os tios ateus e marxistas. Sinto muito não ter saudade das almas penadas que diziam morar na escada de casa. Simplesmente para mim alma e fantasma não existiam.

A Macedônia decidiu varrer a saudade do mapa por conta dos 45 anos de dominação comunista. Eles cortaram as conexões com o passado e a nova geração faz o que bem entende sem ser incomodada pelo Estado. Durante a ditadura do Marechal Josip Broz Tito (1945-1980) até respirar na Macedônia poderia ser considerada atividade subversiva.

Há um cálculo de que Tito, conhecido como o “ditador benevolente”, aprisionou e torturou aproximadamente 30 mil oponentes, grande parte membros do Partido Comunista Iugoslavo, que não seguiram suas orientações ideológicas depois de ter rompido com Óssip Stálin em 1948.

O Brasil, durante o governo Geisel, teve uma ligação próxima a Tito por simpatizar pela doutrina do Movimento dos Não Alinhados, liderado pelo ditador iugoslavo. Na época, a diplomacia brasileira era comandada por Antônio Francisco Azeredo da Silveira e seguia a orientação de certo “pragmatismo responsável”. A expressão significava a mesma inominável bobagem do governo Lula em cultuar o Sul Global. Não deu resultado no passado e está fadado a ser um fiasco.

Nas ruas do Antigo Bazar de Escópia joalheiras se enfileiram com uma enorme quantidade de peças moldadas de acordo com a muito rica ourivesaria do país. De onde será que eles tiram tanto ouro e encontram compradores para peças só acessíveis a milionários? De longe, o reflexo das vitrines parece cobrir as ruas com o metal precioso. Eu prefiro o sorriso da vendedora de abóboras ornamentais da Feira da Alegria.

Marcio Fernandes, jornalista, é colaborador do Jornal Opção.