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Iúri Rincon

Especial para o Jornal Opção

Esselin estava velho e cego. Vivendo na Cidade de Goiás no início do século XX, só havia desesperança para ele. Restava aguardar a morte, cada vez mais relegado e solitário em meio aos casarões coloniais e às ruas de pedra.

A sorte de Esselin foi conhecer um menino interessado em suas histórias da França natal, um fato raro naquela cidade parada no tempo em um Estado periférico do Brasil. Urbano de Castro Berquó tinha menos de 10 anos quando entrou na vida do velho cego. Nasceu em 11 de janeiro de 1906 em Araguari, Minas Gerais, filho de Joaquim Gomes da Silva e de Josefina de Castro Berquó. Os pais tomaram o trem na estação daquela cidade, entraram em Goiás e foram morar na capital do Estado.

Artigo de Urbano Berquó | Foto: Reprodução

“A França é uma das minhas mais vivas recordações de infância”, diria Urbano Berquó no futuro. O menino desenvolveu seu amor por um país que nunca visitara, ouvindo as histórias de Esselin. Com ele aprendeu francês antes mesmo de ingressar na escola e passou a ler para o velho os jornais e revistas que os parentes mandavam da Europa. Desde essa época, o garoto passou a pensar, raciocinar e escrever em francês. Adquiriu conhecimentos sobre temas universais, soube das rixas entre os países da Europa ocidental, ouviu relatos de sangrentas batalhas no Velho Mundo.

Quando a Primeira Guerra Mundial estourou, em 1914, Urbano tinha 8 anos. Acompanhava com Esselin o que se passava na Europa e começou a reconstruir os movimentos estratégicos do conflito espalhando “exércitos” de carreteis de linha no chão de tábua, orientado pelas informações de jornais franceses.

O alerta de Urbano Berquó | Foto: Reprodução

Paralelamente, arriscou os primeiros textos e se apaixonou pela leitura. Na escola, aluno dos padres dominicanos da Cidade de Goiás, encontrou incentivo e apoio. Terminou o Ensino Médio no Lyceu (ainda grafado com “Y”) e os pais o mandaram para o Rio de Janeiro, onde matriculou-se no Colégio Militar. Não se adaptou ao duro regime na escola. Era, digamos, pouco amante da disciplina, preferindo frequentar a sala dos presos, devorando livros. Além do francês, dominou o inglês. A parte que ele amava no ensino militar, como a estratégia das guerras e a história dos conflitos, ele poderia aprender nos livros. Não precisava seguir carreira nas Forças Armadas.

Com 23 anos decide que sua vida se faria no Jornalismo. Abandonou a carreira militar e passou a lecionar em diversos estabelecimentos de ensino na capital carioca como forma de sustento.

O Brasil vivia intensa agitação política, que desaguaria na Revolução de 1930, com Getúlio Vargas assumindo pela força a Presidência da República. Paralelamente, Urbano Berquó torna-se um entusiasta da construção de uma nova capital para seu Estado, ideia defendida pelo interventor Pedro Ludovico Teixeira, que em 1930 passa a ser homem de confiança do presidente Getúlio Vargas. “Cidade pobre, Goiás não poderá manter estabelecimento particular de saúde de tão grande necessidade. Já falhou a iniciativa privada. Somente uma oficial ou oficializada terá vida nesta cidade que se tornará mais decadente com a mudança da capital”, previu Urbano. Foi a primeira de diversas análises certeiras que faria pela vida afora.

Um profissional com suas qualificações não ficaria muito tempo longe das redações. Foi contratado pelo “Correio da Manhã”, fundado em 15 de junho de 1901 e que dava ênfase à informação em detrimento da opinião. Berquó vinha na contramão e assinava uma coluna de política internacional chamada “Notas Diárias”, geralmente impressa na página quatro, onde fazia uma análise da economia e da política internacional dos maiores países da época. Era chamado de economista e de estatístico. Tornou-se um homem de ideias, mas sem se enquadrar em nenhuma escola ou academia.

Logo nos seus primeiros artigos fez mais uma previsão que se concretizaria: o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, não deu a largada a um tempo de paz e apenas aparentava ser o início de uma nova era. Em 1930, três anos antes do Partido Nazista chegar ao poder na Alemanha, Urbano cravava: “Uma economia mundial garantidora da paz só poderia ser construída depois que as economias de cada país estivessem, também, organizadas sobre bases racionais”. O Tratado de Versailhes, assinado em 1918 e que pôs fim à Primeira Guerra, humilhou a Alemanha e impôs ao país medidas impossíveis de serem cumpridas. Nele, não havia “bases racionais”, apenas o vencedor se impondo sobre o vencido. O agora jornalista temia um novo conflito armado entre as grandes potências, o que aconteceria a partir de 1939.

Celso Furtado: um dos mais importantes economistas brasileiros | Foto: Reprodução

Urbano se equilibrava entre suas análises em um jornal que não prezava a opinião e que escolheu uma linha editorial francamente a favor da Alemanha. Mas aí o jornalista havia se tornado grande e importante demais. Podia falar o que bem entendesse. Além do “Correio da Manhã”, também assinava seus artigos em vários jornais do Brasil, sempre sobre política internacional. Quando partia para a crítica literária, usava o pseudônimo de Spectador. Quando escrevia sobre política internacional assinava Urbano C. Berquó.

