‘A Trégua’, de Mario Benedetti: Quanto tempo dura a felicidade em uma vida cinza?
09 julho 2025 às 15h54

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“O tempo se vai. Às vezes, penso que precisaria viver apressado, tirar o máximo partido destes anos que restam. Hoje em dia, qualquer um pode me dizer, depois de esquadrinhar minhas rugas: ‘Mas o senhor ainda é um homem jovem!’. Ainda. Quantos anos me restam de ‘ainda’? Penso nisso e me dá pressa, tenho a angustiante sensação de que a vida me foge, como se minhas veias se tivessem aberto e eu não pudesse deter meu sangue. Porque a vida são muitas coisas (trabalho, dinheiro, sorte, amizade, saúde, complicações), mas ninguém vai me negar que, quando pensamos nessa palavra, Vida, quando dizemos, por exemplo, que ‘nos agarramos à vida’, estamos assimilando-a a outra palavra mais concreta, mais atraente, mais seguramente importante: estamos assimilando-a ao Prazer. Penso no prazer (qualquer forma de prazer) e tenho certeza de que isso é vida.”
A trégua, Mário Benedetti
Essa semana tive uma conversa com meu pai, sobre minha avó. 90 anos, ela é fruto do seu tempo: uma mulher que foi criada para ser do lar, cuidar do marido, filhos, netos… Sem muita ambição ou passatempos, viu a vida passar assim, criando os filhos, olhando os netos, conhecendo os bisnetos. E só.
Quando criança, ela me contava muito de suas frustrações, como se eu, criança, fosse um diário vivo que ela achava que eu não ia me lembrar dos seus ditos. Assim, dentre várias coisas contadas, ela dizia que seu sonho era ter estudado, ter sido médica.
Essas rememorações me voltaram com tudo essa semana, nessa conversa com meu pai, quando ele me dizia que a minha avó não se lembra mais das coisas, não pode mais ficar sozinha, ou às vezes, fala “coisas sem sentido”, em um sinal claro da idade avançada.
Então me peguei pensando nessa vilã do tempo, que é a velhice. E me lembrei desse livro belíssimo, cujo trecho inicia essa coluna. Um livro que fala um pouco das possíveis tréguas que podem “aparecer” na vida, quando somente se espera o fim.
“A trégua” se passa na Montevidéu, na década de 50, e quem nos conta, ou melhor, escreve em seu diário que temos acesso, é Martín Santomé, um viúvo de 50 anos, que tem uma vida comum, monótona e rotineira, à espera da sua aposentadoria. Uma pessoa incômoda, vivendo suas angústias, suas dores, frustrações e trégua.
Sua relação com os filhos é distante, vive preso à burocracia, ao tédio, à rotina. E assim como em “Stoner”, de John Williams, ele já se resignou a uma vida sem grandes feitos e a solidão. Em comum, os dois livros ainda possuem o tom melancólico, triste.
Mas algo muda. Quando a jovem Laura Avellanada começa a trabalhar no mesmo escritório que ele, passa a ter um inesperado sopro de vida, uma verdadeira “trégua” em sua existência apática e monótona. Até então, faltava aquele tesão, paixão na vida, pela vida. Até a chegada de Laura.
Machista, homofóbico, esse é um daqueles livros que odiamos o protagonista. Mas, ao mesmo tempo, compartilhamos tanto das suas dores. Vemos como esse homem enxerga, narra e interpreta o mundo, na sua visão preconceituosa.
A melancolia que permeia esse diário, a saudade da mulher que morreu, a distância dos filhos, a forma como ele lida com eles, a homossexualidade do filho. O desânimo que sentimos quando ele descreve as situações a quais não tem controle ou não sabe como agir. O filho, a quem ele chama de “maricas”.
E no diário, temos o mais íntimo de Martín Santomé, já que quando escreve, ele não esconde seus incômodos, suas angústias. E aqui entra um pouco dos momentos em que sentimos todo o peso da solidão e do tempo, sobre ele. Dessa vida sem perspectiva.
