O Jornal Opção completa 50 anos no dia 22 de dezembro deste ano. Inspirado no jornal “Opinião”, de Fernando Gasparian, foi fundado pelo jornalista e economista Herbert de Moraes Ribeiro, nos governos de Irapuan Costa Junior, estadual, e de Ernesto Geisel, nacional, em 1975. A ditadura caminhava para a distensão que, adiante, se tornaria abertura.

Vou escrever cinco textos versando sobre os bastidores do jornal, sobre sua cozinha, digamos. Começo pelas reuniões de pauta.

Na década de 1990, a sede do Jornal Opção ficava no Center Shopping Tamandaré, na Avenida República do Líbano, nas proximidades da Praça Tamandaré.

Euler de França Belém, Eurico Barbosa e Herbert de Moraes Ribeiro, em outubro de 1999, na porta da sede do Jornal Opção, no Center Shopping Tamandaré | Foto: Carlos Viana/Jornal Opção

As reuniões de pauta ocorriam às segundas-feiras, entre 9 e 13 horas, às vezes estendendo-se um pouco mais. Alguns dos participantes (editores, colunistas, repórteres): Afonso Lopes (falecido), Consuelo Nasser (participou apenas de algumas, e mais comigo, Herbert e Gleice Clímaco; Consuelo dizia: “Quero ser pauteira”, quer dizer, chefe de reportagem), Euler de França Belém, Helton Lenine, Helvécio Cardoso (jornalista e cartunista, falecido), Herbert de Moraes Ribeiro (falecido), José Luiz Bittencourt Filho, José Maria e Silva, Léo Alves (falecido), Luiz Carlos Bordoni, Rogério Lucas e Sebastião Abreu (quando colocamos computadores na redação, foi o único que continuou escrevendo na sua Olivetti).

Herbert chegava com o jornal de domingo com várias marcações. Usava caneta e marca-texto verde. Apontava os erros e dizia, com todas as letras, se o jornal estava “bom” ou não.

“Seu Afonso Lopes, não havíamos combinado que não escreveria mais ‘o racha da deputada’?”, dizia, de cara, Herbert. Racha, no caso, significava que a deputada estava dividindo seu partido. Mas era uma palavra proibida.

Márcia Elizabeth, Helvécio Cardoso, Sebastião Nery, Euler de França Belém e José Luiz Bittencourt, na redação do Jornal Opção, no Center Shopping Tamandaré | Foto: Reprodução

Havia o que a redação chamava de “índex do Herbert”. Várias palavras eram proibidas: “desempenho”, “racha”, “penetração”. A rigor, não era moralismo, e sim uma defesa do texto elegante. Assim, o “racha da deputada”, título do Afonso Lopes — o mestre da simpatia e da graça —, era visto como o cúmulo do mau gosto.

Léo Alves tinha o hábito de escrever “a nível de”. A revisão, feita pelo mestre dos mestres Baltasar — que apreciava uma pinguinha —, às vezes deixada escapar. Herbert corrigia: “Use em nível de” ou “em termos”.

Herbert havia comprado manuais de redação do “Estadão” e da “Folha” e sugerido que a redação os consultasse. “Confira o que diz sobre crase.”

Depois das admoestações sobre falhas e supostos equívocos interpretativos, passávamos, enfim, às pautas.

Herbert sugeria suas pautas e ouvia as pautas dos jornalistas. José Maria e Silva, o jornalista mais brilhante de sua geração, anotava as sugestões num caderno e, mais tarde, passava, por escrito, as orientações para os repórteres.

Afonso Lopes; repórter, analista político e apresentador de televisão | Foto: Facebook

Numa reunião em que todos falavam, com debates acerbos, era difícil, às vezes impossível, anotar tudo com precisão. Mas José Maria e Silva, que todos chamavam de Zé Maria, fazia milagres — anotando o essencial.

O que parecia falta de objetividade era, na verdade, uma maneira de refinar o pensamento do jornal — portanto, o de seus repórteres e editores — com o objetivo de torná-lo mais reflexivo e não trivial. “A mediocridade não vê nada superior a si mesma”, disse Liev Tolstói, acatado por Herbert.

