Pelé reinou absoluto na Copa de 70 e o Brasil foi tricampeão

O segredo dele era a improvisação. As coisas que ele fazia eram inventadas na hora. Ele tinha uma percepção extraordinária do jogo. — Carlos Alberto Torres, capitão da seleção de 1970

Depois de ter se apresentado como “aposentado” da seleção, pós a debacle de 1966, Pelé decidiu disputar a Copa do Mundo do México, em 1970.

O novo técnico da seleção era o comentarista esportivo João Saldanha — “uma figura ímpar”, de acordo com Pelé. “Era inteligente, tinha a língua afiada e deu uma orientação mais pragmática ao trabalho de técnico da seleção.”

João Saldanha e Pelé | Foto: Reprodução

João Saldanha disse: “O Santos e o Botafogo são os melhores times do Brasil. Então, os dois são a base da seleção. É isso aí, podem falar o que quiserem, mas eu não vou mudar de ideia”.

Pelé afirma que “o estilo eloquente e durão de Saldanha” pode ter contribuído para sua queda do comando técnico da seleção. Há quem postule que o general-presidente Emilio Garrastazu Médici, ao exigir a convocação do centroavante matador Dario, o Dadá Maravilha, seja o culpado pela saída do treinador.

Zagallo substituiu João Saldanha e fez poucas mudanças, como a escalação de Tostão, o astro do Cruzeiro. “O que esse time precisa é de craques, jogadores que sejam inteligentes”, sublinhou o técnico.

Zagallo e Pelé: o técnico e o Rei se davam bem | Foto: Reprodução

A seleção venceu todos os jogos das eliminatórias, de maneira arrasadora. O time estava voando. Pelé fez seis gols. “Nosso ponto forte era que o coração do time de Saldanha permanecia o mesmo. Tínhamos passado cerca de um ano e meio jogando juntos e nos entendíamos perfeitamente. Foi essa a nossa maior vantagem, aquilo que fez da equipe de 1970 a melhor seleção que já existiu”, postula o Rei.

Zagallo contou com o apoio técnico de Cláudio Coutinho e Carlos Alberto Parreira. A equipe chegou ao México com três semanas de antecedência. Chegaram a dizer que Pelé seria sequestrado.

Numa preleção, Pelé lembrou “aos jogadores mais jovens que eles estavam ali para cumprir uma tarefa, não para se divertir. Zagallo, como sempre, me deu apoio”. O Rei, de 29 anos, era um veterano.

Dario, o Dadá Maravilha, com o presidente-ditador Emilio Médici | Foto: Reprodução

A estreia da seleção brasileira no México se deu no Estádio de Jalisco, sob um calorão danado, em 3 de junho de 1970. O jogo contra a Tchecoslováquia foi assistido por 53 mil pessoas. O time verde-amarelo: Félix, Carlos Alberto, Brito, Piazza, Everaldo, Clodoaldo, Gérson, Jairzinho, Tostão, Rivellino e Pelé.

A Tchecoslováquia começou ganhando, por 1 a 0. Rivellino logo empatou, com sua patada atômica. Pelé quase fez um gol do meio-campo.

No segundo tempo, Pelé fez um gol e Jairzinho, jogando muito bem, fez mais dois. O Brasil venceu por 4 a 1.

O time seguinte, a Inglaterra, contava com os astros Moore, Bobby Charlton e Gordon Banks (o goleiro). Mas o Brasil tinha mais craques. Tostão driblou três britânicos, “incluindo uma finta alucinante no até então impecável Moore”, e lançou a bola para Pelé, que a repassou para Jairzinho, que fez o gol. O Brasil ganhou por 1 a 0.

Em toda a minha vida só fui expulso duas vezes — e em ambos os casos foi por discutir com o juiz. Nunca fui expulso por conduta violenta. — Pelé

Contra a Romênia, Pelé fez dois gols e Jairzinho fez um, e o Brasil ganhou por 3 a 2. Na sua “pior atuação”, admite Pelé.

Pelé faz gol e comemora socando o ar, no México | Foto: Reprodução

O Brasil venceu o Peru — treinado pelo brasileiro Didi —, nas quartas-de-final, por 4 a 2. “Foi o tempo todo ataque, ataque, ataque, o jogo fluindo com total liberdade. Tostão e Rivellino, em especial, foram magníficos, marcando três gols, e Jairzinho acrescentou o quarto”, anota Pelé.

Na semifinal, a seleção brasileira enfrentou o Uruguai. Pelé diz que derrotá-lo seria uma vingança, por causa da perda da copa de 1950. Porém, aos 20 minutos, o Uruguai fez 1 a 0 e ressurgiu o fantasma do “maracanazzo”.

