Thomas Skidmore, historiador que morreu este mês, explicou muito bem o Brasil para os brasileiros

13 junho 2016 às 10h40

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O brasilianista, em dois livros de excelente qualidade, interpretou a história do país de 1930 a 1985 a partir de uma pesquisa exaustiva e não ideologizada. Ele tinha Alzheimer e morreu aos 83 anos
Histórias gerais de qualidade são raras. No geral, por abarcar períodos longos e até muito longos, tendem à simplificação. Aspectos cruciais às vezes são contados rapidamente e, até, negligenciados. Escritas para não especialistas, se não úteis para estudantes fazerem provas e passarem de ano, raramente ajudam a compreender, de maneira ampla, certas passagens históricas, com suas clivagens, contradições. Poucos historiadores se aventuraram a escrever sobre a história do século 20 de modo amplo. O norte-americano Thomas Skidmore — falecido no sábado, 11, aos 83 anos (com Alzheimer e síndrome do pânico, vivia num asilo) — escreveu duas sínteses apreciáveis.
Em 1982, há 34 anos, o brasilianista Thomas Skidmore publicou “Brasil — De Getúlio a Castelo: 1930-1964” (na verdade, Castello), pela Editora Paz e Terra, com tradução de Ismênia Tunes Dantas e apresentação de Francisco de Assis Barbosa (que teria sido o criador da palavra brasilianista). Com uma pesquisa exaustiva, escreveu uma história decente do período, examinando com percuciência tanto a política quanto a economia. Os governos de Getúlio Vargas, Eurico Dutra, Juscelino Kubitschek e João Goulart e, seguida, a chegada da ditadura civil-militar, com Castello Branco, são analisados com rigor e sem politização e ideologização (frequentes em período de conturbação política).
Por seu caráter inovador, quase único, com a apresentação de uma espécie de nova história, Thomas Skidmore não agradou inteiramente a academia. No momento em que publicava seu livro, o país estava conflagrado, começando a sair da ditadura instaurada em 1964. Portanto, uma obra que escarafunchava a história de 1930 a 1964 (a ditadura não é examinada de maneira ampla, o que ficou para outro livro), mas sem as condenações adjetivadas de fatos e indivíduos, só poderia ser uma espécie de porta-voz de interesses nebulosos. Diziam, e não só nos bastidores, que o pesquisador era agente da CIA e, por isso, teria obtido acesso a documentos inacessíveis aos estudiosos brasileiros. De fato, era amigo de Lincoln Gordon, embaixador americano que apoiou o golpe de 1964, mas, até onde sabe, não era um agente do governo americano (teve acesso a militares, é fato, porque não era partícipe do processo político patropi). Quando oportuno, chegou a fazer críticas à ditadura, mas não era radical. Na verdade, era um scholar especializado por Harvard, um pesquisador criterioso que queria mais entender o país, explicando-o para os próprios brasileiros e para outros povos, do que criticá-lo de maneira politizada e ideologizada. Pessoalmente, do ponto de vista político, era um moderado.
Procede que “Brasil — De Getúlio a Castelo” está datado, parcialmente, pois a pesquisa histórica, com a descoberta de novos documentos e a apresentação de novas pesquisas e interpretações, avançou e continua avançando. No geral, permanece como uma pesquisa interessantíssima e vívida do período. A biografia em três volumes de Getúlio Vargas, do jornalista Lira Neto — que pesquisa como verdadeiro historiador, com meticulosidade rara —, revisa em parte o trabalho de Thomas Skidmore, embora não seja a sua intenção.
A biografia escrita por Lira Neto, também autor de uma ótima biografia de Castello Branco, não cuida tão-somente de Getúlio Vargas, embora o presidente seja o centro de sua atenção. É um exame preciso da história do país, do início do século ao suicídio de Getúlio Vargas em 1954. Suicídio que abortou o golpe que civis da UDN e militares já haviam “colocado” nas ruas e na imprensa.
(Na esteira de Thomas Skidmore, o brasilianista Stanley Hilton escreveu um livro notável: “Oswaldo Aranha — Uma Biografia”. Aquilo que parece consenso, como o apoio total de Getúlio Vargas à movimentação pró-Revolução de 1930, ganha novos contornos. O pesquisador americano mostra que inicialmente Getúlio Vargas tentou conciliar com o presidente Washington Luís e só aderiu aos revolucionários um pouco mais tarde. Oswaldo Aranha pressionou-o pelo rompimento com o político de São Paulo e para que se unisse aos mineiros. Histórias específicas, como a de Stanley Hilton, costumam acrescentar informações para a história geral.)
