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A expressão morar na obra significa aquela situação em que a pessoa reside em determinado imóvel que está em construção, passa por reforma ou tem em andamento a edificação de um puxadinho. Esta é primeira impressão que se tem de Tirana, capital da Albânia, país mais meridional dos Balcãs e o único da região que não pertenceu à ex-Iugoslávia. As obras estão em todos os lugares desde públicas, em infraestrutura, passando por investimentos privados em diversos ramos de atividades e residenciais. Tudo parece inacabado.

Assim, o segmento de construção é, ao lado de serviços, a locomotiva que puxa a economia albanesa. No ano passado eles cresceram 3,9% e devem manter esta taxa de forma sustentável por conta de várias reformas estruturais que inseriram o país na economia de livre-mercado e cada vez mais integrada à União Europeia, ainda que não pertença ao bloco. Outro dado positivo é tendência de queda da inflação: em 2022 atingiu 6,7%, no ano seguinte caiu para 4,8% e em 2024 despencou para 2,2%.

Enver Hoxha o ditador da Albânia
Enver Hoxha: Albânia democrática deixou nos arquivos a figura do ditador | Foto: Marcio Fernandes/2025

A Albânia passou por um perrengue de longa duração no século passado por conta da ditadura de base stalinista (1946-1985), liderada pelo sanguinário Enver Hoxha, um narigudo com cara de Zé Ruela de 1,82m de altura. Milhares foram assassinatos e outros tantos aprisionados em campos de concentração de trabalhos forçados, inspirados no modelo soviético (Gulag). Naqueles 39 anos, período nefasto da história albanesa, o país foi um dos mais fechados do planeta e o primeiro a estabelecer, em 1967, o ateísmo como “religião” oficial do Estado.

Ainda que extremamente traumatizante, a ditadura de Hoxha ficou no passado. Dela só restou praticamente a vila onde o ditador morava junto com a elite do regime, inclusive o temido serviço de inteligência (Sigurimi). Hoje está convertida em centro cultural e possui algumas peças de antiquário do período no mercado de Tirana, o belíssimo e vibrante Novo Bazar, a maior atração turística no centro da cidade.

Bashkim Pitarka Foto de Marcio Fernandes 2025
Bashkim Pitarka pertenceu ao Partido Comunista e serviu na ONU como embaixador da Albânia | Foto: Marcio Fernandes/2025

Perto dali, encontro o falante Bashkim Pitarka, 83 anos, que me convida para xícara de café e conta que pertenceu ao Partido Comunista, além de ter servido na Organização das Nações Unidas (ONU) como embaixador da Albânia. Poliglota, Pitarka arrisca umas palavras em português para me desejar boa sorte na viagem.

A Albânia é uma democracia plena e pode ser chamada de país de segundo mundo. Apesar ser o mais pobre do Velho Continente, possui um PIB per capita de 10 mil dólares, um pouco acima do brasileiro. Enquanto no Bananal Desalmado 1% da população fala inglês, de acordo com pesquisa da Comissão Europeia de 2015, aproximadamente 70% dos albaneses têm algum nível de proficiência na língua inglesa, o que supera os idiomas dos vizinhos Itália e Grécia.

O albanês é uma língua única do ramo indo-europeu com influência do latim, devido à presença romana, do grego, país fronteiriço, do eslavo, adquirido na Idade Média, e do turco, por conta da dominação de 500 anos do Império Otomano. A audição é incompreensível para quem fala português, no entanto o básico dos logradouros de serviços como farmácia, ambulância, polícia, restaurante etc é mais ou menos universal.

Mercado de Tirana Novo Bazar foto de Marcio Fernandes 2025
Novo Bazar: mercado de Tirana | Foto: Marcio Fernandes/2025

Dizer, por exemplo, muito obrigado, é mamão com açúcar: “shumë faleminderit”. Para dar um simples bom dia basta pronunciar: “mirëmëngjes”. Muita atenção ao relógio neste momento, pois a expressão só pode ser utilizada até o meio-dia.

