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Um homem e uma mulher saem da passeata em defesa da democracia e contra a PEC da Blindagem — apelidada, com justiça, de PEC da Bandidagem — e sentam-se à mesa de um pit dog da Avenida Universitária (também conhecida como Rua 10), entre o Centro e o Setor Sul, em Goiânia. Logo depois de pedir sanduíches, são abordados por uma mulher negra e magra, com aspecto doentio, talvez anêmica.

O casal jovem, numa idade que varia de 30 a 40 anos, pede um sanduíche para a mulher, que se senta nas proximidades à espera do jantar.

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O jovem é contra a anistia para bolsonaristas e está de olho na vida dos pobres | Foto: Candice Marques de Lima/2025

O casal me chamou a atenção porque carregava um cartaz original, com a capa da Constituição, no qual se dizia “Sem anistia”. Porém, o mais interessante, de caráter humano, foi o seu comportamento. Os dois jovens disseram, sem alarde, que, enquanto defendem a democracia política, não descuidam de observar o entorno e a dor — e a fome — do outro. Mostram que teoria e prática não precisam ficar sempre dissociadas.

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Um pouco antes, um homem, que empurrava uma bicicleta, começou a chamar os participantes da manifestação de “vagabundos” e “canalhas”. Acabou cercado e xingado, mas não agredido fisicamente. Pelo contrário, ele saiu correndo atrás de um homem que o filmava, para agredi-lo; felizmente, não conseguiu pegá-lo.

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Deputados de Goiás que aprovaram a PEC da Blindagem | Foto: Candice Marques de Lima/2025

Vaias candentes foram as armas usadas para “expulsá-lo” do lugar. Uma mulher o acompanhava e também xingava. Com ou sem ideologias definidas, homens “precisam” mostrar que são machões — donos da última palavra. A mulher, no caso, seguiu o padrão do companheiro — tentando esmurrar as pessoas.

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No domingo, 21, milhares de pessoas se reuniram na Praça Universitária — uma das mais belas de Goiânia e palco de tantas lutas estudantis, notadamente na época da ditadura civil-militar (o estudante de História da UFG Romualdo Pessoa foi mordido por um cachorro estumado pela Polícia Militar, na década de 1980, no governo do general João Figueiredo. O notável Nunes D’Costa fotografou para a história) — e caminharam até a Praça Cívica, num destile pacífico, mas com palavras duras, e super necessárias, em defesa da democracia e contra os que defendem o golpismo político e ética da malandragem.

Ante a moralidade amoral da extrema direita, da direita e do Centrão (este, mestre da desfaçatez), as ruas ganharam vida e se tornaram, em todo o Brasil, personagens e agentes da luta pela persistência e perenidade da democracia.

O grito das mulheres e homens que foram às ruas é positivo duplamente. O não a Jair Bolsonaro — portanto, postula-se que sua prisão seja mantida (e será, claro) — e à PEC da Blindagem do banditismo parlamentar é, diretamente, um estrondoso sim à democracia e à lisura na política.

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Fábio Tokarski e Pedro Célio Alves Borges
Fábio Tokarski e Pedro Célio Alves Borges: sem anistia | Foto: Candice Marques de Lima/2025

Os professores da Universidade Federal de Goiás Fábio Tokarski, do PC do B, e Pedro Célio Alves Borges, um dos melhores cientistas políticos do país e um escritor talentoso, compareceram à festa cívica, com uma bandeira do Brasil.

Fábio Tokarski e Pedro Célio, militantes históricos da esquerda, estavam entusiasmados na defesa da democracia, que é uma árvore poderosa e, ao mesmo tempo, frágil. Por isso precisa ser regada sempre, com palavras sólidas de defesa. É o que o fizeram, no domingo, os dois mestres.

Sempre de bom humor, Pedro Célio disse ao repórter do Jornal Opção: “Sem anestesia”. Rs. Repórter, afinal, também pode rir.

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Ao espetáculo cívico — e a palavra cívico precisa retornar à boca e à mente dos democratas, retomando-a dos antidemocratas — não faltou a bela voz da cantora Maíra Lemos (não me lembro no nome da outra cantora, talvez Flávia).

Maíra cantou “Apesar de você”, de Chico Buarque, e “Vou festejar”, de João Aragão (“Você pagou com traição/ A quem sempre lhe deu a mão”) — inflamando o público.

