Livros que gostaria de ter escrito

26 junho 2025 às 11h05

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Ainda sobre o tema de inspiração, de processo criativo, coisas, livros e situações que nos inspiram, quero escrever sobre dois livros que gostaria muito de ter escrito, se vocação para escritora tivesse.
“Stoner”, de John Williams e “O lugar”, de Annie Ernaux.
Os dois, além de terem sido excelentes leituras, despertou uma vontade – mas só vontade mesmo, pois não pretendo concretizar -, de escrever. Dois livros que fizeram o pensamento de “poxa!, como eu queria ter escrito algo assim”, surgir.
“Stoner”, pela singeleza dessa escrita, mas sobretudo a singularidade da história. A beleza de uma vida comum, sem feitos extraordinários, mas o encanto de observar como as palavras, os livros, podem mudar uma vida.
A transmutação de personalidade, de classe, em ambos os livros, pelas palavras, pelos livros.
Assim como Ernaux, Williams tem a prosa enxuta, direta. E eu sinto que nenhuma palavra foi à toa, ou desperdiçada. Livros que ficam tamborilando, anos depois.
E Annie Ernaux por ela sempre, em todos os seus livros, me impressionar completamente na sua capacidade de escrever sobre si, sobre coisas consideradas “de mulher”, mas que se tornam universais.
Seus livros sobre o sair de si e se tornar comum a tantos.
E dentro desse contexto, de mulheres dizendo coisas sobre si, acho bonito ver como elas acabam por se inspirar em outras mulheres.
O quanto de Simone de Beauvoir, mais precisamente em “Memórias de menina”, que tem nos livros de Ernaux. A forma da escrita, a descrição da narrativa, realmente remete muito a Simone. Porém, Annie é genial na forma como descreve tanto em tão poucas palavras e páginas. E é nisso que ela nos ganha. Nessa profundidade em um texto curto, mas cheio de nuances.
Toda sua obra é caracterizada por isso: esse poder de falar de si, de forma sucinta e pungente.
E gosto especialmente de “O lugar”, mostrando a relação com os pais, com ela, dela, com o mundo ao seu redor; como nos identificamos com isso.
Nesse livro, ela traz sua origem operária, mostrando o que é “transclassial”, que pode ser interpretado como alguém que transita entre diferentes classes sociais.
No caso dela, a mudança em contraponto a classe de seus pais. Particularmente aqui, ela fala sobre as disparidades em relação a seu pai.
Após ascender socialmente através da educação, ela nos mostra como essa migração social marcou sua personalidade, a relação com o pai, e o modo como ela se enxerga no mundo.
Seus sentimentos não são ditos claramente, mas sentidos ao longo da leitura: como ela se sente “traindo” os pais, pela sua própria mudança de classe e os conflitos inerentes a essa mudança.
Uma narrativa crua, direta e muito boa. Daquelas que me fez pensar muito sobre esse ofício da escrita, e a vontade de escrever, inspirada por ele.
A observância dos seus próprios sentimentos, e o poder de conseguir sintetizar em poucas palavras, conseguindo ainda transformar isso em algo universal, foi o que mais e sempre, me impacta em Annie.
E como ela consegue aproximar a todos nós, leitores, de ambos os sexos, classe social, raça e sexualidade, de seus sentimentos universais.
Outra coisa que acho bonito em Ernaux, parece ser essa urgência, essa necessidade de escrever. Para que as coisas existam?, para que as coisas não se acabem?, para comprovar que elas aconteceram?, para se aproximar – e enfim entender, a relação com o pai?
As frases curtas, secas e diretas de Ernaux, caracterizam e demonstram o quanto ela quer – e consegue ser objetiva em relação aos sentimentos que narra.
Ao se referir ao monumento de mármore no túmulo do pai, ela simplesmente diz:
“É sóbrio e não exige manutenção.”
O quanto de peso, emocional e literário, existe em uma frase tão simples?
Já a primeira vez que li “Stoner”, fiquei impressionada com esse livro. O quanto ele me impactou em sua singeleza, delicadeza.
A partir de um soneto de Shakespeare, o jovem camponês se encanta pela literatura e decide se tornar professor de Língua Inglesa, abandonando a ideia de voltar para o campo e ajudar os pais.
O extraordinário de uma vida comum, sem grandes feitos, mas que foi mudado completamente pelos livros.
E o que mais me impressiona é a força de Williams para narrar as miudezas do cotidiano, essas pequenas tragédias corriqueiras, que moldam a vida.
Stoner é homem que não alcança nada de extraordinário. E o que tem de mais nisso? Ele é um homem comum demais. E talvez por ser tão próximo, me emocionou. Afinal, nossa vida não é feita de dramas miúdos, cotidiano, e fatos corriqueiros?
Isso tudo é para dar a dimensão da força dessa narrativa, de um homem que é moldado – e muda totalmente seu destino -, pela força das palavras, e o encantamento dos livros.
Em comum com os livros de Annie Ernaux, esse personagem tem sua transformação pelas palavras, pelos livros, pelo estudo.
O trabalho de Stoner era sua paixão: a literatura. E Annie Ernaux transformou sua vida na sua paixão: a literatura.
Como não se encantar com isso, logo eu, que vivo de colocar as frases (livros) nas mãos certas?
“um dia terei que explicar todas essas coisas.”
Annie Ernaux
Explicar para entender a si. Escrever para existir. Para sair de si.
“O lugar” e “Stoner” são duas narrativas elegantes, que também me fizeram pensar: o que confere significado à vida?
Dois livros que, além da vontade de querer escrever algo como eles, são livros que também nos despertam aquela sensação de querer reler como se fosse a primeira vez.