Boris Schnaiderman diz que na literatura do escritor russo não há “nada de doutrinação, de argumentação ideologizante, como se encontra tanto em Soljenítzin”

O crítico, escritor e tradutor Boris Schnaiderman escreveu um livro que bem pode ser chamado de “O Arquipélago Gulag da Cultura”. “Os Escombros e o Mito — A Cultura e o Fim da União Soviética” (Companhia das Letras, 306 páginas) mostra que, além dos milhões de homens que matou (fuzilamentos e de fome), o stalinismo impediu a publicação de romances, contos e poesias. Muitos autores tiveram de esconder seus escritos para a posteridade. Há casos em que a NKVD e, depois, a KGB guardaram originais — o que permitiu a publicação mais tarde, depois do degelo de 1956 e, sobretudo, sob Mikhail Gorbachev e, em seguida, Boris Yeltsin.

Sobre os “Contos de Kolimá”, de Varlam Chalámov [foto acima], que a Editora 34 começa a publicar este mês (tradução de Denise Sales e Elena Vasilevich, apresentação de Boris Schnaiderman e prefácio de Irina P. Sirotínskaia), Boris Schnaiderman dedica algumas poucas mas importantes linhas, entre as páginas 100 e 102.

“Se a publicação do ‘Arquipélago’ [Gulag] marcou época no Ocidente, não se prestou muita atenção na obra com a qual ele dialoga explicitamente: os ‘Contos de Kolimá’ de Varlam Chalámov”, anota Boris Schnaiderman.

Varlam Chalámov nasceu em 1907 e “foi preso pela primeira vez em 1929, passando então três anos nos trabalhos forçados. Depois de solto, dedicou-se inteiramente à literatura, em prosa e verso, sendo de novo preso em 1937, o que resultou em mais dezessete [anos] entre campos de trabalho e degredo na Sibéria. Durante muito tempo, era conhecido na União Soviética pelos seus versos neoclássicos, muito requintados e de acentuado tom filosófico. Mas o poeta na aparência tranquilo guardava uma carga realmente explosiva: uma série de relatos e diários sobre as condições de vida dos presos políticos. Diante do que ele narra, o Dostoiévski de ‘Recordações da Casa dos Mortos’ ‘parece um escritor bucólico’, segundo escreveu I. Sídorov”, escreve Boris Schnaiderman.

A principal “preocupação” de Varlam Chalámov, segundo Boris Schnaiderman, “é apenas narrar os fatos, num mundo em que os homens são capazes de devorar um cão ou arrebatar um leitão congelado e comer metade num acesso de loucura. Nada de doutrinação, de argumentação ideologizante, como se encontra tanto em Soljenítzin”.

Boris Schnaiderman transcreve uma anotação de Varlam Chalámov, da década de 1970:

“Por que escrevo contos?

“Eu não acredito em literatura. Não acredito na sua capacidade de corrigir o homem.

“A experiência da literatura humanista russa resultou, diante dos meus olhos, nas sangrentas execuções do século XX.

“Eu não acredito na possibilidade de evitar algo, de anular a sua repetição. A história se repete. E qualquer fuzilamento de 1937 pode ser repetido.

“Por que então escrevo?

“Escrevo para que alguém, apoiando-se em minha prosa alheia a qualquer mentira, possa contar sua própria vida, num outro plano. Afinal, um homem tem de fazer algo.”

O tema dos campos de trabalho é decisivo, na avaliação de Varlam Chalámov. É “tão importante que comportaria ‘cinco escritores como Tolstói’ e ‘cem escritores como Soljenítzin”.

Na narrativa sobre “a sua aprendizagem do laconismo”, Varlam Chalámov escreveu: “Eu apanhava às vezes o lápis e riscava nos contos de Bábel todas as suas belezas, todos aqueles incêndios que pareciam uma ressurreição, e olhava o que ficava sobrando. Em Bábel sobrava muito, em Larissa Reisner [escritora russa, 1895-1926] não sobrava absolutamente nada’”.

Num fragmento, “Sobre a prosa”, Varlam Chalámov “defende uma literatura forte, vivida, nunca ‘de fora’. Hemingway seria, segundo ele, o protótipo do ‘escritor-turista’, por mais que tenha lutado em Madri”, sublinha Boris Schnaiderman.

A literatura, na Rússia, é uma rival da história. Os grandes escritores, como Liev Tolstói, Isaac Bábel e Varlam Chalámov, sempre competem com os historiadores — contando a história do (povo do) país a partir da literatura. É como se a literatura fosse uma reinvenção da história. O fato é que os dramas humanos ficam mais ricos e densos na literatura.