É muito fácil se comunicar em qualquer parte de Tirana, sem contar que o povo é de uma gentileza extraordinária. Não há o menor sinal de violência nas ruas e também raramente se observa policiamento ostensivo. Ao contrário, nos espaços públicos da cidade o que eu mais encontrei no domingo foram crianças às dezenas a brincar livremente, enquanto nos inúmeros cafés da cidade, locais e turistas dividem as mesas na rua sem o menor sinal de perturbação da paz social. Aliás, mesmo no domingo, o comércio fecha à meia-noite.

Tirana não pode ser considerada uma cidade limpa se comparada com outras localidades da União Europeia, mas é muito mais asseada do que qualquer grande aglomerado urbano do Brasil. Nas ruas da cidade há uma diversidade de aromas de café, tabaco, pão e das albanesas sempre muito perfumadas. Nos estabelecimentos de frutas e legumes, o que ressalta é a saúde dos produtos oferecidos em uma profusão de cores e sabores.

Construção de Tirana Foto Marcio Fernandes 2025
Construções da cidade de Tirana | Foto: Marcio Fernandes/2025

No geral, o custo de permanência do turismo é baixo em relação ao resto Europa, com destaque para hospedagem que chega a significar alguma coisa 80% menos onerosa do que Amsterdam ou Viena. A alimentação nos restaurantes também é bem inferior a Lisboa, por exemplo, mas o sensacional vinho local é caro, mesmo em adegas e supermercados.

O transporte público é só razoável e centrado nos ônibus, uma vez que não há linha de trem no país nem metrô em Tirana. Se na horrorosa ditadura de Enver Hoxha o ateísmo era uma imposição de Estado, hoje o país é laico e há total liberdade da prática religiosa. Cerca de 51% dos albaneses são muçulmanos sunitas, 8,4% católicos romanos e 7,2% cristãos ortodoxos. O restante não declara ou simplesmente se exclui de qualquer religião.

Mesmo tendo maioria de seguidores das leis de Maomé e possuir lindas mesquitas, em Tirana é raro observar pessoas trajadas de acordo com a tradição religiosa. Eu mesmo vi poucas mulheres usando o lenço que as distingue (hijab) e zero de senhoras de burca.

O país que exerce maior influência cultural sobre os albaneses é a Itália, que tem como fronteira o Mar Adriático. Nas gôndolas dos supermercados, então, é como se você estivesse em qualquer cidade italiana, tamanha a presença de produtos importados do país da primeira-ministra Giorgia Meloni.

Ao deixar o aeroporto de Tirana, será inevitável o assédio de taxistas clandestinos, o que não é nada ofensivo. Como tenho por hábito usar exclusivamente o transporte público por onde passo, descolei um ônibus velho e sujo cujo ponto final é a gigantesca Praça Skanderbeg. Em vez de gastar 25 euros com táxi, e correr o risco de tomar uma volta grande e clássica, morri em menos de quatro euros.

Mal cheguei na cidade e já conheci um jornalista muito gente fina, Endrit Sauku, que me levou diligentemente a um wine bar.

Em seguida, ao ser solicitado por dois catiretes, provavelmente indianos, indiquei o local onde eles poderiam encontrar informação sobre um certo cassino. Tenho horror a jogatina. Por fim, socorri uns muçulmanos que saíam da mesquita em uma van ao dar instruções para eles manobrarem o veículo em ruela estreita.

Para entender o câmbio do lek, moeda oficial da Albânia, em relação à unidade monetária da União Europeia, é só dividir o valor indicado por 100. Demorou um pouco o trajeto até o centro de Tirana, mas, nesta altura das coisas, pressa é algo que passa longe das minhas viagens de mochileiro sexagenário e profissional, com 12 anos de atividade no currículo. No caminho, fui observando um país em construção.

Marcio Fernandes, jornalista e escritor, é colaborador do Jornal Opção.