Ainda no primeiro tempo, aproveitando um passe perfeito de Tostão, Clodoaldo, o Corró, empatou o jogo. Jairzinho, o Furacão, e Rivellino fizeram gols e o Uruguai entrou na roda.

De acordo com Pelé, a seleção de 1970 era “a melhor de toda a história do futebol” (e, como se sabe, quem discorda da palavra de um Rei merece guilhotina — imaginária, é claro). A final da copa se deu contra a Itália, “duas vezes campeã mundial”, que derrotara, por 4 a 3, a poderosa Alemanha de Beckenbauer.

Pelé e Tostão: os craques brilharam na Copa do México | Foto: Reprodução

A Itália, com sua defesa poderosa, fez o impossível para segurar a seleção dos deuses latino-americanos. Não deu pé. Aos 18 minutos, a partir de um lançamento de Rivellino, Pelé fez um gol de cabeça. Porém, mesmo o Brasil jogando melhor, Boninsegna empatou para os italianos.

Aos 21 minutos, no segundo tempo, Gérson marcou o segundo gol. Cinco minutos depois, Jairzinho fez o terceiro. Carlos Alberto fez o quarto. O Brasil era campeão do mundo pela terceira vez. Tricampeão: 1958, 1962 e 1970. A taça Jules Rimet era sua, em definitivo.

Pelé diz que gostaria de ter feito um gol de bicicleta na copa. O Rei conta que “a Copa de 1970 foi a primeira a permitir substituições, de até três jogadores em cada time. Também foi marcada pela adoção dos cartões amarelo e vermelho, ideia do árbitro Ken Aston. O futebol em si é que foi o vencedor da Copa de 1970”.

Jairzinho: o Furacão da Copa de 70 | Foto: Reprodução

Quando voltaram ao Brasil, o presidente-ditador Emilio Garrastazu Médici ligou para alguns jogadores. Pelé foi um dos “afortunados”. Ele relata que o general quis, durante a copa, escalar Dadá Maravilha (logo no lugar de Tostão, o centroavante-craque). Cláudio Coutinho (que era militar reformado do Exército) disse aos jogadores, de acordo com o Rei, “que era importante vencermos porque isso acalmaria o povo”.

O Rei volta a estudar e faz um curso superior

O segundo filho de Pelé, Edson Cholbi do Nascimento, Edinho, nasceu no dia 27 de agosto de 1970 (hoje, aos 52 anos, é técnico do Londrina, no Paraná).

Determinado, Pelé resolveu estudar, contando com a ajuda de Júlio Mazzei. Como só tinha o curso primário, fez o secundário e, em seguida, o preparatório para o vestibular. Ele se formou em Educação Física, na Faculdade de Santos. Seu objetivo não era ser técnico. O que queria mesmo era ter um curso superior. “Fiz aquilo [o retorno aos bancos escolares] para dar um exemplo.”

Seleção brasileira de 1970, tricampeã, no México: Carlos Alberto, Félix, Piazza, Brito, Clodoaldo e Everaldo; Jairzinho, Gérson, Tostão, Pelé e Rivellino | Foto: Divulgação

Um gênio pode se aposentar aos 30 anos de idade? Pelé queria se aposentar. “Dondinho, o meu pai, sempre me disse que nunca se deve parar quando as pessoas lhe pedem para parar. Você deve parar quando está em sua melhor forma, porque é assim que será lembrado. Fiz saber a quem de direito que não estaria mais disponível para a seleção brasileira e comecei a preparar o terreno para que o Santos procurasse um novo camisa 10.”

Em julho de 1971, Pelé fez os dois últimos jogos pela seleção. O primeiro contra a Áustria. “Foi quando marquei meu último gol pela seleção. Foram 77 gols ao todo.” Na segunda partida, contra a Iugoslávia, 180 mil pessoas lotaram o Maracanã para assistir a despedida do Rei. As seleções empataram em 2 a 2. Consta que até a bola “fez” reverência para o Rei, que tinha apenas 30 anos.

Quando a partida terminou, os torcedores, e não apenas os santistas, gritavam: “Fica! Fica!” Pelé chorou, mas estava decidido a não continuar na seleção. O craque da camisa 10 também queria se aposentar do Santos. Mas a direção do time o colocava constantemente em campo, para ganhar dinheiro. A milésima partida pelo time paulista foi contra o Transvaal, no Suriname. “Eu me divertia cada vez menos.”

