COMPARTILHAR

Existe uma Lisboa muito além dos lugares-comuns da Baixa Pombalina e do Chiado. Chamada de Avenidas Novas, a freguesia de 23 mil habitantes e área de 2,93 km², localizada imediatamente ao norte da Praça Marquês de Pombal e a 3 km das margens do Rio Tejo, é o endereço mais sedutor da capital portuguesa.

Identificada por régio brasão de fundo azul escuro, a história da ocupação desta área, hoje nobre, na qual se concentra o maior centro de negócios de Lisboa, remonta os anos 50 d.C. Na ocasião, os romanos traziam os produtos agrícolas que iriam abastecer as vontades dos césares que dominavam a Europa e o Oriente Próximo.

Vias amplas amplas e arborizadas Foto Marcio Fernandes 2025
Vias amplas amplas e arborizadas | Foto: Marcio Fernandes/2025

O destino de nobreza de Avenidas Novas foi definido mesmo após o terremoto de 1755, seguido de tsunami e incêndios, que devastou sobretudo a Baixa. Temente de outras ocorrências sísmicas de igual magnitude, os lisboetas mais prevenidos de fortuna decidiram ocupar o território no qual está assentada a freguesia.

Em 1888, por obra do engenheiro Ressano Garcia, Avenidas Novas recebeu a atual configuração urbanística, marcada por largas vias perpendiculares de monarca arborização composta de acácias, choupos, plátanos, faias e aliantos.

A freguesia ficou assim depois da revitalização Foto Marcio Fernandes 2025
A freguesia ficou assim depois da revitalização | Foto: Marcio Fernandes/2025

O redesenho da freguesia foi inspirado no Plano de Extensão de Paris, empreendido por Georges-Eugène Haussmann, do qual Garcia assistiu acontecer quando era estudante da École Imperiale des Ponts et Chaussée.

Na virada do século 19, até por volta de 1950, Avenidas Novas consolidou o emprego dos estilos arquitetônicos Art Nouveau e principalmente Art Déco, sendo o último de uma das presenças mais significativas de toda Europa.

É alguma coisa de singular prazer a bateção de pernas pela freguesia de calma atmosfera para admirar essas preciosidades arquitetônicas. Elas adquirem luz própria no sol da manhã e são ainda mais ressaltadas quando o cair da tarde faz as paredes em tom pastel traçar as linhas retas dos dias lindos.

A imagem dos dias lindos em Avenidas Novas Foto Marcio Fernandes 2025
A imagem dos dias lindos em Avenidas Novas | Foto: Marcio Fernandes/2025

Em 2025 foi concluída uma obra de grande porte com a finalidade de revitalizar o piso das ruas de Avenidas Largas. O solo coberto de paralelepípedo de granito negro, cravejado de tons brancos, é a fotografia desta freguesia essencialmente artística e de robusto equipamento cultural.

Estão contidos no território da freguesia o Parque Eduardo VII, a arejada Praça de Espanha, a Universidade Católica de Lisboa, importantes museus, opulentos palacetes e a fenomenal Fundação Calouste Gulbenkian. Trata-se de um dos maiores centros de arte do Velho Continente, razão da meu primeiro encontro e encanto por Avenidas Novas.

É imprescindível bater pernas para apreciar o bairro Foto Marcio Fernandes
É imprescindível bater pernas para apreciar o bairro | Foto: Marcio Fernandes/2025

Dica do amigo Luiz Gravatá, depois que o visitei, uns 20 anos atrás, comecei a me interessar pela freguesia e nunca mais me hospedei em outro lugar em Lisboa. Por aqui eu fico longe da turistada da Baixa Pombalina e da Mouraria.

No começo das minhas temporadas por Avenidas Novas, os hotéis eram muito mais em conta do que o burburinho do Chiado, mas hoje tudo mudou, já que a especulação imobiliária e os aluguéis de temporada levaram as tarifas acima dos dois dígitos em euro.

Fundacao Calouste Gulbenkian Lisboa
Fundação Calouste Gulbenkian Lisboa | Foto: Wikipédia

Calouste Sarkis Gulbenkian (1869-1955) era um engenheiro e negociante do ramo de petróleo de origem armênia, nascido no Império Otomano, de cidadania britânica e apaixonado por Lisboa.

