Wilson Martins diz que Clarice Lispector, e não Guimarães Rosa, inaugurou período estetizante no país

12 agosto 2017 às 09h31

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O crítico defende Josué Montello, Mário Palmério (que seria melhor do que Guimarães Rosa), Loyola Brandão e critica Clarice Lispector, Lygia Fagundes Teles, Raduan Nassar e os concretistas

Wilson Martins era um crítico que lia diretamente as obras dos escritores que analisava, pois não era “escravo” da bibliografia (que, aliás, dominava). Talvez por ter feito carreira acadêmica nos Estados Unidos, e quem sabe por valorizar autores apontados como tradicionais e duvidar de alguns “experimentalistas”, nunca foi bem-visto pelos universitários dominantes do país — sobretudo os de São Paulo e Rio de Janeiro. Quando morreu, em 2010, aos 88 anos, a crítica Flora Sussekind publicou um artigo viperino, o qual foi respondido por Affonso Romano de Sant’Anna. Miguel Sanches Neto escreveu um texto pondo as ideias no lugar: Wilson Martins era mesmo um crítico do primeiro time, que escrevia com clareza, sempre evitando jargões.
Na edição de 30 de maio de 1998 de “O Estado de S. Paulo”, Wilson Martins concedeu uma entrevista polêmica ao jornalista, crítico e escritor José Castello. De cara, frisou que os estudantes de Direito acertam quando dizem que “quem sabe só Direito não sabe nem Direito”. “Quem sabe só literatura não sabe nem literatura. A especialização é o vício trazido das universidades americanas, que os brasileiros incorporam sem questionar”.
Equivoca-se, frisa Wilson Martins, aquele que acredita “mais nas informações acumuladas e não no conhecimento. Confundimos acúmulo de informações com conhecimento. É um efeito do computador: o escritor senta-se diante da tela, se enche de informações e confunde essa voracidade com conhecimento. Acumular dados não significa conhecer. Conhecimento não é acúmulo de informações, mas a interpretação de informações”.

Há críticos que se comportam como profetas e gurus. Suas ideias, quando ideias e não meras palavras, se tornam bíblias para epígonos apressados e, no geral, toupeiras. Augusto de Campos e Roberto Schwarz terçaram forças, há alguns anos, sugerindo, não que suas interpretações fossem divergentes, e sim que uma estava “correta” e a outra “errada”. Para Wilson Martins, “o que salva a crítica, se é que ela pode salvar-se, é a variedade de opiniões”.
A literatura faz sentido no mundo moderno? Wilson Martins assinala que “os gêneros devem ser reformulados. (…) Poetas como Affonso Romano de Sant’Anna e Ivan Junqueira [1934-2014] passaram a escrever sobre os grandes temas da civilização humana. São dois escritores que estão reagindo”. O crítico sublinha, ao contrário dos dois citados, que o poeta João Cabral de Melo Neto “se apega a uma tentativa muito regionalista”.
Conteúdo e forma

José Castello pergunta: “A mudança dos conteúdos é mais importante que a das formas?” “Quando se muda o conteúdo, se muda a forma. Mas a revolução formal não é tão importante quanto se imagina. O exemplo extremo é o concretismo, que acabou reduzido a exercícios tipográficos [a discussão é retomada no fim deste texto]. As vanguardas apostam tudo na forma, e se esquecem do sentido, da emoção, da significação”, afirma Wilson Martins. A crítica ao concretismo é pertinente, no geral, mas a poesia de Haroldo de Campos, de Décio Pignatari, de Augusto de Campos é mais variada do que se costuma avaliar. Mas é provável que os três acabem cristalizando-se na cultura patropi mais como tradutores e críticos do que como poetas. A poesia deles é muito aquém da poesia de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, que permanece mais moderna e reverberante do que a dos apóstolos da “revolução permanente”. Até os epígonos dos concretistas são hoje menos (ou até nada) concretistas.
Gerardo Mello Mourão (1917-2007) é mencionado por Wilson Martins como um poeta de largos méritos. “Gerardo, em ‘Invenção do Mar’, teve a coragem de reescrever ‘Os Lusíadas’ na perspectiva brasileira. O resultado é excelente, mas a crítica o despreza”. Wilson Martins acha que tem a ver com o fato de ter sido fascista na juventude e de ter sido acusado de espionar para os nazistas. É provável que o “problema” seja outro; afinal, costuma se admirar a literatura de fascistas como Knut Hamsun e Louis-Ferdinand Céline. Talvez seja a dicção clássica de Gerardo Mello Mourão — portanto o fato de não se deixar subjugar pelos modernismos de ocasião — que “espanta” os críticos.