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homem manco com cartaz 1
Um homem com quase 70 anos carregava este cartaz | Foto: Candice Marques de Lima/2025

Um homem de mais de 60 anos empunha um cartaz, destacando-o bem alto, com os dizeres inflamados: “Bandidagem? Anistia? Não!”. Manca do pé direito, mas faz o trajeto da Praça Universitária à Praça Cívica sem reclamar. Ao contrário, entusiasmado.

Este homem contava a um amigo que, entre 1982 e 1984, esteve duas vezes na Praça Cívica. Da primeira vez, em apoio à candidatura de Iris Rezende, do MDB, que derrotou Otávio Lage para governador. Depois, no Comício das Diretas Já. Era jovem. Nunca esqueceu. Aproximando-se dos 70 anos, com problemas de locomoção, ainda assim avalia que valeu a pena caminhar tanto por uma boa causa — a defesa da democracia e da retidão na política. É de esquerda? Se apresentou como socialdemocrata.

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Alguns professores, intelectuais, advogados e políticos que compareceram à manifestação: Alaor Florencio Mendonça, Alexandre Badim, Antônio Gomide, Candice Marques de Lima, Drummond Caixêta Júnior, Fábio Tokarski, Fabrício Rosa, Flávio da CUT, Helio Cabral, Hélverton Baiano, Ione Valadares, Iuri do Cidadania, João (de 11 anos), José Aparecido, Leila Borges, Marcilene Pelegrine, Marco Antônio Sperb Leite, Pedro Célio Alves Borges, Professor Pantaleão, Soninha Santos, Yeda Marquez.

Candice e Leila e Marciene Foto Euler de França Belém 2025
Leila Borges, Soninha Santos, Candice Marques de Lima, Marcilene Pelegrine, Pat Castro, Maria Eduarda, Giselda dos Reis Silva e, ao fundo, Antônio Carlos Alves: time do protesto contra a PEC da Blindagem | Foto: Euler de França Belém/2025

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O publicitário Lênio Prudente Filho dizia ao filho João, de 11 anos, e à sua mulher, a psicanalista Juliana Gomes, que esteve na Praça Cívica, em 1984, no comício das Diretas Já. Era mais novo do que João — tinha 7 anos e o irmão 12 anos.

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Os deputados que apoiaram a PEC da Blindagem “apareceram” na passeata, mas não de corpo e alma. Algumas pessoas fizeram um cartaz com as fotografias dos parlamentares, que foram apontados como traidores da democracia.

Estavam lá nas fotos, impolutos, Célio Silveira, Daniel Agrobom, Glaustin da Fokus, Gustavo Gayer (ex-paladino da moralidade?), Jeferson Rodrigues, José Nelto, Lêda Borges, Magda Mofatto, Marussa Boldrin, Professor Alcides, Silvye Alves e Zacharias Calil.

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Homens protestam sobre Covid e mortes foto Euler de França Belém 2025
Protesto contra a anistia para golpistas e lembrando que a Covid matou 700 mil pessoas (no governo de Jair Bolsonaro) | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção/2025

Dois jovens estilosos decidiram divulgar informações seriíssimas, com dois cartazes confeccionados à mão. Um deles diz: “Democracia se defende. Não se anistia”. O outro sublinha, em tom telegráfico: “Em memória — 700 mil mortos — Covid. Justiça. Verdade. Democracia”.

Os homens lembram que, como dizia William Faulkner, o passado nunca está morto, e nem mesmo é passado. Portanto, é preciso lembrar que, no governo de Jair Bolsonaro, em parte por negligência, morreram milhares de pessoas.

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A manifestação foi tão pacífica e ordeira que se via circular, com a maior tranquilidade, crianças de 2 anos e adolescentes.

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Passeata Ainda estou aqui
“Ainda estou aqui”: sobre Rubens Paiva e sobre a democracia | Foto: Candice Marques de Lima/2025

Um cartaz discreto lembra o filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Moreira Salles. A pessoa está dizendo, com a frase curta e significativa, que não arreda pé na defesa da democracia e de prisão para aqueles que atentam contra uma sociedade civilizada, sem golpismo.

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O Psol compareceu com uma bandeira na qual se diz “Marielle presente”. Convém ressaltar que a vereadora Marielle Franco, do Rio de Janeiro, foi assassinada tanto por políticos da direita quanto por corruptos, do tipo que “mafiosos” querem ver blindados agora.