Nunca esqueço de um alerta de Herbert: “Jornal que perde a qualidade, por um longo tempo, não volta a adquiri-la. Perde-se nos meandros do fácil. Não se deve perder a dimensão de que o Jornal Opção é um jornal de opinião, de análise”.

Depois de esboçadas as pautas, iniciava-se outra reunião, também de pauta, porém de matiz mais intelectual. Alguns artigos e reportagens eram feitos a partir desta “segunda” reunião que, de matinal, acabava se tornando vespertina. Com todos já com fome, não mais de ideias, e sim de comida.

Napoleão Bonaparte, Karl Marx e Adolf Hitler

Os jornalistas falavam de suas leituras. Herbert apreciava citar o general Kutuzov, do romance “Guerra e Paz”, do russo Liev Tolstói. Zé Luiz também tinha interesse no assunto, assim como eu (mais apreciador de “Anna Kariênina”).

Rogério Lucas foto Divulgação
Rogério Lucas: colunista político | Foto: Divulgação

As tropas de Napoleão Bonaparte invadiram a Rússia em 1812 e, quando parecia que haviam vencido a guerra, acabaram sendo derrotadas. Os russos usaram, à perfeição, a tática de terra arrasada. Foram destruindo quase tudo por onde passavam, deixando os franceses sem alimentos e estrutura mínima. A geada se encarregou do restante. O “general inverno” teria sido tão forte quanto os soldados e oficiais de Kutuzov. (Quando saiu a edição de “Guerra e Paz”, pela Editora Cosac, com a qualificada tradução de Rubens Figueiredo, Herbert ficou entusiasmado.)

Salvo engano, José Luiz Bittencourt, o Zé Luiz — um jornalista notável, de inteligência fina —, lembrou-se que o nazista Adolf Hitler havia cometido erro parecido.

“De fato”, concordou Herbert. “Hitler ampliou o erro de Napoleão, pois adotou a tática de lutar em duas frentes — contra a Inglaterra e União Soviética —, dispersando suas forças.”

Sebastião de Abreu, ou Helton Lenine, disse que, se não tivesse atacado a União Soviética, Hitler poderia ter submetido a Inglaterra — o que teria impedido a entrada dos Estados Unidos na guerra europeia.

Pedro Ludovico Teixeira é entrevistado pelos jornalistas Herbert de Moraes Ribeiro e José Luiz Bittencourt

Afonso Lopes, analista de política de primeira linha (quando acabamos com sua coluna de pescaria, quase chorou e disse: “Dona Iris adora”. Eu e Herbert queríamos que se concentrasse no que fazia melhor: o comentário político e a análise de pesquisas. A rigor, a coluna não tinha o perfil do jornal — assim como a coluna “Coisas do Além Túmulo”, que mandamos para, digamos, a cova), corroborou: “O ataque do Japão levou os Estados Unidos a entrar na guerra. Outra estultice”.

Acredite: sob pressão, Afonso Lopes leu “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa. Um vendedor de livros itinerante, o Moura, apareceu com livros da Editora Aguilar, em papel bíblia, e o jornalista foi compelido a comprar um exemplar da opus magnum do James Joyce dos trópicos.

Qual a lição da conversa histórica (entre outras) para o jornalismo? Que é sempre um risco “brigar” em duas frentes. Fica-se vulnerável. (O bolsonarismo ferrou-se porque brigou, não apenas em duas, e sim em várias frentes.)

Herbert tinha apego imenso ao seu Estado. Por isso dizia que, quem ficasse contra Goiás, se tornava um adversário do Jornal Opção. A jornalista Patrícia Moraes, sua notável herdeira e renovadora do jornal, segue pela mesma seara, e com razão.

Certa feita, Herbert estava lendo Marx (“O Capital”, o “Manifesto Comunista” e “O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte”) e planejava ler a obra do filósofo húngaro István Mészáros, não me lembro se “Para Além do Capital”, e “Origens da Dialética do Trabalho”, do “marxólogo” brasileiro José Arthur Giannotti.

