“Uma peça de Gógol é poesia em ação, e por poesia eu quero dizer os mistérios do irracional tal como percebido através de palavras racionais”, diz o autor de “Lolita” e “Ada”

[Publicado no Jornal Opção em setembro de 2010]

A biografia perceptiva é aquela que, a pretexto de entender a vida de um escritor, se torna um guia acessível e crítico à sua obra. É o que ocorre com “Nicolai Gógol — Uma Biografia”¹ (Editora Ars Poetica), de Vladimir Nabokov. Enquanto a biografia clássica “Gogol” (Lello & Irmão Editores), de Henri Troyat, tem 576 páginas, o livro de Nabokov tem 126 páginas, e num formato um pouco menor. Mas a obra menor é maior em perspicácia e agudeza críticas. Troyat é ótimo, pois fornece todos os detalhes da vida do escritor ucraniano, explica o contexto em que suas obras foram escritas e publica trechos de escritos de Gogol inéditos no Brasil (a edição é portuguesa), inclusive uma espécie de teoria de literatura. Um crítico da estatura de Joseph Frank, biógrafo de Dostoiévski, elogia o detalhismo de Troyat, mas pondera, com acerto, que o escritor francês não explica suficientemente como um “chato” e “mentiroso” como Gógol produziu uma obra tão genial. Entretanto, com fartura de dados e declarações do próprio Gógol, o burocrata Troyat esclarece uma série de mal-entendidos. Um deles: Gógol, como o francês Céline, não era um escritor revolucionário, tanto que críticos de esquerda, como Bielínski e Herzen, que inicialmente o elogiaram, por perceberem o nascimento de um autor diferenciado, depois o atacaram. Gógol era religioso, de uma religiosidade complexa e radical, e defendia a aristocracia russa. Produziu uma revolução literária — o que fez Dostoiévski (seu filho literário) escrever: “Todos saímos de ‘O Capote’ de Gógol” — e era contrário à revolução política, para ele, símbolo de caos.

Nikolai Gógol: escritor ucraniano | Foto: Reprodução
Póshlost e uma estética superior

O livro de Nabokov é de um brilhantismo insuperável, parte diretamente da leitura de Gógol em russo, mostra os equívocos de algumas das traduções do romance “Almas Mortas”, uma das três obras-primas do escritor (as outras são “O Capote’ e “O Inspetor Geral”) e traduz uma bela carta do autor para sua mãe. Edmund Wilson, que depois se tornaria inimigo de Nabokov, devido a uma tradução de Púchkin (amigo de Gógol que lhe teria sugerido o enredo para “Almas Mortas”), anotou: “Ele [Nabokov] escreveu o tipo de livro que só pode ser escrito por um artista sobre um outro artista. (…) ‘Gógol’ de Nabokov deve, daqui em diante, ser lido por todo aquele que tem a séria intenção de pesquisar a cultura russa”.

A seguir, vou transcrever alguns trechos da biografia, que prefiro chamar de ensaio, de Nabokov (mais conhecido como autor do romance ‘Lolita”, que dizem plagiado de um livro de um autor alemão do último time; santo plágio). “Quando uma pessoa me diz que Gógol é um ‘humorista’, eu logo vejo que essa pessoa não entende muito de literatura. Se Púchkin tivesse vivido o bastante para ler ‘O Capote’ e ‘Almas Mortas’, ele sem dúvida teria compreendido que Gógol foi algo além de um provedor de ‘humor autêntico’”, escreve Nabokov, russo que publicou a maior parte de sua obra em inglês. A crítica de Nabokov tem a ver com o fato de Púchkin, tido como pai da grande literatura russa, ter elogiado o humor de “Noites Numa Granja Perto de Dikanka”, obra menor de Gógol. Só que, quando a elogiou, essa obra de Gógol era um sopro de novidade no panorama literário russo. Púchkin morreu, num duelo, em 1837 (Gógol tinha 28 anos). “O genuíno Gógol se faz conhecer vagamente no irregular ‘Arabescos’ (contendo ‘Avenida Niévski’, ‘Diário de um Louco’ e ‘O Retrato’); e então irrompe com toda alma em ‘O Inspetor Geral’, ‘O Capote’ e ‘Almas Mortas’.”

Ao comentar ‘O Inspetor Geral’, que teria sido mal lido pela crítica e pelo público, que perceberam “sátira social” e “sátira moral”, Nabokov diz que “Gógol sempre foi bom em criar seu leitor” (em ‘Almas Mortas’, por exemplo, ele dirige a “degustação” do leitor, puxando-o para seu norte e, por isso mesmo, desnorteando-o). “Uma peça de Gógol é poesia em ação, e por poesia eu quero dizer os mistérios do irracional tal como percebido através de palavras racionais”, ensina Nabokov.

