Um dos assuntos que tomou o cenário político desde o ano passado foi a regulamentação das apostas online no Brasil. A cobrança de impostos das plataformas serviu como forma de legalizar às atividades delas no país. Essas empresas faziam – e ainda fazem – verdadeiras enxurradas de propagandas nas redes sociais – incluindo com a presença de influenciadores digitais – para angariar novos apostadores. Entretanto, o que quase não se fala é que a regulamentação sem acompanhamento por parte do poder público tem levado ao aumento de pessoas viciadas em jogos de azar. 

As apostas esportivas de quota fixa foram liberadas pela primeira vez no Brasil no final do governo de Michel Temer (MDB), em 2018, pelo Congresso Nacional. Na época, foram liberadas as bets e previa a regulamentação do setor até 2022. Entretanto, a pauta não avançou no governo de Jair Bolsonaro (PL) e voltou à discussão no governo Lula (PT). Dados do Ministério da Fazenda, após a regulamentação, mostram que, no primeiro semestre, 17,7 milhões de brasileiros realizaram apostas de quota fixa. Desse número, 71% são homens e 28,9% são mulheres, segundo o relatório do Sistema Geral de Gestão de Apostas. A receita bruta das empresas autorizadas foi de 17,4 bilhões nos seis primeiros meses de 2025, o que culminou na arrecadação de R$ 3,8 bilhões ao Governo Federal. 

Apesar disso, pouco foi discutido em relação às pessoas viciadas em jogar. Esse vício, inclusive, já é reconhecido como uma doença pela Organização Mundial da Saúde e foi batizada de ludopatia. Inclusive, conta com Cadastro Internacional de Doenças (CID) 10-Z72.6 (mania de jogo e apostas) e 10-F63.0 (jogo patológico). Na portaria de regulamentação (n° 1.231/24), o artigo 23 – que trata sobre os direitos do apostador – traz que o apostador “pode escolher opções de controles, como alerta de tempo e gasto, limites e pautas ou autoexclusão”. Essas medidas serviriam como forma de prevenção ao vício mas que, sozinhas, têm se mostrado ineficientes. 

A realidade tem se mostrado ainda mais dura para pessoas mais carentes. Já que um levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU) apontou que integrantes de famílias com algum beneficiário do Bolsa Família transferiram R$ 3,7 bilhões para casas de apostas em janeiro deste ano. O montante corresponde a 27% dos R$ 13,7 bilhões distribuídos pelo programa no primeiro mês de deste ano. Das 4,4 milhões de famílias de beneficiários que tiveram algum apostador, 3,2 milhões transferiram até R$ 600 para as bets. Outras 371,7 mil usaram até R$ 1 mil, e 820,2 mil mais de R$ 1 mil. Dados do Instituto Locomotiva, feita em agosto deste ano, mostram que 86% dos apostadores acumulam dívidas, 64% estão negativados e 63% comprometem a renda mensal para apostar. 

Essa realidade está mais próxima do que se imagina. Durante uma corrida de aplicativo, deparei-me com o motociclista explanar de maneira natural o seu vício em jogar. Durante os 20 minutos de um trajeto de quase nove quilômetros, ele relatou tudo o que fazia para conseguir dinheiro para jogar no “tigrinho”. 

Ele afirmou trabalhar na plataforma “algumas vezes na semana” para apostar no jogo de azar. Questiono se ele se considera um viciado, e ele acena a cabeça em sinal positivo. Ele relata que perdeu casa, família e amigos por causa da aposta. Ao mesmo tempo, se demonstrou orgulhoso com a troca dos pneus da moto, o pagamento do aluguel e a possibilidade de garantir a cervejinha do fim de semana com o que arrecadou em um dos poucos momentos de vitória na plataforma. A fala descreve a montanha-russa constante entre ganhar e perder que os jogos de azar proporcionam.

Esse motorista, certamente, não entende que ele está doente e que precisa de tratamento. Por causa desse aumento de número de apostadores, onde dados são ociosos, há algumas ações para ajudar pessoas que já perderam tudo por causa da ludopatia. Mas o que explica essa busca incessante em apostar? O psicanalista Leandro Borges afirma que o vício não é um problema de escolha consciente e a adicção — seja à droga, ao álcool ou ao jogo — não é uma questão racional.

“O jogador compulsivo não perde porque desconhece o prejuízo. Ele perde sabendo, mas não conseguindo parar. Freud (1920) já mostra que a compulsão se liga à repetição do gozo, não ao prazer. Quando o sujeito aposta, não é o Eu que decide e, sim, é a pulsão”, conta.