“A literatura brasileira de hoje está dando conta dos problemas brasileiros?”, pergunta José Castello. Wilson Martins diz que “não”. “E ela precisa tornar-se contemporânea para não morrer. A literatura brasileira de hoje ainda está respondendo a esquemas que vieram do século 19. Os grandes romancistas de hoje são aqueles que superaram o regionalismo para escrever o romance social e histórico. Penso em um grande romance político como o ‘Quarup’, de Antonio Callado. E em ‘Tambores de São Luís’, de Josué Montello. Há um romance muito desprezado que também segue esse caminho: ‘Luz do Abismo’, de Maria Cristina Cavalcante de Albuquerque, publicado pelas Edições do Bagaço, do Recife. Outro romance de primeira linha muito rejeitado é o ‘À Mão Esquerda’, de Fausto Wolf. Gosto muito ainda do Luiz Antônio de Assis Brasil, de Porto Alegre. Ele parte de temas locais, mas tem uma perspectiva universal, ao contrário de um poeta como Manoel de Barros (1916-2014), que é tão festejado, mas faz um regionalismo direto, sem força alegórica”. Não dá para saber por qual motivo Wilson Martins sustenta que “À Mão Esquerda”, tão desconjuntado e desigual, é um romance de “primeira linha”. De qualquer maneira, é importante “incorporar” outros escritores para além dos famosos e daqueles que estão na moda. Manoel de Barros parece mais incensado, dadas algumas frases de efeito, do que lido. Tornou-se um poeta meio folclórico, mas, mesmo com seu regionalismo direto, tem certa força alegórica. A maneira como dá vida (movimento) às coisas, às vezes mais do que a temática em si, torna-o, aqui e ali, mais universal do que parece. Seu problema, se é problema, é ter se tornado um poeta “vade mecum”. Wilson Martins não faz a comparação, mas a barreira para Manoel de Barros é João Cabral, que retira sua universalidade do regional, e é a forma de sua poesia que moderniza sua temática. Uma interpretação, diga-se, que não é a de Wilson Martins.
Noll e Raduan

A geração posterior a Rubem Fonseca não consegue, “em grande parte”, se libertar de sua influência, aposta Wilson Martins. “Penso em Ana Miranda, que, para libertar-se, sempre quis dar um pulo maior que as pernas. Seu romance sobre Gregório de Matos, ‘Boca do Inferno’, é cheio de anacronismos e simplificações. E em Patrícia Melo, que continua presa a Rubem Fonseca e se mantém fiel ao gênero policial, mas apesar disso é mais moderna.”
Sérgio Sant’Anna e João Gilberto Noll são lembrados por José Castello. “Sérgio Sant’Anna é muito bom, embora às vezes seja irregular, como naquele ‘A Tragédia Brasileira’. Já fiz também elogios aos contos do João Gilberto Noll. O problema do Noll é que, depois que passou a dedicar-se aos romances, vem escrevendo cada vez pior. Seus livros são cada vez mais gratuitos”, lamenta Wilson Martins.

Raduan Nassar é um mito, poucos leram sua literatura, mas muitos a citam como “revolucionária”. De fato, não é ruim. Mas talvez seja menor do que a consagração e talvez ele, mais do que os críticos, saiba disso, tanto que parou de escrever (ou de publicar). Wilson Martins não aprecia sua prosa: “Sei que ele é um escritor muito recomendado por grandes críticos, mas tentei lê-lo e não consegui gostar. Não consigo perceber o que ele quer, que tipo de literatura deseja fazer. É um escritor com o qual não tenho conexão. Acho que há muito de artificial em sua reputação. Ele sempre jura que não é escritor, que não deseja ser escritor, mas continuam a tratá-lo como escritor e ele parece gostar. Então, só posso pensar duas coisas: ou ele realmente não é um escritor, e o estamos torturando com essa ideia; ou ele não é sincero”.
Rey e Loyola Brandão

