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Eduardo Francisco Alves apresenta trabalho descuidado para a Editora Difel. O nome de uma pessoa aparece escrito de três formas em única página

O jornalista Paulo Francis dizia que os filmes do Cinema Novo eram uma merda, mas os diretores eram geniais. Algo equivalente pode-se dizer do livro “Lenin — A Biografia Definitiva” (Difel, 630 páginas), do historiador britânico Robert Service.

O livro de Robert Service é excelente, mas a tradução, assinada por Eduardo Francisco Alves, é lamentável. Apesar do descuido do tradutor, o historiador mostra, com fartura de informações e análises, as razões do fracasso do socialismo na Rússia. As razões começam com Vladimir Lênin (“o profeta do amoralismo marxista”), e não com Stálin, pois aquele, e não este, foi o fundador do Estado totalitário.

Engana-se, porém, quem pensa que Lênin era igual a Stálin. Lênin, mostra Service, defendia um Estado repressor, autorizou ataques aos socialistas revolucionários (que o tradutor chama de “revolucionários socialistas”, porque, ao traduzir do inglês, não percebeu que, em português, precisava, em nome da precisão histórica, mudar a disposição das palavras), manipulava todo mundo e jogava pesadíssimo. Mas Lênin, crítico duro de alguns bolcheviques, procurava preservar seus aliados e/ou quase-aliados — e, como revela Robert Service, a Revolução Russa de 1917 talvez não tivesse ocorrido sem sua intensa capacidade de articulação e intervenção política.

Lênin: o bolchevique que operou a Revolução de 1917 na Rússia

Stálin, pelo contrário, por mera suspeita ou paranoia, matava seus aliados e até algumas de suas mulheres. Mandou a mulher de Molotov, seu principal aliado, para a cadeia, com o objetivo de testar a lealdade do velho bolchevique. Uma boa dica é combinar a leitura do Lenin de Service com “Stálin — A Corte do Czar Vermelho” (Companhia das Letras, 912 páginas, tradução de Pedro Maia Soares), de Simon Sebag Montefiore. A falha deste é avaliar que, pelo número de livros lidos, Stálin era um intelectual respeitável.

Não fiz uma leitura em busca de erros, mas, mesmo assim, encontrei dezenas de erros e imprecisões. Exemplos do desleixo da edição (que sequer menciona o nome de possíveis revisores do livro): o nome de Lunatchárski (grafia proposta por respeitados tradutores do russo, como Boris Schnaiderman) aparece grafado de três formas: Anatoli Lubacharski (página 207), Lucharski (página 208) e Lunacharski (página 616); o nome do chefe da Cheka, a polícia secreta criada por Lênin, é grafado de seis formas diferentes (numa só página é grafado de três modos distintos): Felix Dzierjinski (página 325), Dzerjinski (página 371), Dzerjynski, Dzerjyinski, Dzerjuinski (página 511) e Dzierzynski (página 605). Há trechos que parecem ter sido escritos por alguém especializado no samba do crioulo doido.

Robert Service; biógrafo de Lênin, Trotski e Stálin

Sobre o uso de “Lenin” e não Lênin, o tradutor brasileiro pergunta: “… por que Lenin é Lênin e não Lenín? Aí já é tendência, o pendor ou a vocação da língua, o que dificilmente se explica”. Bobagem. Basta dizer que, em inglês, Lênin não tem acento, mas em português deve ter. A frase de Eduardo Francisco Alves é estranhamente confusa: “… por que Lenin é Lênin…?”. Ora, o tradutor admite, sem querer, que a grafia correta é Lênin, com acento. Boris Schnaiderman, nascido na Ucrânia, fundador do curso de Russo da Universidade de São Paulo e considerado um dos mais categorizados tradutores do russo — verteu Púchkin, Dostoiévski, Tchékhov, Tolstói e Maiakóvski —, escreve “Vladímir Ilitch Ulianov, dito Lênin”. Eduardo Francisco Alves exclui acentos, elimina o “t” de Ilitch e troca “i” por “y” em Ulianov: “Vladimir Ilich Ulyanov, Lenin”. Na ficha catalográfica, comprovando que não há qualquer padronização no texto da Difel, grafa-se “Ilitch”.

Apesar dos muitos erros, que uma revisão eficiente poderia ter corrigido, o problema mais grave é ético e de responsabilidade, provavelmente, não do tradutor, mas da Editora Difel. O título do livro em português é uma fraude que não foi comentada pelos resenhistas brasileiros. Em inglês, o título é “Lenin: a Biography” (publicada em 2000). Não há qualquer referência que possa justificar o título proposto pela Difel-Editora Bertrand Brasil: “Lenin — A Biografia Definitiva”. O título em inglês, “Lenin — Uma Biografia”, é honesto. Em certas partes do livro, Robert Service diz que alguns assuntos precisam ser melhor pesquisados, ou seja, não se propõe a estabelecer a biografia “definitiva” do revolucionário russo. Os arquivos soviéticos não foram inteiramente abertos.

Robert Service peca ao contar o atentado sofrido por Lênin. Ele sequer menciona o nome da socialista — Fanni Kaplan — que atirou no líder bolchevique. A história é muito bem contada por Orlando Figes, em “A Tragédia de um Povo” (Record, 1.106 páginas), o livro seminal sobre a Revolução Russa.

[Texto publicado no Jornal Opção em 2009]