O profissional ressalta que a regulamentação é importante, já que as empresas têm apelado pelos fatores sensoriais para induzir a pessoa a continuar apostando. “O jogo trabalha com mecanismos que anulam o controle. A indústria dos jogos sabe muito bem disso. Usam luzes, sons repetitivos, vitórias pequenas para manter esperança, perdas controladas que convidam a apostar mais, quase-vitórias (o número chegou perto), gratificação imediata e o loop infinito. Tudo isso captura o sujeito no gozo do Um: repetitivo, hipnótico, solitário. Ninguém desliga uma máquina que lhe dá a sensação de ‘quase ganhar’.”

Para ele, a situação já é uma questão pública porque já não trata mais de escolha pessoal. “Há um aumento significativo de pessoas endividadas, que estão adoecidas psiquicamente, que já tentaram o suicídio, que romperam os laços familiares, que chegaram à ruína econômica e, mesmo assim, são incapazes de parar de jogar. Então, o poder público já tem responsabilidade sanitária, como tem com alcoolismo, tabagismo e outras adicções. A lógica do ‘cada um controla o que faz’ desaparece. É um problema que atinge famílias, serviços de saúde, previdência, economia e até segurança pública”, afirma.

Jogadores Anônimos

Na busca de tentar reverter o cenário, entra o Jogadores Anônimos (JA), que é uma irmandade cuja o objetivo principal é parar de jogar e ajudar outros jogadores a fazerem o mesmo. A rede é composta por homens e mulheres em todo o mundo. 

A irmandade funciona com encontros semanais, onde eles compartilham suas experiências e mostram que é possível sair dessa situação difícil que se encontram. “O programa é baseado nos Alcoólicos Anônimos (AA) e conta com 12 passos de recuperação. O primeiro passo é admitir que é impotente perante à primeira aposta e o último passo é levar uma mensagem ao jogador compulsivo, que sofre”, explica o representante do grupo, que prefere não ser identificado devido às regras de participação do programa. 

Apesar da falta de dados precisos, ele explica que o número de pessoas procurando ajuda para controlar o vício tem crescido vertiginosamente com o passar dos anos. “Há cinco anos, nós tínhamos aqui no Brasil uma faixa de 25 grupos. Hoje já estamos passando de 67. A procura está muito grande, principalmente após a pandemia. A regularização dos jogos fez aumentar muito a procura também. Nossa sala costumava ter de seis a sete pessoas. Hoje temos de 20 a 25 pessoas por reuniões”, explica. 

O representante afirma que o grupo não comenta questões políticas e afirmou que o trabalho é mantido com doações realizadas pelos próprios participantes. Ele reforça que a questão do vício em jogos já é uma questão de saúde pública. “Tanto é que se tornou um problema de saúde pública que tem pessoas que ainda não conhecem os Jogadores Anônimos, e a família acaba internando em uma clínica psiquiátrica. As próprias clínicas acabam indicando os Jogadores Anônimos para os internos continuarem os seus tratamentos”, afirma.

Ele ainda faz questão de resumir a sua história de superação. “Eu sou um jogador do possível em recuperação. Eu estou há 19 anos e 52 dias sem fazer a primeira aposta. Aqui no Brasil, o grupo já tem mais de 26 anos. Eu comecei a jogar compulsivamente quando os bingos foram regularizados aqui no Brasil. Eu já jogava, mas não compulsivamente. E eu cheguei quase ao fundo do poço: pensei em tirar minha vida por conta do jogo, perdi muito dinheiro, família. Eu estava ficando quase sem saída até quando eu descobri o JA. Eu não só parei de jogar, mas recuperei a minha vida. Recuperei tudo que eu perdi. Eu sei que nós temos uma doença emocional de natureza progressiva que nenhuma força de vontade humana é capaz de deter ou controlar, mas é uma doença que não tem cura, mas tem um tratamento, que é a nossa terapia.”

Segundo Ministério da Saúde, segundo os Sistemas de Informações Ambulatoriais e Hospitalares do SUS, entre janeiro e agosto de 2025, foram registrados 10 atendimentos ambulatoriais e seis hospitalares em Goiás relacionados a jogos patológicos. No mesmo período, em todo o Brasil, foram contabilizados 818 atendimentos ambulatoriais e 86 hospitalares. “É importante destacar que esses números se referem ao total de procedimentos realizados, e não ao número de pessoas atendidas. Um mesmo paciente pode ter recebido mais de um atendimento ambulatorial ou ter sido internado mais de uma vez durante o período analisado”, pontua a pasta em nota.

A Secretaria de Estado da Saúde de Goiás (SES) disse que foram realizados 20 atendimentos com registros para os casos das duas CIDs. Entretanto, não é possível obter dados precisos sobre as classificações de forma isolada porque as informações, em sua maioria, estão associadas ao uso de drogas. A secretaria disse ainda que, recentemente, o Departamento de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde – DESMAD/SAES/MS, em parceria com a SES-GO, realizou a “Oficina de Gestão – Jogos e Apostas no contexto da RAPS – CAPS” para qualificar os profissionais que atuam na rede atendimento, que é realizado no Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) dos municípios.

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