Há escritores injustiçados, como Marcos Rey, na opinião de Wilson Martins. “É verdade que seus livros, em geral, caem de qualidade no fim. É uma injustiça, de todo modo, que o prestígio de Rey nunca tenha ultrapassado as fronteiras de São Paulo. Outro injustiçado é Ignácio Loyola Brandão. Ele é um escritor bastante irregular. Mas esse livro autobiográfico sobre o aneurisma cerebral [‘A Veia Bailarina’] é ótimo. E com ‘Zero’ ele lançou o protótipo de uma literatura que, hoje, o Chico Buarque está imitando, sem conseguir chegar ao mesmo nível de qualidade. Loyola é, há muito, o grande escritor urbano de São Paulo, assim como Rubem Fonseca é o grande escritor urbano do Rio de Janeiro”. O leitor não fica sabendo porque “A Veia Bailarina” é “ótimo”. Como literatura, não tem a força de “Zero” e “Não Verás País Nenhum”. É provável que o drama pessoal do escritor, registrado no livro, tenha impressionado o crítico.
Nélida Piñon é apontada por Wilson Martins como autora de “uma literatura muito artificial”. “Ela escreve romances históricos cheios de lacunas e simplificações. Também me incomodo muito com o seu vocabulário. Nélida escreve narrativas muito retóricas, muito literárias.” Lygia Fagundes Telles “sempre foi muito melhor nos contos que nos romances. Mas também a considero uma escritora um pouco artificial, com seu estilo sempre um pouco rebuscado”. Mais uma vez, pelo formato da entrevista, com espaço limitado, não se fica sabendo o que exatamente Wilson Martins quer dizer com “artificial”. Literatura é mesmo artifício, não é nada natural. O que talvez esteja sugerindo é que o bom escritor não deixa à mostra as pistas da construção de sua literatura. Mas em autores modernos, como James Joyce e William Faulkner, as pegadas são visíveis. Há “cacos” distribuídos a granel. E ninguém reclama…
O Brasil, quer saber José Castello, é “um país de contistas?” Wilson Martins diz que “não só. Apesar de tudo, o romance brasileiro renova-se. Gosto muito do Cristóvão Tezza. Seu romance ‘Breve Espaço Entre Cor e Sombra’ o transforma em um escritor de primeira linha. Mas é verdade: não estamos em um período de grande produção romanesca”.

Trevisan e Montello
Dalton Trevisan é um dos escritores mais admirados por Wilson Martins. “Ele introduziu no conto brasileiro uma perspectiva absolutamente original. Mas sua obra está completa, não podemos nem devemos esperar surpresas. Ainda assim, ele continua a escrever com a competência de sempre.”
Ao contrário do que pensa parte dos críticos, Wilson Martins trata Josué Montello (1917-2006) como “o decano do romance brasileiro”. “Escreve romances clássicos, na linha de Machado [de Assis] e de Eça [de Queiroz], e não está preocupado em ser original. Ele mesmo admite, sem nenhum problema, que ignora as inovações estéticas dos últimos 50 anos. Escreveu romances extraordinários, em particular ‘Os Tambores de São Luís’. Não posso esquecer de citar o João Ubaldo Ribeiro. ‘Viva o Povo Brasileiro’, em particular, é um romance muito curioso, ainda que bastante mal construído. Mas, apesar disso, você o lê e sabe que está diante de um grande romance.” O crítico afirma que seu “grande problema” é que não conseguiu se livrar da influência da prosa de Jorge Amado. A influência é um fato, mas as literaturas de ambos são diferentes. A prosa de João Ubaldo é, por assim dizer, mais moderna e, esteticamente, mais cuidadosa. “À Mão Esquerda”, de Fausto Wolf, é muito mais mal construído do que “Viva o Povo Brasileiro”, mas Wilson Martins o avalia como um romance de “primeira linha”. Idiossincrasias de críticos.