Grande colecionador de arte, sua vida e obra estão intimamente ligadas ao florescimento de Avenidas Novas como centro cultural de excelência. Praticante do mecenato, chegou a Lisboa adoentado em 1942 durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Foi perseguido pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) do regime salazarista, mas ao morrer deixou parte considerável da sua fortuna para a constituição da fundação que leva o seu nome.

Margarida de Magalhães Ramalho

Parte da história de Gulbenkian é contada no livro “Lisboa — Uma Cidade em Tempos de Guerra”, da historiadora da arte Margarida de Magalhães Ramalho. A obra narra com muito fôlego o ambiente de conspiração e espionagem que Lisboa viveu durante a Segunda Guerra Mundial.

Agentes secretos Aliados e do Eixo se misturavam na capital portuguesa em atividades legais e clandestinas de informação e contrainformação, a reproduzir o roteiro do filme “Casablanca”, do diretor Michael Curtiz.

Gulbenkian, homem que enxergou oportunidades de negócios como ninguém nos tempos de guerra, avolumou ainda mais sua fortuna na aquisição de obras de arte e joias de refugiados europeus. A maioria judeus milionários, que fizeram passagem por Lisboa em busca de asilo nos Estados Unidos e na América do Sul, especialmente Argentina e Brasil.

Nada abala a calma de Avenidas Novas quando o sol se põe Foto Marcio Fernandes 2025
Nada abala a calma de Avenidas Novas quando o sol se põe | Foto: Marcio Fernandes/2025

Portugal do Estado Novo de António Salazar, embora tenha mantido posição de aparente neutralidade durante a guerra, teve um papel estratégico na evolução do conflito. O Arquipélago dos Açores era vital para as operações navais americanas e o tungstênio extraído das aldeias pobres do país foi fundamental para movimentar a indústria bélica nazista.

Recomendo muito o livro, presente do amigo e bibliógrafo Marcelo Franco, por se tratar de obra de extraordinária narrativa historiográfica, que te prende linha por linha naquelas leituras de enfiada.

Avenidas Novas é um paraíso de restaurantes tradicionais, bistrôs étnicos, confeitarias suntuosas e cafés literários. Há uma rede hoteleira estrelada destinada a milionários, na qual a elite cartorária do Brasil se esbanja em suítes imperiais às custas do pagador de impostos do Bananal Penduricalho.

Tenho por hábito não recomendar restaurante em obediência ao princípio da pessoalidade, mesmo porque só vou aos rés do chão. Por outro lado, seria ato falho imperdoável não mencionar o Galeria 44. Trata-se de estabelecimento estreito, com capacidade de 63 lugares, fundado em 1970 e desde 2019 sob o comando do pra lá de simpático João Roberto, 57 anos completados hoje, 10 de outubro.

O carioca João Roberto tem o melhor restaurante do bairro Foto Márcio Fernandes
O carioca João Roberto tem o melhor restaurante do bairro | Foto: Márcio Fernandes/2025

João Roberto é um carioca que se cansou do Rio de Janeiro e da vida no mercado financeiro para ter seu próprio negócio em Lisboa. O Galeria 44 tem um ambiente o mais simples possível e o cardápio muda todos os dias, conforme a tradição lisboeta.

A comida é sensacional e por 12 euros em média você vai se fartar com pratos volumosos e de sabor inigualável, sem falar do tratamento cordial impresso no negócio de família. Não se assuste na hora de pagar a conta se o muito educado João Roberto conferir a procedência das moedas. Não é ato de desconfiança. O gesto é motivado por ele ser colecionador de moedas da União Europeia.

Caso bata aquela saudade de arroz, feijão preto, vinagrete, picanha, batata frita e farofa, dentro do “Projeto Eu Amo o Meu Brasil”, o lugar é o Galeria 44. Rola até uma feijoada brasileira e outra chamada cachupa, prato similar introduzido no cardápio por sugestão de duas funcionárias de Cabo Verde. Quem bate ponto por lá é o jornalista Alexandre Garcia. Se alguém quiser me encontrar em Avenidas Novas é só passar por lá por volta das 15 horas.

Marcio Fernandes, jornalista, é colaborador do Jornal Opção.

[Email: [email protected]]