Processo contra o YouTube pode mudar a responsabilidade por divulgação na internet

26 fevereiro 2023 às 00h00

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A internet pode, de alguma maneira, ampliar a barbárie? Trata-se de um avanço imenso, contribuindo para uma integração global entre indivíduos e culturas. Isto é incontornável. Mas há aspectos negativos, que também são incontornáveis. Sites podem ser utilizados por terroristas, por exemplo, para ensinar a fazer e colocar bombas (e matar, por consequência). O YouTube, uma plataforma de alta qualidade, hospeda o que há de melhor e, ao mesmo tempo, o que há de pior. Porém, ao acolher determinados vídeos, qual é sua responsabilidade legal? Dizer que a responsabilidade é de quem postou não exime o Youtube — e redes sociais — de corresponsabilidade.
Num artigo publicado no “Estadão”, sob o título de “Suprema Corte dos Estados Unidos pode mudar a internet para sempre”, o jornalista Pedro Doria relata um caso emblemático.
A norte-americana Nohemi González, de 23 anos, morreu num ataque terrorista ocorrido no Teatro Bataclan, em Paris, em 2015. Os responsáveis pelo crime (mataram 137 pessoas) teriam sido “radicalizados” depois de assistirem “a uma série de vídeos recomendados pelo” YouTube “e produzidos pelo Estado Islâmico”. A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu examinar o caso, acatando pedido dos advogados da família da jovem estudante da California State University.
Os advogados dos pais de Nohemi González apresentaram argumentos por escrito e, na sequência, fizeram a sustentação oral aos nove magistrados da Suprema Corte. Na terça-feira, 21, ocorreu a primeira sessão.

De acordo com Pedro Doria, “o que está sendo testado é a seção 230 do Ato das Telecomunicações, aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente Bill Clinton, em 1996. Em essência, a lei definiu que uma empresa com presença na web não poderia ser responsabilizada pelo que dizem usuários que publicam em seus sites. Em 1996, poucos sites ofereciam espaços para comentários. Havia também espaços de discussão, fóruns, começando a se popularizar. Não existiam ainda blogs, muito menos redes e algoritmos”. O jornalista pergunta: “Ao falar de algoritmos, a partir de que momento as gigantes da tecnologia passam a ser responsáveis pelo que recomendam?”
A lei americana, seguida ao pé da letra, pode proteger o YouTube, que pode alegar que, sendo apenas uma plataforma, não é responsável por aquilo que o Estado Islâmico publicou. Entretanto, frisa Pedro Doria, seguindo o argumento da família González, “a partir do momento em que o YouTube pinça um vídeo para sugerir a quem assiste, aí o exercício de expressão não é mais dos terroristas. O YouTube, como qualquer outro serviço baseado em algoritmos, se exprime” por meio “das escolhas de conteúdo que faz. O responsável pela seleção não é quem produziu o conteúdo. É o YouTube. Ou o Twitter. Ou o Facebook”.

A ideia de neutralidade, até de agente passivo — mera plataforma, supostamente democrática —, cai por terra. Firma-se, portanto, que o YouTube se torna, em determinados casos — por exemplo, quando seleciona vídeos —, corresponsável por aquilo que divulga e promove. Se é assim, deve responder judicialmente, e pode ser condenado e, eventualmente, ter de indenizar as pessoas prejudicadas (ou seus parentes). No caso específico, houve a morte de Nohemi González e de dezenas de outras pessoas. A vida é uma só: não tem estepe.
Pedro Doria ressalva que “alguns dos ministros” da Suprema Corte “exprimiram dúvidas. Afinal, mecanismos de seleção de conteúdo baseados em algoritmos tornaram a internet viável. Tornar as empresas responsáveis pelo que seus algoritmos recomendam não poderia abrir uma imensa onda de processos que trariam impactos econômicos inimagináveis?” A dúvida é pertinente. Porém, os grandes empreendimentos precisam assumir, de vez, a responsabilidade pelo que acolhem e que podem ter consequências danosas para os indivíduos. É provável que só com indenizações milionários as empresas por trás de plataformas e redes sociais se tornarão mais responsáveis com aquilo que acolhem e ajudam a divulgar — inclusive ganhando milhões de dólares com o que promovem.

O colunista do “Estadão” indaga: “Ao falar de algoritmos, a partir de que momento as gigantes da tecnologia passam a ser responsáveis?” Os algoritmos e seus controladores — difíceis de serem “localizados” pela Justiça — estão definindo a vida das pessoas, em termos de comportamento, ditando uma nova ética pessoal e condutas comerciais. Uma das funções da Justiça é ficar ao lado dos indivíduos — cuja vida privada se tornou pública sem que, na maioria das vezes, percebam. Os lucros das redes sociais e plataformas são tão altos que as indenizações, em geral minúsculas, não as incomodam. A decisão da Suprema Corte, a respeito do caso Nohemi González — que certamente servirá para balizar outras ações judiciais —, sairá este ano. “A decisão pode, inclusive, ser não decidir nada. Por enquanto”, afirma Pedro Doria.
Pelo contrário, aposto minhas fichas que a Justiça americana vai usar a história da jovem assassinada como referencial para centenas de problemas semelhantes. Tende-se a criar uma jurisprudência a respeito daqueles que não querem ter nenhuma responsabilidade sobre aquilo que postam e até incentivam o compartilhamento.
As big techs certamente terão de assumir responsabilidades como quaisquer outros indivíduos e empresas. No momento, estão se comportando como se estivessem acima das leis — as que regem a vida dos pobres mortais — e dos Estados nacionais. Em alguns casos, oficiais de justiça nem mesmo conseguem citá-las. Será necessário criar uma Justiça internacional para fisgá-las?