Em 1988, há 28 anos, Thomas Skidmore voltou às livrarias com outro portento — uma história geral de um período menos longo. “Brasil — De Castelo a Tancredo: 1964-1985”, publicado pela Editora Paz e Terra, com tradução de Mário Salviano Silva. Seu livro deve ser lido (mas não comparado, pois não tinha como obter as informações apresentadas pelos historiadores posteriores), com algumas perdas, com o acompanhamento das obras de Carlos Fico, Daniel Aarão Reis, Ronaldo Costa Couto (autor de excelente livro sobre a Abertura) e Elio Gaspari. E outros, é claro.
Thomas Skidmore vasculhou arquivos, conversou com historiadores e políticos, examinou livros e jornais e revistas. O resultado é uma excelente síntese sobre os governos civis-militares. Como os fatos do pós-1964, acontecidos “ontem”, ainda estão quentes e os arquivos ainda estão sendo vasculhados, a obra está ligeiramente datada. Mas a movimentação do jogo político, a análise das ações que levaram à distensão e à abertura e a apresentação do sucesso econômico e das crises econômicas, muitos bem examinados, permanecem vívidos. O brasilianista tinha um “olho bom” para o papel dos indivíduos na história, sem perder a dimensão do quadro geral. O operário-político Lula da Silva, por exemplo, é citado em onze páginas. Petrônio Portella é mencionado como articulador de primeira linha, ainda que falte um livro que registre com mais atenção seu papel no processo de distensão e Abertura. O historiador Luís Mir está preparando sua esperada e necessária biografia.
Goiás na fita histórica
Na página 58, Thomas Skidmore menciona um político goiano: “O Estado de Goiás, por exemplo, testemunhou atos de extrema violência contra presos políticos quando os militares e os políticos da UDN ali intervieram para depor o governador do PSD, Mauro Borges” (foto acima). O governador, que havia apoiado o golpe, acabou cassado quase no fim de 1964.
Trecho das páginas 92 e 93: “Em novembro de 1964 [Castello Branco] viu no episódio Mauro Borges [sua cassação, a pedido da linha dura militar e de políticos de Goiás] mais um meio de ajudar o seu partido predileto. Membro do poderoso clã Ludovico, que há muito controlava a política de Goiás, Mauro Borges governava o Estado em nome do PSD. Mas fizera muitos inimigos, tanto no plano local como no nacional, e, dentre eles, militares da linha dura. Esses adversários fizeram circular boatos ligando o nome de Borges a um movimento guerrilheiro contra o regime. Não podia haver notícia melhor para os líderes da UDN estadual, que esperavam alcançar o poder através do expurgo dos Ludovico pelo governo federal. Como o Ato Institucional nº 1 havia expirado, Castelo não dispunha mais do poder arbitrário usado em expurgos políticos anteriores. Em vez disso, ele procurou persuadir a assembleia estadual a requerer intervenção federal. Mas o Congresso federal tornou desnecessária a solicitação votando pela ‘intervenção’ em Goiás. Mauro Borges foi afastado e um idoso marechal do Exército, escolhido a dedo pelo presidente, nomeado interventor. O expurgo de um governador meses após haver expirado a vigência do Ato Institucional indicava que a ‘fase negativa’ da política revolucionária não havia terminado”.
Raça e nacionalidade
O melhor livro de Thomas Skidmore talvez seja “Preto no Branco — Raça e Nacionalidade no Pensamento Brasileiro: 1870-1930”. É um diálogo crítico com o pensamento brasileiro, o que, quem sabe, acabou por torná-lo ligeiramente esquecido. O brasilianista não quis, por certo, se colocar entre pares mais ilustres, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Darcy Ribeiro e Raymundo Faoro — até por que era mesmo mais historiador do que, ao contrário dos demais, “pensador” (digamos pensador da história). Mas seu livro talvez possa ser inscrito como um integrante, quem sabe menor, do “clube” dos autores de “Casa Grande & Senzala”, “Raízes do Brasil”, “Formação do Brasil Contemporâneo”, “Formação Econômica do Brasil”, “O Povo Brasileiro” e “Os Donos do Poder”.
Edições da Companhia das Letras
A Editora Companhia das Letras está publicando os livros de Thomas Skidmore, em edições cuidadosas, escoimadas de alguns erros. Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni são sociólogos, e não antropólogos. O general Afonso Augusto de Albuquerque Lima não era da reserva quando foi nomeado ministro (consta que a aliança de Iris Rezende com Albuquerque Lima pode ter provocado a sua cassação; estranhamente, o general, que pretendia ser presidente, chegou a ter uma conversa com Carlos Marighella). Em Recife, num atentado da esquerda em que se pretendia matar Costa e Silva, morreram não três pessoas, e sim duas. Luiz Vianna Filho não era filiado à UDN, e sim ao Partido Liberal.