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O romance “Anna Kariênina”, do escritor russo Liev Tolstói (1828-1910), tem um dos inícios mais famosos da história da literatura: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. A frisa está na página 17 da estupenda tradução de Rubens Figueiredo para a Cosac Naify e, agora, para a Companhia das Letras.

Há uma ideia, de matiz conservantista, de que há “famílias perfeitas”, as ditas “tradicionais”. O que é uma família tradicional, mesmo que viva aos trancos e barrancos, com fingimentos sociais de praxe? Ressalve-se: nem todas as famílias, inclusive as apresentadas como tradicionais, vivem aos trancos e barrancos.  Há, de fato, famílias que “funcionam”, que são comunidades ajustadas.

Mas perfeitas, tendo em vistas quaisquer modelos, não há nenhuma. Nem é preciso escarafunchar muito para descobrir os problemas, encobertos por um discurso moralizante. É sempre a família ao lado, ou nem tão ao lado, que “tem” problemas.

Tolstói Anna Kariênina 1
Obra-prima do escritor russo Liev Tolstói | Foto: Jornal Opção

O modelo de família tradicional é um homem, uma mulher e filhos. Não há o que criticar neste modelo. O equívoco é não aceitar outros modelos de família, ou de relacionamentos (que não precisam se transformar em famílias). Por que uma mulher não pode amar outra mulher? Por que um homem não pode amar outro homem?

O que importa não é o amor e o prazer das pessoas? Por que colocar a tradição, a família realçada como “certinha” — portanto, um modelo a ser seguido —, acima do amor, do prazer, do desejo?

A sociedade é mais harmônica, menos conflituosa, quando as diferenças são admitidas, respeitadas.

Qual é a finalidade do texto acima? Comentar a censura sofrida por Milly Lacombe, uma das mais notáveis e corajosas jornalistas brasileiras. Talvez seja sua posição firme — sua franqueza — ao discutir as coisas da vida — e não apenas do esporte (é craque no ramo) — que incomoda tanto, notadamente aos homens.

O prefeito de São José dos Campos, Anderson Farias, do PSD de Gilberto Kassab e Vanderlan Cardoso, cancelou a participação de Milly Lacombe na 11ª Festa Lítero Musical de São José dos Campos (Flim). A jornalista participaria de uma conversa com o jornalista e escritor Xico Sá e com o poeta Cuti.

O motivo da exclusão tem a ver com o podcast “Louva a Deus”, no qual Milly Lacombe faz críticas à família tradicional — nada, aliás, que já não tenha sido feito por sociólogos, psicanalistas e antropólogos. A exigência de que se siga uma norma, com rigidez absoluta — para escapar de supostos “desvios sexuais”, como a homossexualidade —, pode, sim, ser uma fonte de neurose, como sugere a jornalista.

Anderson Farias prefeito
Anderspn Farias: prefeito de São José dos Campos | Foto: Divulgação/Instagram

A pergunta a se fazer é: por que Milly Lacombe não pode expor sua crítica à família tradicional? A resposta, a minha, é: pode e deve. Até porque, ao fazer a crítica ao tradicionalismo familiar, a jornalista não está obrigando ninguém a segui-la.

Discordo, por exemplo, que a família tradicional é a base do fascismo (há famílias tradicionais na esquerda, na direita e no centro — e, por sinal, muitas delas são “progressistas”, política e, até, sexualmente). É provável que não seja. Pesquisadores requestados do tema não dizem isto. Mas por que Milly Lacombe não pode apresentar sua versão de como vê o mundo?

O problema nem é a família em si, mas um tipo de mentalidade que é “implantada” na cabeça das pessoas. Um pensamento que nem é a da família, diria Nietzsche, mas que, introjetada de tal forma, ela passa a repetir, secularmente, como se fosse seu.

Ainda assim, o prefeito Anderson Farias disse: “Quero ser claro — a apresentação da ativista Milly Lacombe em São José foi cancelada. Cultura deve unir, não dividir”. O gestor acrescentou que cultura em São José “não é e nunca será palco político-ideológico”.