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Helio Cabral Foto de Euler de França Belém 2025
Helio Cabral, de 88 anos: de volta às ruas para defender a democracia | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção/2025

Helio Cabral, de 88 anos, ex-preso político — torturado pela ditadura — fez questão de comparecer à defesa da democracia. A memória já não é mesma, mas ele não se esquece de que a democracia precisa ser defendida, e com o povo nas ruas, pacificamente.

Numa cadeira de rodas, com seus cabelos brancos, Helio Cabral foi uma das presenças mais ilustres da passeata, ainda que seu nome não tenha sido anunciado. A partir de 1964, combateu a ditadura tenazmente, até ser preso. Agora, com a democracia instalada, volta à luta contra os que querem a reinstalação da ditadura.

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As multidões nas ruas sugerem que não há saída fora da política, quer dizer, da democracia. É o recado das ruas contra o cinismo e os interesses de muitos. É um alerta. Os deputados federais da direita e do Centro, que não são néscios, certamente perceberam que não podem fazer tudo que querem, desconsiderando a opinião pública.

O crítico palestino-americano Edward Said escreveu numa carta a um admirador pessimista: “Não posso concordar que a situação é desesperada. No tocante à crueldade e à injustiça, a desesperança preocupada é submissão, que considero imoral”.

De fato, não basta ser contra o golpismo, que agora se traduz na PEC da Blindagem e na anistia para golpistas. A ida às ruas no domingo mostra que é crucial ser proativo, se posicionar e, com isto, acossar àqueles que apostam suas fichas na proteção de golpistas e assaltantes dos cofres públicos.

Iuri Cidadania foto de Euler de França Belém 2025
Iure Castro, do Cidadania, fez discurso firme em defesa da democracia e contra a PEC da Blindagem | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção/2025

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Num cartaz, de uma passeata nacional, aparece a graça erótica vazada de maneira inteligente: “Blindagem de cool é roll”.

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Uma bandeira feminista — do Movimento de Mulheres Olga Benario — lembra uma personagem da história, Olga Benario, a mulher de Luiz Carlos Prestes que o presidente Getúlio Vargas e Felinto Müller entregaram para os nazistas de Hitler.

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Para além do digital, no domingo prevaleceu um sistema analógico de defesa da democracia: cartazes de papel e bandeiras de pano (a nação em cartaz). Meios de comunicação eficientes e que deram, muito bem, o recado: a democracia brasileira está viva, é forte e não aceita retrocesso.

Está viva porque as pessoas têm coragem de sair às ruas para defendê-la. Não se omitem. A omissão é que reforça o “micro” poder dos golpistas e leva o centro se associar a eles, por oportunismo e para não perder benesses.

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Os estudantes e seus líderes foram à praça e à rua para se manifestar contra PEC da Blindagem e a anistia para Jair Bolsonaro, generais e outras golpistas. Entre os grupos organizados estavam a UEE, o DCE da UFG, a UEJ, a UNE.

Uma jovem disse: “Fascistas não passarão!”. Ecoando a célebre La Pasionaria, da Guerra Civil Espanhola.

Um garoto esbraveja: “Sem anistia. Não tem perdão. Quero ver Bolsonaro na prisão”.

Ao lado, uma adolescente acrescenta: “27 anos de prisão para Bolsonaro”. Depois, sublinha: “Não é não!”

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Uma mulher de cerca de 70 anos exibe um cartaz: “O Brasil é dos brasileiros. Não à PEC da Bandidagem”.

Ao lado, um homem diz, olhando para uma garota, que parece sua neta: “Sem anistia. Cadeia para golpistas e corruptos!”

Fabrício Rosa na manifestação 2025 Foto de Euler de França Belém
Fabrício Rosa, vereador, fez crítica candente è PEC da Blindagem | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção/2025

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Uma grande bandeira da Palestina foi exibida por várias pessoas. O massacre israelense em Gaza — até judeus menos fanáticos já criticam o governo de Benjamin Netanyahu — foi amplamente condenado. Merecidamente. Ao buscar vingança, e não Justiça, Israel está cometendo uma das maiores barbáries do século 20.

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Num ponto de ônibus, na Avenida Universitária, nas proximidades da Alameda Botafogo, um homem negro, sentado ao lado de uma mulher, está vestido com uma camiseta cavada com as cores da bandeira dos Estados Unidos. Parecia “ausente” do que estava acontecendo. Trata-se de um integrante do povão brasileiro.