Esse tipo de personagem consegue nos trazer um lado empático, principalmente por ser nesse formato de diário, onde temos seus pensamentos mais íntimos, suas dores e frustrações.
Mais uma vez, a genialidade do escritor Mário Benedetti, que soube dar uma voz tão certeira, eficaz e verossímil, muito verdadeira, a um personagem tão distinto de si.
A maestria do autor consiste ainda, em fazer uma crítica social através do personagem de Martín, um homem de classe média, preso a códigos sociais e perpetuador de hipocrisias e preconceitos.
Suas críticas sutis, refinadas e elegantes, são uma censura aos preconceitos, inúmeros, desse personagem. Uma crítica de um autor que conheceu bem a sociedade burocrática e patriarcal da época a qual escreve.
O autor realiza essas críticas sociais pelo incômodo e mal estrar que o livro nos provoca. É um livro que devemos ler com olhos de crítica e amplidão.
O autor acerta demais no formato de diário quando, apesar dos inúmeros preconceitos desse personagem, conseguimos nos empatizar com sua dor e angústia, quando sua pequena trégua de felicidade se finda.
Benedetti escreve de uma forma simples e muito humana, próxima. Sou encantada com sua forma de escrita, e que mexe com o leitor. Talvez pela constante melancolia de Martín, por seus inúmeros preconceitos, ou até mesmo pela áurea de tragédia que é a sua vida? Ou por tudo isso junto, em um estilo de narrativa ainda envolvente?
Diferente da minha avó, que não pode e nem coube a ela ser mais do que foi ensinada a ser, Martín tem uma profissão. Trabalha em uma repartição pública, em um emprego tão repetitivo e monótono quanto ele. Mas assim como ele, minha avó apresenta um cansaço de viver.
Martín, nos seus 50 anos, se resignou a uma vida da repartição, a casa com os filhos distantes. Mas ele tem um hábito: na sua rotina monótona e solitária, ele costuma ir a cafés por Montevidéu para observar as pessoas, pensar na vida, passar o tempo.
A minha avó, sentava, no passado mesmo, na porta de casa, e observava os carros passando, as pessoas indo e vindo. Ambos observam o mundo ao seu redor com certo distanciamento, reflexo do cansaço emocional e uma espécie de espera passiva, do fim?, quem sabe?
A Martín foi apresentada uma trégua: Laura.
A minha avó, uma mulher do seu tempo, não foi ensinada, nem dado o direito a ter trégua. Então como ela poderia ter tido uma? E o que fazer se você não foi ensinada a ter nada? Um hobbie, um esporte, a não ser cuidar dos filhos, da casa?
A Martín, acredito que essas oportunidades tenham sido dadas, pelo seu privilégio de gênero. Mas a vida, essa a qual não tem tréguas, mostrou que desassossegos são parte intrínseca dela, quando faltou tempo para que ele desfrutasse dos refrigérios.
Belo, esse é um livro que deixa um certo gostinho amargo de tristeza, mas que desempenha a bela função da literatura: incomodar.
Benedetti nos conduz a melancolia de que a alegria, o prazer, os afetos profundos que nos moldam, só acontecem na vida entre períodos de dor, cotidiano e/ou estagnação. Uma espécie de pausa – trégua – entre a monotonia de uma vida acontecendo.
A elegância da narrativa, a ideia de uma vida comum, mas que pode ser mudada e transformada pelas tréguas mágicas da vida, as críticas sutis, mas refinadas, aos preconceitos de uma época.
Junto com “Stoner”, posso também dizer que esse é um daqueles livros que gostaria de ter esse estilo ou escrita, que gostaria de ter escrito, observado o quanto de beleza existe na tristeza.
Quanto a minha avó, não sei (e talvez nem acredite nisso), se ela terá a sua “trégua”. Mas sei que ela continua ali, agora dentro de casa, cada vez mais, vendo a vida se findar, cada dia um a menos, em dias iguais.
E me pergunto: Quanto tempo dura a felicidade?
A felicidade, como trégua, em uma vida cinza?