Tarsila do Amaral quadro A Família de 1925
A família, de Tarsila do Amaral, de 1925 | Foto: Reprodução

As palavras de Anderson Farias podem agradar a direita, notadamente a extrema direita. São até “bonitas”. Mas, no caso, quem está provocando divisão é o prefeito, ao colocar o “nós contra eles”. Ele excluiu Milly Lacombe da Flim, mas não há notícia de que a jornalista tenha tentado impedir algum conservador de se expressar.

Então, o debate político-ideológico está presente, mas só pode ser exposto o daqueles que comungam com as ideias do prefeito.

O prefeito apresenta o discurso de Milly Lacombe como “ideológico” — insinuando que seu discurso não o é. Seria, portanto, a “verdade”. Na realidade, é tão ideológico quanto o da jornalista — só que, o que não diz, autoritário e não inclusivo.

Há outro problema: o prefeito deve se comportar como homem de Estado, pois a prefeitura não é sua, não é propriedade particular. É pública. Como tal, deve contemplar discursos ideológicos diferentes, inclusive aqueles dos quais discorda.

A Flim é uma ação cultural financiada com recursos públicos derivados da Lei Rouanet, ou seja, nem é da prefeitura e tampouco é do indivíduo Anderson Farias. É da sociedade. Portanto, ao excluir alguém que pensa (e se comporta de modo) diferente, o prefeito está agindo — autoritariamente — como “dono” da Flim. Está confundindo, intencionalmente, o público com o privado.

Por isso, a nota do Ministério da Cultura está correta ao repudiar a decisão do prefeito. O governo federal considera o episódio como um “grave caso de cerceamento à diversidade de pensamento necessária em nosso convívio social e, em especial, em eventos que se propõem a discutir os temas mais urgentes para a nossa evolução como sociedade”.

O governo federal acrescentou: “Ainda mais lamentável é que isso aconteça em ação cultural financiada com recursos públicos oriundos da Lei Rouanet. Considerando que a Lei veda avaliações a partir de critérios subjetivos, o Ministério da Cultura solicitará informações detalhadas aos proponentes da 11ª Festa Lítero Musical de São José dos Campos, de forma a explicar quais motivos objetivos que levaram ao cancelamento”.

O prefeito Anderson Farias pode ter cometido um crime ou crimes? É possível. Contra a liberdade de expressão o “crime” é evidente. Mesmo sabendo que o desgaste viria, por que o gestor municipal decidiu atentar contra a diversidade? Porque está jogando para sua plateia, quer dizer, para seu eleitorado. Consolidando uma posição — conservadora e moralista — junto aos seus eleitores.

Gay Talese e a família americana

Gay Talese capa de A Mulher do Próximo

Costuma-se sugerir que os americanos — ou estadunidenses, como prefere a esquerda — são um povo puritano.

Porém, ao pesquisar para escrever o livro “A Mulher do Próximo — Uma Crônica da Permissividade Americana nas Décadas de 1960 e 1970” (Companhia das Letras, 504 páginas, tradução de Pedro Maia Soares), o escritor americano Gay Talese descobriu que não era bem assim.

A vida sexual do povo da terra de Donald Trump e John Updike era (e certamente continua) muita ativa e mais diversificada do que se pensava. O conservadorismo é, no campo sexual, mais discurso do que prática. A sexualidade das pessoas é, na maioria das vezes, mais aberta do querem crer, com ou sem má-fé, os tradicionalistas.

O que as pessoas dizem, ao menos em geral, nem sempre tem correlação com o que fazem.

Em Goiás, os clubes de Swing, quase sempre “escondidos” — um deles funcionava numa mansão do Setor Marista, mas acabou fechado ao ser assaltado —, estão sempre superlotados.

Quais são as pessoas que os frequentam: degenerados? Nada disso. Gente comum, que, no dia seguinte, vai para o trabalho, para a academia e, às vezes, impreca contra gays e lésbicas — em defesa da família tradicional.

É possível que muitos conservadores tenham, na prática, comportamento sexual menos ortodoxo do que divulgam.

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