“A violência é a parteira da história” era uma frase de Marx sempre citada nas reuniões (a frase, ainda que verdadeira, nunca me entusiasmou). A história se repete duas vezes — como tragédia e como farsa — era outra citação de Marx que estava na boca dos membros da redação e aparecia nos seus textos (vários eram reescritos pelos redatores — o que atrasava a edição do jornal).

Uma reunião polêmica se deu em torno do livro “Modelo Político Brasileiro”, do sociólogo Fernando Henrique Cardoso.

Celso Furtado disse que a ditadura, o regime autoritário, levaria o país à estagnação econômica. O economista era altamente preparado e, por isso, sabia que era possível crescer sob um sistema discricionário. Sua crítica era, possivelmente, mais ideológica do que científica. No sentido de que planejava mais deslustrar a ditadura do que apresentar seus possíveis acertos.

Fernando Henrique, que escrevia no “Opinião”, contestou Celso Furtado. Mostrou que a ditadura, apesar de nefasta, conseguira um feito: o país estava crescendo economicamente. O que lhe deu longevidade — 21 anos sombrios.

A ideia, exposta na reunião de pauta, era a respeito do risco de se publicar o que se pensa, mas não o que é. Como ocorreu com Celso Furtado.

A pretensão do Jornal Opção, desde os primórdios, nunca foi fazer a cabeça do leitor, e sim surpreendê-lo. O objetivo sempre foi ampliar o pensamento de quem está lendo, lutando contra clichês e “verdades simplistas e limitadoras”. Iluminar caminhos é uma receita do bom jornalismo.

Kant, Foucault, Darcy Ribeiro e Millôr

Quando Herbert começou a discutir Kant — chegou a convocar o filósofo equatoriano Gonçalo Armijos Palacios, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), para torná-lo inteligível —, a redação não me mostrou tão interessada. Até cochilou. O filósofo alemão é uma pedreira quase intransponível. Até a obra do filósofo francês Gerard Lebrun foi “convocada” para auxiliar no “entendimento” do homem da hora certa (Kant era tão pontual, dizem, que alemães acertavam seus relógios quando ele passava para ir à universidade).

Trocamos Kant por Michel Foucault, que, sim, era mais legível. Começamos com “Microfísica do Poder”.

Na reunião de apresentação do AI-5 aos seus ministros, em 1968, o presidente Costa e Silva abriu espaço para se posicionarem. Todos (Delfim Netto, Jarbas Passarinho etc.) aprovaram, de maneira vergonhada, o regime se tornando ainda mais autoritário — roçando o totalitarismo.

O vice-presidente Pedro Aleixo, divergindo, teria dito ao general-presidente: o perigo, criado pelo AI-5, não é o general, e, sim, o guarda da esquina. Amparado pela lei, o soldado desce o cassetete no lombo de qualquer um. “É o micropoder”, aventurou-se a dizer Léo Alves, que, interessado em matérias policiais, quase sempre se mantinha calado. Era excelente repórter, com passagem pela “Folha de S. Paulo”.

Sebastião de Abreu aprovou quando, no lugar de discutir o “indecifrável” Kant e o “escorregadio” Foucault, passou-se, finalmente, a dois brasileiros — o antropólogo Darcy Ribeiro e o filósofo do humor Millôr Fernandes.

O ensaio “Sobre o óbvio” era lido por parte da redação do Jornal Opção. O que parece nem é sempre óbvio. Então, para algo se tornar óbvio, é preciso insistir sobre o tema e explicá-lo repetidas vezes. Assim, do ponto de vista jornalístico, interpretávamos as “lições” de Darcy Ribeiro. Às vezes, é preciso “mastigar” os assuntos para “alimentar” de maneira mais adequada e perceptiva os leitores.

Darcy Ribeiro entrevistado, na redação do Jornal Opção em 1994, por Euler de França Belém e José Maria e Silva | Foto: José Afonso/Jornal Opção

Darcy Ribeiro concedeu entrevista ao Jornal Opção, no Center Shopping Tamandaré, com uma verve incomparável.

Depois de ouvir uma pergunta crítica de um dos jornalistas, o escritor e ex-ministro da Educação pegou no seu ombro e disse: “Quando era menino, como você, eu saía às ruas batendo panelas. Meu filho, vá para as ruas bater panelas”. Todo riram, inclusive Darcy Ribeiro.