Em novembro de 1937 foi o organizador e primeiro diretor da “Revista do Serviço Público”, também editada no Rio de Janeiro. A publicação, inovadora para a época, discutia a melhoria do atendimento à população e a qualificação profissional dos funcionários, onde eram apresentadas as novas abordagens relacionadas à organização e ao funcionamento da máquina administrativa.

Urbano foi um dos primeiras a defender o concurso para o ingresso na carreira pública, ou seja, por mérito, devendo este profissional ter “estudo constante para não perder contato com o progresso teórico e prático nos métodos da atividade profissional”, conforme o editorial do número um da revista.

Ainda naquela edição, publicou um artigo intitulado “A transformação do Estado e a reforma do serviço público civil”, no qual expunha sua visão histórica de mundo que aprendera desde criança na Cidade de Goiás com o velho Esselin. De acordo com ele, o Estado assumiu uma crescente importância desde a Primeira Guerra Mundial, em 1914 e defendia que a queda da Bolsa de Valores de 1929 e a consequente depressão financeira do período se deveu à “inadequação e ineficácia dos velhos métodos e instrumentos tradicionalmente empregados na terapêutica das crises”. Urbano queria que os países e os governos pensassem diferente como ele e que encontrassem novas soluções para além das aparências e do que havia sido tentado antes.

Foi ele quem levou para a “Revista do Serviço Público” o economista e jornalista alemão Richard Lewinsohn, um conhecido do “Correio da Manhã”. Naquela publicação, Urbano era chefe ainda do economista Celso Furtado, um dos mais destacados intelectuais brasileiros de todos os tempos.

Apesar de não ter muitos livros publicados, Urbano escreveu, como jornalista de jornal diário, mais do que a maioria dos escritores. É sua a tradução de “Vers L’armée de Matier” (“E a França Teria Vencido”), do general e líder político francês Charles de Gaulle, inclusive assinando o prefácio. Publicou ainda “O Blitzkrieg Medieval”, série de três textos sobre história militar. Havia sido convidado pelo rei da Inglaterra Jorge VI a visitar o país e recebeu uma comenda de Chan-Kai-Check, presidente da República da China. Preparava um livro de sociologia e outro sobre estratégias militares, tema que estudava desde a infância.

Casado com Zulmira Ferreira, teve um casal de filhos e estava no auge da carreira quando passou a se sentir mal e perder as forças. Um dos motivos foi a abalo que sofreu com a morte da mãe, que morava junto com ele no Rio de Janeiro. “Não sobreviverei dois anos à morte de minha mãe”, confidenciou a amigos. Desse ponto em diante jamais deixou de falar na morte, provavelmente entrou em depressão e passou a achar a existência vazia de sentido e que não merecia ser vivida.

Não sobreviveria para assistir à sua derradeira previsão acertada: a derrota da Alemanha nazista para os Aliados. Seu último texto no “Correio da Manhã” foi em 30 de novembro de 1941, um período em que Hitler conquistava a Europa, o presidente Getúlio Vargas demonstrava simpatia pelos alemães e ninguém imaginava uma derrocada nazista.

Mesmo desanimado, conservou o hábito da leitura e ainda conseguiu ouvir seus artigos sendo lidos na transmissão em português da prestigiada BBC de Londres.

Urbano Berquó foi internado no Hospital da Beneficência Espanhola e morreu em 21 de abril de 1942. A última vez que abriu os olhos perguntou pela situação da Europa em guerra. Velado na capela da Igreja da Glória no Largo do Machado, centro do Rio de Janeiro, foi enterrado no Cemitério São João Batista, na mesma cidade.

Sua morte causou grande comoção. O Comitê de Gaulle, que lutava pela libertação da França ocupada pelos alemães, mandou coroa de flores com uma cruz de Lorena, símbolo do país, com o pedido para que ela fosse colocada do lado esquerdo do caixão, o lado do coração do jornalista. 

Conhecido na redação do jornal como “o nosso Berquó”, a direção do “Correio da Manhã” mandou rezar missa na quarta-feira, 28 de abril de 1942, na Capela de Nossa Senhora das Vitórias, da Igreja de São Francisco de Paula. Dentre os goianos que prestaram suas últimas homenagens estavam o então ex-deputado federal Domingos Vellasco e o editor da revista “Informação Goyana” (editada e impressa no Rio de Janeiro), Benedito Silva.

Monsenhor Joaquim Nabuco publicou artigo no “Jornal do Brasil”, em que dizia que Berquó “chegou em pouco tempo à percepção possível de um grande internacionalista, de raro senso político. Era nas suas crônicas que eu procurava meios para me guiar entre a barafunda europeia”. Seria citado ainda mais quatro vezes em edições do “Correio da Manhã”, até dois anos depois de sua morte, em 1944.

Em Goiás pouco se falou sobre Urbano Berquó. O fundador do jornal “O Popular”, Câmara Filho, patrocinou um concurso de oratória na Faculdade de Direito instalada da Rua 20, com análise de sua vida e obra. Ficou nisso.

Apesar de ter feito sucesso na então capital da República, o jornalista foi sendo esquecido em Goiás e no Brasil. Analista internacional de primeira linha, capaz de antever os movimentos da política e dos países, Urbano Berquó é o patrono da cadeira número 23 da Academia Goiana de Letras, entidade que tem como uma de suas missões preservar a memória de seus imortais.

Tomara que esta pequena biografia possa ajudar.

Iúri Rincon, jornalista e escritor, é membro da Academia Goiana de Letras.