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Fátima Sousa, de 68 anos, é uma mulher magra e sólida como uma montanha. Coragem não lhe falta. O que lhe sobra é talento, perspicácia e inteligência. É repórter do SBT.

Na década de 1990, nos tempos do Plano Real, a realidade do crime organizado escapava à maioria dos jornalistas. Mas não à observadora e obstinada Fátima Sousa.

Em 1997, há 28 anos, durante uma rebelião na penitenciária de Sorocaba, que cobria como repórter da TV Bandeirantes, Fátima Sousa, então com 40 anos, percebeu o que ninguém dos jornais e emissoras de televisão mostrou. A rebelião “era superorganizada: havia um comando, uma pessoa que dizia o que cada um tinha que fazer, e faixas pedindo por direitos dos presos”.

O fato deixou Fátima Sousa pensativa. Porque entendeu que havia nascido ou estava nascendo alguma coisa diferente no mundo do crime brasileiro. Era o ovo ou já a serpente.

Um mês depois, Fátima Sousa, escarafunchando a questão, conseguiu obter o nome do chefe da rebelião. Era um homem conhecido como Macalé. A repórter decidiu entrevistá-lo.

César Augusto Roris Foto de Maurício Piffer Folha Press
César Augusto Roris: um dos fundadores do PCC | Foto: Maurício Piffer/Folha Press

Como se fosse uma Truman Capote dos trópicos abençoados por Deus, Fátima Sousa ouviu Macalé. O preso revelou que havia um comando orgânico. Não havia mais improviso. (Lembra, ma non troppo, a rebelião do antigo Cepaigo organizada por Leonardo Pareja, há 29 anos, em Aparecida de Goiânia.)

Macalé se abriu com a jornalista, talvez por sua habilidade no manejo das palavras — dada a sensibilidade derivada da inteligência, e não de algum romantismo tosco. Mas não contou quem era o chefe.

Porém, dias depois da entrevista com Macalé, um homem ligou para Fátima Sousa e disse que era “o Cesinha”. Ela insistiu e o criminoso deu o nome completo: “César Augusto Roris. Eu sou um dos fundadores do PCC”.

O PCC já havia nascido, mas ali, por meio de uma repórter atenta, o país o descobriu como crime organizado. Era uma facção criminosa. Poderosa e perigosa.

O governo de São Paulo, ante o anúncio de um fato que desconhecia — ou, quem sabe, fingia desconhecer —, tentou “desmentir” Fátima Sousa. Alegou que “não” existia uma facção.

Fátima Sousa diz que, se tivesse percebido o monstro que estava nascendo, o governo de São Paulo, com as políticas de segurança apropriadas, poderia ter acabado com o problema.

Numa entrevista à repórter Luana Takahashi, do UOL (https://tinyurl.com/bz4wzb54), a experimentada jornalista assinala: “O PCC ainda era um núcleo pequeno e talvez fosse mais fácil de administrar naquele momento. Como o governo esperou cinco anos, o bicho foi crescendo. Hoje, está em 28 países. Não temos mais uma facção, mas uma máfia”.

O jornalismo às vezes é o primeiro a chegar atrasado. Ante a divulgação da reportagem, a respeito do nascimento do PCC, coleguinhas disseram que a repórter havia inventado a história. Depois, com os fatos consolidados, começaram a divulgar matérias ditas “exclusivas” a respeito da facção que se tornou máfia.

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Ruy Ferraz: delegado assassinado supostamente pelo PCC | Foto: Reprodução

Inquirida sobre o assassinato do delegado aposentado Ruy Ferraz, Fátima Sousa diz que o crime não a “pegou desprevenida”.

A jornalista frisa que “Ruy era um combatente do PCC, um policial muito competente nas investigações”.

Como delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Ruy Ferraz foi um dos primeiros a entender e operar para desarticular o PCC de Marcola.

Fátima Sousa não especula sobre o assunto, por isso apresento uma discussão. O PCC matou — tudo indica que foi o PCC — Ruy Ferraz por vingança. Como um recado para policiais que são atuantes e, também, para o Ministério Público (o promotor de justiça Lincoln Gakiya está jurado de morte).

Entretanto, por que o PCC, uma máfia altamente profissionalizada, com ligações com a cruenta ‘Ndrangheta — mesmo sabendo que haveria uma grande reação, uma caçada —, decidiu matar o delegado? Para intimidar e mostrar poder? É possível.

Lincoln Gakiya: promotor jurado de morte pelo PCC | Foto: Reprodução

O comando do PCC, com Marcola preso, perdeu a cabeça e julga-se acima do bem e do mal? A máfia patropi parece avaliar, neste momento — e depois de ter matado Antônio Vinicius Lopes Gritzbach, no aeroporto de Guarulhos —, que precisa dar recados e tentar conter (ou reduzir) as investigações da polícia e do Ministério Público. São alertas de poder para poder.

Quem vencerá a guerra: o crime organizado ou Estado relativamente desorganizado? A sociedade espera que os governos, federal e estaduais, vençam a batalha.

Fátima Sousa diz que o PCC — assim como outros grupos, notadamente o Comando Vermelho — se tornou uma máfia, um cartel. “O poderio econômico é fantástico. O PCC é uma máfia comparável à expertise dos cartéis italianos e mexicanos. Isso é muito perigoso e pode não ter freio. Não consigo ver como exterminá-lo neste momento, dado o tamanho.”

A repórter sublinha que o “monstro” está “infiltrado na política e na economia. O PCC paga cursos para formar carcereiros e advogados. Está em postos de combustíveis, farmácias, na polícia, no Ministério Público. É algo secretíssimo”.

Marcola, um dos chefões do PCC, está preso | Foto: Reprodução

A jornalista poderia ter acrescentado que o PCC já atua no mercado financeiro, na construção civil, no ramo imobiliário e na produção de etanol, distribuidoras de bebidas. É uma máquina de ganhar e distribuir dinheiro.

Com o PCC atuando como exército, com táticas de guerrilhas — por sinal, eficientes —, o que Estado pode fazer?

Fátima Sousa — que entende tanto de PCC quanto Bruno Paes Manso (autor, com Camila Nunes Dias, do livro “A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil” — sugere: “Integração de todas as polícias e dos governos estadual e federal, além da detecção de policiais corruptos. Seria necessária uma investigação profunda, com operações seriíssimas. Mas hoje tenho dúvidas, porque não sei mais quem é quem”.

De acordo com Fátima Sousa, o Porto de Santos “está sob domínio do PCC. Lá entra e sai o que eles querem: armas e drogas com facilidade. Ninguém consegue desmantelar o PCC no Porto de Santos? Por que não existe um combate organizado como o crime está organizado? A nossa polícia precisa se sentir macro, forte, grande e unida”.

Como diria o poeta John Donne, Goiás não é uma ilha e, por isso, o crime organizado também mantém células no Estado. Mas não se tornou dominante. Está contido. Porque a polícia é dura e usa seu sistema de inteligência de maneira preventiva.

A popularidade do governador Ronaldo Caiado tem a ver com o fato de que melhorou, de maneira ampla, a segurança pública em todo o Estado. O combate é, quem sabe, mais organizado do que o crime dito organizado.

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