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O que importa mesmo de Thomas Mann é sua obra (talvez ele seja um bom personagem literário à espera de um escritor¹) — notadamente “A Montanha Mágica” e “Doutor Fausto”, seus romances mais bem elaborados.

Mas o escritor alemão, filho de brasileira, tem uma obra pequena, “Morte em Veneza”, que talvez seja mais lida e, até, admirada. É seu “O Velho e o Mar”, a novela, digamos assim, mais “oriental” (zen) de Ernest Hemingway.

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Wladislaw Moes: este é o verdadeiro jovem que encantou Thomas Mann | Foto: Reprodução

Muito do sucesso da novela (pequeno romance ou conto espichado) de Thomas Mann se deve ao belo filme do italiano Luchino Visconti. O menino belo que povoa o imaginário dos leitores-cinéfilos é mais filho do filme de Visconti do que da história literária.

No entanto, o garoto pelo qual o escritor Gustav Aschenbach quedou-se encantado realmente existiu. O efebo Tadzio, personagem do livro, é baseado no polonês Wladislaw Moes (1900-1986), que, quando visto por Thomas Mann, em Veneza, tinha apenas 11 anos.

Ao resenhar o livro “The Real Tadzio” (Short Books, 104 páginas), de Gilbert Adair, o crítico literário Carlos Haag, do “Valor Econômico” (o texto é de 2002), escreve que, na novela, o autor aumentou a idade do menino. Hoje, mesmo assim, seria considerado pedofilia, porque os valores, como a tecnologia, também mudam.

Gilbert Adair capa do real Tadzio 1

Ao ver o menino de 11 anos, em 1911, Thomas Mann ficou mesmerizado. Wladislaw Moes era chamado pela família de “Wladzio” ou “Adzio”.

Quando uma pessoa da família chamou “Adzio!”, Thomas Mann, então com 36 anos, o viu e não despregou mais os olhos, tal a beleza da criança.

Muitos anos depois, ao saber que havia provocado suspiros no célebre escritor alemão, Adzio disse: “O ‘velho’ me olhava obsessivamente, em especial quando entramos juntos no elevador do hotel [Hotel de Bains], como na novela. Mas ele não foi o primeiro nem o último a me observar assim e pensei: ‘É mais um cavalheiro que gostou de mim’”.

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Björn Andrésen: foi considerado o garoto mas bonito de seu tempo de jovem | Foto: Reprodução

Impressionado com a beleza de Adzio, Thomas Mann voltou para a Alemanha e, imediatamente, começou a escrever “Morte em Veneza”.

“Nada é inventado nesta história: Tadzio e família, o cantor malandro e repugnante, o sátiro maquiado do barco e até mesmo a cólera que nos obrigou a deixar a cidade”, escreveu o autor da novela em seu diário.

Em 1924, uma prima de Adzio leu a obra e, impressionada com a semelhança com a história do parente, teceu alguns comentários.

Em 1984, dois anos antes de morrer, o idoso Adzio foi ao cinema para ver o filme “Morte em Veneza”, do italiano Luchino Visconti. Não aceitou a companhia de ninguém. “Não deixaria ninguém me ver, acabado, tentando recriar o jovem nos moldes da novela de Mann”, contou Adzio ao amigo Jas Fudakowski. Agora, foi a vez de Adzio ficar encantado com a beleza do ator Björn Andresen.

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Böjrn Andrésen com o diretor de cinema Luchino Visconti | Foto: Reprodução

Em Veneza, além de Thomas Mann, Adzio deixou o escritor polonês Henryk Sienkiewicz de quatro. O menino seria um “serafim de Tiepolo”, disse Sienkiewicz.

Adzio foi preso pelos nazistas alemães

O autor de “Quo Vadis” teve a desfaçatez de implorar a Adzio que se sentasse no seu colo para melhor apreciá-lo. Mais tarde, ao lado do amigo Fudakowski, o “Jaschiu” do livro, Adzio lutou, pela Polônia, em 1921, contra os bolcheviques de Lênin. Depois, tornou-se um “bon viveur”, diz Carlos Haag.

Em 1939, com a expansão nazista, Adzio foi preso pelos alemães. Quando liberado, descobriu que o patrimônio da família havia sido estatizado pelos comunistas pró-soviéticos. Escapara a um totalitarismo e caíra nas mãos de outro. “Viveu de bicos por anos”, informa Carlos Haag.

