Supremo: Justiça poderá penalizar jornais por “opinião” de seus entrevistados

19 novembro 2023 às 00h09

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No dia 25 de julho de 1966, militantes da Ação Popular (AP) colocaram uma bomba no Aeroporto dos Guararapes, em Recife, com o objetivo de matar o ministro da Guerra do governo do presidente Castello Branco, Arthur da Costa e Silva. No entanto, o general da linha dura “faltou” ao encontro e morreram outras pessoas — um almirante da reserva e um jornalista. O guarda que apanhara a maleta com o explosivo perdeu uma perna. O secretário de Segurança Pública de Pernambuco ficou sem quatro dedos da mão esquerda. Ao todo, relata o jornalista e pesquisador Elio Gaspari, no livro “A Ditadura Envergonhada” (Companhia das Letras, 417 páginas), “treze pessoas ficaram feridas, inclusive uma criança de 6 anos”.
De acordo com Elio Gaspari, “a bomba do Aeroporto dos Guararapes foi montada e colocada na banca de jornais por Raimundo Gonçalves Figueiredo, o Raimundinho, um mineiro franzino e calado de 27 anos que militara no setor estudantil da AP do Rio de Janeiro. Foram dele também duas das outras bombas explodidas no Recife naquelas semanas. É certo que Raimundinho não agiu só. Estima-se que tivesse cinco cúmplices, todos estudantes.” Os jovens de Recife teriam sido recrutados pelo ex-padre português Alípio de Freitas, que contava com o apoio de Cuba, ou seja, de Fidel Castro.

Num texto publicado no jornal “Diário de Pernambuco”, um entrevistado disse que Ricardo Zarattini Filho (1935-2017) havia participado do atentado em Recife. Na verdade, o pai do deputado federal Carlos Zarattini, do PT de São Paulo, não estava entre o pessoal que colocou a bomba.
O processo judicial contra o “Diário de Pernambuco” chegou ao Supremo Tribunal Federal e nove ministros — apenas dois foram contrários — decidiram pela condenação do jornal. Entendeu-se que, ao publicar a notícia — sem fazer nenhum reparo histórico —, o jornal “corroborou” a informação errada, divulgada por engano ou por malícia política.
A decisão do Supremo contraria a posição do relator do caso, Marco Aurélio Mello, aposentado desde 2021. Em 2020, Marco Aurélio postulou que o jornal “não emitiu opinião a influenciar leitores” e defendeu a liberdade de imprensa e de expressão. Tese do então ministro: “Empresa jornalística não responde civilmente quando, sem emitir opinião, veicule entrevista na qual é atribuído, pelo entrevistado, ato ilícito a determinada pessoa”.

Trata-se de uma posição respeitável. Porém, se há informação histórica — contraditória ou esclarecedora —, o jornal, qualquer um, tem o dever de apor uma nota corretiva. Para evitar o contencioso pelo contencioso, a parte “agredida”, antes de recorrer à Justiça, poderia pedir ao meio de comunicação a publicação de um esclarecimento. Frise-se que, se o livro de Elio Gaspari é 2002, em 1995, sete anos antes, a história já parecia esclarecida (mas talvez sem grande repercussão), ou seja, não se detectara a participação de Ricardo Zarattini Filho no atentado. Houve dolo do “Diário de Pernambucano”? O mais provável é que não. Editor de entrevista faz o máximo possível para ser fiel à fala do entrevistado. É o que deve ter acontecido.
Na quarta-feira, 29, o Supremo deve definir sua posição a respeito da, digamos, pendenga. A tendência, pelo voto contra o “Diário de Pernambuco”, é pela condenação tanto do entrevistado quanto do meio de comunicação, ou seja, o entrevistador.
O portal Poder360 informa que “há três teses diferentes — dos ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso”. A mais ponderada me parece ser a do ministro Luís Roberto Barroso.

Os ministros, apesar de concordarem com a possibilidade de condenação, tem “divergências em relação às circunstâncias para a responsabilização”. Daqui a dez dias, a tese vencedora será exposta e os tribunais pelo país afora terão de adotá-la no julgamento dos casos.
Alexandre de Morais sublinha, na síntese do Poder360, “que a liberdade de expressão deve ser consagrada com ‘responsabilidade’ e não é um direito absoluto”. Assim, “é necessário que os jornais sejam responsabilizados nos casos em que publicam declarações com conteúdos injuriosos”. Os ministros Dias Toffoli, Luiz Fux, Gilmar Mendes acompanharam o voto de colega.
Edson Fachin postula que há limites para a liberdade de imprensa, pois uma publicação pode esbarrar em outros princípios constitucionais. Se não aplicarem “protocolos de busca pela verdade”, deixando de ouvir a parte acusada, os jornais devem ser responsabilizados, assinala o ministro. Seu voto contou com o apoio da ministra Cármen Lúcia.
A terceira tese é de Luís Roberto Barroso, e talvez seja a mais adequada, realista e equilibrada. “Na hipótese de publicação de entrevista em que o entrevistado imputa falsamente prática de crime a terceiro, a empresa jornalística somente poderá ser responsabilizada civilmente se: (i) à época da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação; e (ii) — o veículo deixou de observar o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios”.
Minha posição sobre a querela
Minha tese é parecida com a de Marco Aurélio Mello. Se não corroborou a opinião do entrevistado, mesmo que ele esteja apresentando uma interpretação imprecisa dos fatos — mas não necessariamente mentindo ou falsificando —, o jornal e os jornalistas não deveriam ser condenados. Mas poderiam ser acionados, o mais rápido possível, para acrescentar uma informação corretiva da parte que se considerou ofendida.
Se prevalecer a tese dominante — a rigor, as três são convergentes —, as entrevistas, daqui para frente, terão de ser mutiladas pelos editores e repórteres, que, de alguma maneira, se tornarão censores da opinião alheia. Agora, se houver na fala do entrevistado achincalhe, defendo que o jornalista deve se posicionar, durante a entrevista ou ao editá-la — acrescentando uma posição que reforce qual é a verdade factual (ou a mais aceita, em caso similar ao do “Diário de Pernambuco”, por pesquisadores qualificados, como Carlos Fico, Daniel Aarão Reis Filho, Elio Gaspari, Jacob Gorender).
A impressão que tenho é que, dados casos recentes em que ministros do Supremo foram injustamente “atacados” (e ataque é diferente de crítica) por jornalistas ou ditos jornalistas, os magistrados parecem decididos a agir com o máximo de rigor com aquilo que é publicado, independentemente se os textos são nuançados ou não.
Uma questão que pode se tornar problemática é que, se no Supremo há mais abertura nos julgamentos — com os casos sendo examinados, na sua singularidade, de maneira bem criteriosa —, há a possibilidade de juízes sobrecarregados de trabalho decidirem contra jornais e jornalistas com frequência, amparados pela decisão da instância superior, sem observar com cuidado o que estão julgando, às vezes sem notar a especificidade e o caráter contraditório de determinados fatos. Ressalto que, no caso do “Diário de Pernambuco”, o Supremo parece ter decidido com mão pesada.