A impressão que se tem é que, para consolidar o que diz a respeito de Josué Montello e de Mário Palmério, autor de “Vila dos Confins” (de 1956), Wilson Martins sente necessidade de reduzir a força da inovação de Guimarães Rosa. O romance de Palmério é considerado como “muito superior” a “Grande Sertão: Veredas”. “O romance de Rosa emocionou por causa de suas experiências linguísticas. Mas, romance por romance, o de Palmério é melhor.” O crítico diz que Rosa “roubou’ a glória do autor de “Chapadão do Bugre”.
Todos sabem que Mário Palmério não é maior do que Guimarães Rosa, mas o grande Wilson Martins tinha implicações sempre interessantes. E sua crítica é um convite para que os brasileiros leiam as obras de autores que, tendo sido superados por outros escritores de maior impacto, não devem deixar de ser lidos.

“Depois de ‘Grande Sertão: Veredas’, Guimarães Rosa entrou em um beco sem saída: ou ele se renovava e já não era Guimarães Rosa, ou se repetia. Por isso, ‘Grande Sertão’ não teve continuidade. Logo depois do lançamento do romance, encontrei-me com Sérgio Milliet, que era muito chegado ao Rosa. Ele me disse: ‘Este é apenas o primeiro volume, vai haver uma continuação que se chamará ‘Grande Sertão: Cidades’. Mas, em vez de escrever a continuação projetada, Rosa escreveu aqueles contos do ‘Corpo de Baile’, que são totalmente diferentes. Não conseguiu continuar seu projeto. ‘Corpo de Baile’ é um livro que ninguém leu. Eu penso que o caso Guimarães Rosa precisa ser reexaminado pela crítica do futuro.”
“As experiências lingústicas de Rosa têm importância como experiências linguísticas, mas não como criação literária. Muita gente diz que Rosa foi o nosso Joyce. Guardadas as devidas proporções, isso é verdade, mas só guardadas as devidas proporções. Ao contrário do que ensinam os irmãos Campos, Joyce renovou mais a narrativa do que a linguagem. Ele renovou a língua em ‘Finnegans Wake’, romance que é mais uma brincadeira do que um romance. Mas o ‘Ulysses’ é, antes de tudo, um romance realista”, afirma Wilson Martins. Num ensaio, Silviano Santiago comparou Guimarães Rosa mais a Faulkner do que a Joyce. Mas os dois são filhos do irlandês.

Clarice Lispector, hoje tão incensada quanto Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, precisa, segundo Wilson Martins, ser “repensada”. “Foi Clarice, e não Rosa, quem inaugurou o período estetizante de nossas literatura, pois ‘Perto do Corção Selvagem’ é de 1943 e ‘Sagarana’, de 1946. A grande crítica, com as exceções de Antonio Candido e Sérgio Milliet, praticamente silenciou a respeito do romance de Clarice. E Rosa apossou-se da glória de pioneiro, quando a glória devia ser dela. Os contos de Clarice Lispector “são infinitamente melhores que seus romances”, garante Wilson Martins. “Ela não é boa romancista.”
A obra de Nelson Rodrigues é vista como “demagógica” por Wilson Martins. “Vestido de Noiva”, que o crítico aponta como sua “única grande obra”, merece ressalvas. “Suas peças procuram sempre provocar escândalo. Ele multiplica os incestos, as traições, fazia um teatro sensacionalista.” A rigor, pode-se dizer o mesmo das peças dos gregos antigos e mesmo das de Shakespeare.

Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira são realçados como os grandes poetas modernistas. Wilson Martins ressalta que a geração de 45 não tem um poeta do nível de Drummond. Os concretistas são destacados como criadores de “nossa última escola poética organizada”. “Eles tinham decálogo, regras de inclusão e de exclusão, combatividade. Mas tudo isso se concluiu num paradoxo: os concretistas produziram excelente teoria, mas não conseguiram fazer um só poema importante. Ficaram só nas experiências tipográficas e vocabulares, na poesia sem sentido. Os concretistas reformaram tanto a mansão da poesia que a tornaram inabitável. Seu prestígio só perdura porque eles sempre foram muito brilhantes nas teorias e nos manifestos. E também extremamente agressivos.” A crítica é precisa, mas Haroldo de Campos só fez poesia puramente “tipográfica”? Claro que não. A crítica é apropriada, quem sabe, a Augusto de Campos.
Wilson Martins diz que gostou “muito” do romance “Os Bêbados e os Sonâmbulos”, de Bernardo Carvalho. “É uma história surrealista, mas que faz sentido. E é um livro muito bem construído. Ainda que, no fundo, tudo aquilo me pareça um pouco artificial.”