“A ofensa final foi quando Visconti, em visita ao seu país, para encontrar o seu Tadzio, não quis conhecê-lo. Adzio pensou mesmo em processar o diretor para obter uma compensação. A resposta do cineasta foi, de provocação, incluir seu nome, quase imperceptível, ao fundo, na cena em que Aschenbach se registra no Lido. Em novembro de 1986, aos 86 anos, Adzio morreu de hepatite em Varsóvia. Ironicamente, ao se saber desenganado, ele tentou novamente retornar a Veneza e ao Lido, apenas para cancelar a viagem no último minuto ao saber que, coincidência cruel, a cidade estava sitiada por uma epidemia de cólera”, registra Carlos Haag.

Morte em Veneza capa do livro

O sueco Björn Johan Andresen, hoje com 56 anos¹, não foi bem-sucedido na carreira de ator. “Se ele fosse menos belo, o filme teria sido bem menos bom”, afirma Gilbert Adair.

Os produtores de Visconti (era gay) temiam que o filme, se apontado como “gay”, desagradasse as plateias menos progressistas. Andresen, desencantado com a profissão e com sua beleza estonteante (até meio efeminada, ou feminina), disse: “Mal posso esperar para envelhecer. Eu não pedi para nascer com este rosto”.

Thomas Mann era homossexual? Biógrafos em geral, quando não sensacionalistas, dizem que o escritor tinha interesse por homens — e não meramente literário —, mas não citam casos concretos.

Uma biografia cita um jovem pelo qual o escritor teve interesse sexual, mas não esclarece se tiveram relações sexuais ou alguma paixão, por assim dizer, afetiva.

Thomas Mann: o Nobel de Literatura que escreveu Morte em Veneza | Foto: Reprodução

Thomas Mann parece ter sido feliz com Kátia Mann. No diário, no qual “escondia” e “revelava” seus desejos pelo sexo oposto, o escritor registrou sobre um jovem garçom suíço: “A fama mundial é maravilhosa, mas não pode ser comparada ao sorriso em seus olhos”.

Ao escrever tal elogio, no qual sugere que trocaria a fama pela beleza ou pela graciosidade e frescor da juventude, Thomas Mann tinha 75 anos.

Carlos Haag recolhe uma interessante citação do livro “Thomas Mann: Eros and Literature”, de Anthony Heilbut: “Ninguém antes de Mann conseguiu capturar a necessidade gay de justificar-se. ‘Morte em Veneza’ é um guia ‘Baedecker’ para o amor homossexual, visto como uma paixão assimétrica, ligando os sábios feios aos belos bobos. Desde o início, ele articula uma poética do consumismo, o observar a distância. Mann nota os signos e traduz os códigos que revelam homens gays uns aos outros”. Heinrich Mann, irmão do escritor mais celebrado, disse: “Apesar de tudo, nunca se ouve ao fundo um ‘valeu a pena?’ Quando o desejo aparece, ignoramos o custo”.

Carlos Haag vê nessa interpretação a chave do livro. A questão é: Thomas Mann admirava homens bonitos, mas não há evidências de que partisse para o “ataque”.

Klaus Mann, autor do romance “Mefisto”, transformado em filme com título homônimo, era homossexual. Ele se matou, em 1949, aos 42 anos. Era um jovem talentoso, mas, como Heinrich, o irmão “invejoso” de Thomas Mann, não tinha o vigor literário do autor de “Morte em Veneza”. Outro filho do escritor, o historiador Golo Mann, também era homossexual. Erika Mann também se considerava homossexual.

Uma curiosidade sobre o escritor. Entrevistado por Sérgio Buarque de Holanda, então jornalista a serviço de Assis Chateaubriand, o Lampião do jornalismo patropi, Thomas Mann (ou sua mulher, Kátia Mann) contou que sua mãe era brasileira. E, quando ele e os irmãos eram crianças, cantava canções de ninar numa língua estranha, possivelmente português. Sérgio Buarque havia notado que seu nariz era “meio latino” (leia no Jornal Opção: https://tinyurl.com/574mx8u8).

(Texto publicado no Jornal Opção em 2010)

Notas da redação

¹ Colm Toibin escreveu um romance sobre Thomas Mann (leia no Jornal Opção: https://tinyurl.com/382h9v7u).

² O ator sueco Björn Andrésen morreu no sábado, 19, aos 70 anos.