Se não confiamos na democracia, como vamos salvá-la? ‘Contra as Eleições’ aponta um caminho

18 agosto 2025 às 09h32

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Ao final da Segunda Guerra Mundial, havia apenas 12 países democráticos no mundo. Em 1972, eram 44; em 1993, eram 72 democracias, e hoje são 117. Ou seja, 60% do total de 195 países do mundo seguem um sistema político em que os cidadãos elegem os seus dirigentes por meio de eleições periódicas (90 deles têm democracias consideradas reais). No mundo todo, a democracia nunca foi tão defendida e, paradoxalmente, nunca foi tão desacreditada.
Segundo levantamento da Atlas/Bloomberg publicado na última quinta-feira, 14, mais de metade (52%) dos brasileiros não confiam no governo federal. Em um ranking de 12 instituições avaliadas, o governo federal fica em terceiro na desconfiança — o primeiro é o Congresso (81%). A pesquisa Ipsos Global Trustworthiness Index 2024 mostra as percepções de confiança em diferentes profissões em 32 países ao redor do mundo. No Brasil, a maior desconfiança das pessoas está nos políticos — 67% dos brasileiros não acredita na classe.
O quadro é curioso, mas meramente questionar o sistema eleitoral ou a representatividade direta é tabu. A democracia se tornou um mantra, uma dádiva de simplicidade, uma resposta pronta para todos os problemas. É uma resposta na qual não confiamos, mas escolhemos ignorar essa realidade por medo de que, ao abordar problemas na democracia, possamos soar como defensores da ditadura.
No Brasil, há um complicador extra. Após o 8 de janeiro de 2023, houve a politização de uma discussão que deveria ser técnica, de filosofia política e de “engenharia social”. A pergunta “a democracia representativa eleitoral é falha?” merece respostas sérias.
Nos últimos anos, cientistas políticos começaram a apontar o paradoxo. O historiador belga David Van Reybrouck em “Contra as Eleições”, de 2016, lançado no Brasil pela editora Âyiné e traduzido por Flávio Quintale, apresenta diagnósticos e soluções com rigor e clareza. Van Reybrouck escreve munido de centenas de artigos, que apresenta de forma clara, em especial sobre a condição europeia, mas muitos paralelos com o Brasil podem ser traçados.
Além da desconfiança crescente nas instituições e políticos, Europa e Brasil compartilham o declínio do principal ator das eleições — os partidos. Em 2018, eram 16,8 milhões de brasileiros filiados a partidos — em 2023, eram 15,7 milhões. Há na Europa (e provavelmente no Brasil também) a crise de eficiência, ou seja, a percepção de que os grandes problemas de nossos tempos — crises ambiental e climática, crises econômicas, migrações, guerras — não podem ser resolvidos pelas ideologias partidárias.
Entretanto, aqui há outro paradoxo: Van Reybrouck mostra com dados que o neerlandês hoje discute mais política com amigos e família do que antes. Descreve a diferença no cenário político da Europa ocidental do passado e hoje: “Nos anos 1960, um camponês podia ser totalmente apático politicamente e, ao mesmo tempo, ter uma confiança absoluta na política. Essa era a divisa: apatia e confiança. Agora é outra: entusiasmo e desconfiança. Tempos conturbados.”
(Há diferenças, é claro. Na Europa, os partidos governistas viram “vitrine” e muitos preferem ser a “pedra” para garantir a reeleição. Nas penúltimas eleições dos Países Baixos e Irlanda, os governistas perderam 11,5 e 27% dos eleitores no pleito seguinte. “Quem quer se manter no poder na Europa se o preço para governar é impiedosamente alto?” No Brasil, a vidraça pode usar a máquina para perseguir a pedra.)
Van Reybrouck então se dedica a desconstruir as justificativas comuns apresentadas para o cenário atual. O diagnóstico dos populistas de que o sistema não funciona porque os políticos que estão aí não prestam traz como solução a troca dos atores. Van Reybrouck mostra que os populistas querem combater uma doença sistêmica com uma transfusão de sangue; mas a demanda por sangue novo no parlamento desaparece quando eles mesmos ascendem ao poder.
O diagnóstico dos tecnocratas é dizer que o problema está no sistema democrático, e que tudo seria melhor se a sociedade fosse guiada por uma conselho de esclarecidos competentes. Van Reybrouck mostra como essas experiências falharam na história, principalmente por originar uma crise, não de eficiência, mas de legitimidade. A convicção que os técnicos sabem o que é melhor para todos desaparece quando os técnicos sugerem que o melhor é aumentar impostos e cortar benefícios — para tomar medidas impopulares, é necessário ter representatividade.
Para corrigir a democracia, Van Reybrouck sugere reviver um método historicamente atrelado à democracia, mas que foi apagado por aristocracias no Século 18: o sorteio. A revitalização do sorteio significa que, em vez de depender quase exclusivamente de eleições, o uso de loterias cidadãs selecionaria órgãos representativos compostos por cidadãos comuns.
Isso lembra a democracia ateniense, onde a seleção aleatória era usada para evitar corrupção, oligarquia e manipulação. Assembleias cidadãs permanentes poderiam existir em níveis local, nacional e até supranacional. Para deliberar sobre questões complexas, consultariam especialistas e representariam uma amostra representativa da sociedade com mais fidelidade do que parlamentos eleitos.
Van Reybrouck não sugere a abolição total das eleições. Em vez disso, ele quer complementar os parlamentos eleitos com câmaras selecionadas aleatoriamente, que possam deliberar, propor legislação ou fiscalizar o trabalho dos políticos. Isso reduziria o domínio de políticos de carreira, por rotacionar cidadãos comuns em funções decisórias. A política se tornaria menos profissionalizada e mais representativa das preocupações cotidianas.
A seleção aleatória garantiria que diferentes classes, gêneros, idades e grupos étnicos sejam representados proporcionalmente. Isso, argumenta Van Reybrouck, fortalece a legitimidade democrática muito mais do que eleições com baixa participação e dominadas por elites.
Mesmo se Contra as Eleições não convencer o leitor de que o sorteio é o sistema eleitoral ideal, a leitura ainda vale a pena pelo diagnóstico da doença que acomete a democracia, pela análise da patogênese e pela inspiração do remédio apresentado. Por romper o tabu e falar sobriamente sobre problemas que todos pressentimos mas não admitimos, este livro soa leve e fresco, sem perder o rigor.