Entrevistamos também o escritor Jorge Amado, que estava se tratando em Goiânia com o oftalmologista Marcos Ávila.

Na sequência, Millôr Fernandes, que brilhara no “Pasquim”, na “Veja” e no “Jornal do Brasil”, entrou na roda. Quem o citou não me lembro. Talvez Rogério Lucas, um dos melhores analistas de política de Goiás, ou Helvécio Cardoso (um dos jornalistas mais cultos da equipe — leitor infatigável de Hegel).

Humorista, cartunista e dramaturgo, Millôr Fernandes aventurou-se a traduzir o britânico Shakespeare e o russo Tchékhov (do inglês, possivelmente).

O embaixador Geraldo de Carvalho Silos, tradutor de Shakespeare, não apreciou a versão de Millôr Fernandes e a criticou num longo artigo para a “Folha de S. Paulo”.

A reação de Millôr Fernandes foi dura e impagável. Ele escreveu um pequeno e corrosivo texto no “Jornal do Brasil”. A frase mais leve era: “Não se amplia a voz dos idiotas”.

Pedro Sérgio dos Santos, Zélia Gattai, Jorge Amado, José Maria e Silva e Euler de França Belém, no Castro’s Hotel, em Goiânia, em 1997 | Foto: José Afonso/Jornal Opção

Mais uma lição para a redação: responder todas as críticas, sobretudo as piores, é uma maneira de, direta ou indiretamente, repercuti-las. Não se pode ignorar tudo. Mas é preciso deixar de lado muita coisa para não sair do próprio eixo. Era um conselho de Herbert.

“Uma foto vale mais do que mil palavras.” Certo? Às vezes, sim. A fotografia de menina queimada por Napalm no Vietnã vale mesmo mais do que mil palavras. Mas o reparo de Millôr Fernandes permanece válido: “Agora diga isto sem palavras”.

Um poema do britânico John Donne, traduzido por Paulo Vizioli, era um dos preferidos de Herbert e acabou se tornou um dos mais apreciados pela redação, assim como “Se”, de Rudyard Kipling.

John Donne, tão reverendo quanto William Blake, escreveu, num de seus mais belos poemas, que nenhum homem é uma ilha (a história é coletiva, ainda que o indivíduo tenha sua participação). Hemingway aproveitou um trecho do poema, “porque quem os sinos dobram” (“eles dobram por ti”), como título de seu romance talvez mais famoso (sobre a Guerra Civil Espanhola).

Machado de Assis era uma das paixões de Herbert e Zé Maria, que escreveu textos formidáveis sobre o autor de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (num deles assinala que o brasileiro “é maior do que Shakespeare”. Harold Bloom não saiu do túmulo porque, na época, ainda estava vivo). Herbert apreciava a sutileza de “Brás Cubas”. Mais do que a história do suposto adultério em si.

Qual era o objetivo de, nas reuniões de pauta, discutir economia, literatura, história e filosofia? Refinar o texto do jornal, torná-lo mais denso e encorpado. O presente deve ser lido também pelo passado e, claro, pelo próprio presente. Quem ignora a história às vezes deixa escapar as questões centrais do presente.

“Para escrever análise num veículo como o Jornal Opção é preciso ter formação e entender que se trata de um jornal ativo e não reativo”, sublinhava Herbert.

A literatura ajuda a refinar a sensibilidade. A economia política colabora na compreensão da engrenagem da máquina social. A filosofia contribui para iluminar o pensamento, ao mostrar que verdades consagradas podem ser mitos e falsificações às vezes grosseiras. Por isso não se falava, nas reuniões, tão-somente das pautas ditas triviais.

O que fazer nos tempos da pressa e do cansaço? Tenho a impressão de que, se vivo, Herbert recomendaria a leitura do filósofo coreano Byung Chul Han. O especialista em Heidegger, radicado na Alemanha, escreve com clareza ímpar sobre questões centrais que preocupam o homem contemporâneo (ah, sim, seus livros não são montanhas quase intransponíveis quanto as obras de Kant e Heidegger).

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