Ao explicar “Almas Mortas”¹, que considera como um livro que não faz necessariamente a crítica da exploração dos servos por seus senhores, mas como o grande romance que inspirou quase toda a literatura russa seguinte, Nabokov cita a palavra “póshlost”, que diz ser difícil condensar numa só palavra em inglês. Em português, talvez não seja possível condensá-la em “vulgaridade” e “mau gosto”, mas são termos próximos. Há “poshlost” em Gógol, sim, mas a serviço de uma estética superior.

“Almas Mortas” (a tradução da Nova Cultural, fácil de encontrar em livrarias e sebos, foi feita por Tatiana Belinky diretamente do russo) é a história de Tchítchicov, o homem que compra almas mortas, ou seja, camponeses que haviam falecido, de senhores de terras e servos inescrupulosos. O objetivo era apresentá-los como vivos e, então, tirar proveito do governo do czar. A história do golpista Tchítchicov é o centro do livro, mas Nabokov mostra que os personagens periféricos, construídos muito bem, apesar do estilo feérico, dão alma ao romance. “Antes do advento de Gógol e Púchkin a literatura russa era obtusa. (…) Eu duvido que algum escritor, e certamente não na Rússia, já tenha notado antes, para dar o exemplo mais extraordinário, o padrão móvel de luz e sombra no chão sob árvores ou as brincadeiras de cores feitas pela luz do sol com as folhas”, escreve, com vigor poético mas objetivamente, Nabokov.

Gógol não era o melhor juiz de sua obra, sugere Nabokov. O autor tentou dizer que “o riso arrebatado” e “as lufadas líricas” eram centrais em “Almas Mortas”. Nabokov discorda: “Gógol enganou a si próprio se ele pensou que poderia rir desse modo. Nem são as explosões líricas realmente partes do sólido plano do livro; elas são antes aqueles naturais espaços intermediários sem os quais o plano não seria o que é. Gógol delicia-se com o prazer de ser derrubado pelo vento que vem de alguma outra região de seu mundo”.

Vladimir Nabokv: autor de “Lolita” e “Ada” | Foto: Reprodução
Gênio impotente: um espécie de “doença”

“Para mim”, aponta Nabokov, “‘Almas Mortas’ termina com a partida de Tchítchicov da cidade de N. Eu mal sei o que mais admirar ao considerar o notável jorro de eloquência que leva a Primeira Parte ao seu término (…): a mágica de sua poesia — ou a mágica de uma espécie bem diferente; pois Gógol se defrontava com a dupla tarefa de, de algum modo, ter a salvação de Tchítchicov conseguida através de uma fuga e de desviar a atenção do leitor do fato ainda mais incômodo de que nenhuma retaliação em termos de lei humana poderia sobrepujar o agente de satã a caminho do lar, a caminho do inferno”.

Em 1852, aos 42 anos, Gógol morre, deixando incompleto o romance “Almas Mortas” (seria o mais completo dos livros incompletos?), que havia dividido em três partes (a segunda ficou incompleta e a terceira ele queimou). Gógol, diz Nabokov, “destruiu seu próprio gênio ao tentar se tornar um pregador. (…) Gógol tornou-se um pregador porque ele precisava de um púlpito para explicar a ética de seus livros e porque um contato direto com os leitores parecia a ele ser o desenvolvimento natural de sua própria força magnética. A religião deu-lhe a necessária entoação e método. É duvidoso se ela lhe deu alguma coisa mais. (…) Gógol era um homem de poucos livros e os planos que ele fizera para escrever o livro de sua vida vieram coincidir com o início de seu declínio como escritor. (…) Ele perdera o dom de imaginar fatos e acreditava que fatos podem existir por si sós. O problema é que fatos nus e crus não existem num estado natural, pois eles nunca são na verdade completamente nus e crus. (…) A consciência crescente de sua impotência tornou-se uma espécie de doença que ele ocultava de si mesmo e dos outros”, percebe, com argúcia, Nabokov. Esgotado, ele não tinha mais o que dizer, ou não sabia como dizer o que pensava, embora continuasse um gênio de primeira grandeza.

O que realmente importa, conclui Nabokov, é que “sua obra, como todos os grandes feitos literários, é um fenômeno de linguagem e não de ideias”. Mentiroso contumaz, Gógol nasceu em 1º de abril de 1809. Ele viveu apenas 42 anos.

Notas

¹ Mantive a grafia “Nicolai”, como está no livro. A grafia usual é Nikolai, com “k” e não com “c”.

² O leitor brasileiro tem sorte, pois conta com duas traduções de qualidade do romance “Almas Mortas”. Feita por Tatiana Belinky (russa de São Petersburgo), a primeira foi publicada pela Editora Perspectiva (a tradução de Belinky havia saído antes por outra editora, citada no texto acima). A segunda, de Rubem Figueiredo, saiu pela Editora 34 e tem 432 páginas.

O livro “O Capote e Outras Histórias”, com tradução de Paulo Bezerra, foi publicado pela Editora 34. A mesma casa editorial lançou “Teatro Completo” (tradução de Arlete Cavaliere, 408 páginas) e “Tarás Bulba” (tradução de Nivaldo dos Santos, 176 páginas)