Pelé se despede da seleção brasileira, em 1971, aos 30 anos | Foto: Reprodução

Pelé revela que, “durante o tempo” que jogou no Santos, o time “acumulou mais de 20 milhões de dólares [valores não atualizados], e não acho que seja delírio de grandeza afirmar que uma boa parte disso foi ganho às minhas custas. É um fato: os países que visitávamos e os clubes que enfrentávamos pagavam ao Santos um valor maior se eu fosse jogar — às vezes até duas vezes mais”.

O americano Clive Toye perguntou a Pelé, em 1971, se ele gostaria de jogar no New York Cosmos, time dos Estados Unidos. “Dinheiro não é problema. Custe o que custar”, disse. O Rei estava em plena forma, tanto que foi o artilheiro do Campeonato Paulista de 1973. O Santos foi o campeão, ao lado da Portuguesa.  “Desde que joguei a primeira partida, fui 11 vezes o artilheiro do campeonato, o clube, 10 vezes campeão.”

Aos poucos, Pelé aprendeu a fazer política e ajudou João Havelange a se tornar presidente da Fifa, em 1974. Na França, exilados brasileiros invadiram a estação de uma rádio, onde Pelé e Havelange estavam dando entrevista, e os dois tiveram de “ser retirados pela porta dos fundos”. O jogador diz que o cartola o tratava, então, como filho.

Pelé se despede do time do Santos num jogo contra a Ponte Preta | Foto: Acervo do Santos

As pressões para jogar na Copa de 1974 eram fortes. O relato de Pelé: “O presidente Ernesto Geisel, que assumiu em 1974, a mulher dele e alguns coronéis do Exército queriam me ver de volta à seleção. Mas a essa altura eu já sabia o que o regime militar estava fazendo com alguns estudantes, cantores famosos andavam exilados e havia comentários sobre tortura. A filha de Geisel [Amália Lucy Geisel, que morreu no dia 18 de dezembro de 2022, aos 78 anos] veio me procurar e me pediu que reconsiderasse. Fiquei irredutível”.

João Havelange e Zagallo, o técnico da seleção, pressionaram Pelé, que ainda não havia completado 34 anos. Não adiantou. O Rei ficou fora da copa.

Pelé sugere que alguns jogadores eram mercenários (considerando o que clubes e empresários ganham, talvez tenham razão). “Em 1974 me pareceu que, se os jogadores estavam mais preocupados com o seu valor financeiro depois do torneio do que com o torneio em si, a Copa do Mundo já estava praticamente perdida. E foi o que aconteceu.”

Coutinho e Pelé: ases das tabelinhas que resultam em gols espetaculares | Foto: Reprodução

A Copa de 1974 foi do futebol-força da Alemanha, a campeã, e do futebol produtivo e vistoso do carrossel da Holanda, a vice-campeã. Os holandeses venceram a seleção patropi por 2 a 0. “Senti a derrota de forma tão aguda como se fizesse parte do time.”

O craque ouvia nas ruas de pessoas revoltadas: “Viu o que você fez? Se estivesse no time, o Brasil teria vencido”.

Pelé estava disposto a se aposentar inclusive do Santos. “Decidi que ia parar logo e comuniquei ao clube. Eles não ficaram muito satisfeitos e tentaram me convencer a reconsiderar. Eu ainda estava em boa forma, marcando gols e jogando bem.”

A história do futebol se divide em antes e depois de Pelé. Di Stéfano, Garrincha, Puskas, Maradona, Messi, Eusébio, Rivellino, Gérson, Tostão, e vários outros, jogavam uma enormidade (Messi ainda joga). Porém, nenhum — repetindo: n-e-n-h-u-m — se aproxima de Pelé

O Rei deu o ultimato: a última partida seria contra a Ponte Preta, na Vila Belmiro. “A partida começou. Depois de 20 minutos, eu estava no meio-campo e a bola foi lançada para mim. Em vez de matá-la no peito, ou dominá-la de alguma outra forma, peguei-a com as mãos. Foi uma decisão espontânea. A ideia simplesmente me ocorreu ali na hora. Os outros jogadores pararam e ficaram me olhando. Eu podia ouvir o público prendendo a respiração.” O jogador de 33 anos chorou copiosamente.

Entretanto, a Fiolax, fábrica de componentes da qual Pelé era sócio, estava com dificuldades, devendo milhões de dólares. O que fazer? “Voltar a jogar.”

“A Juventus e o Real Madri estavam dispostos a pagar 26 milhões de dólares. O Milan e o América, do México, também mostraram interesse”, conta Pelé. Júlio Mazzei, seu grande amigo, sugeriu que o Rei reconsiderasse a proposta do Cosmos, que, feita em 1971, “continuava de pé”.

Pelé finalmente decidiu: iria jogar nos Estados Unidos. “Quando me aposentei, algo dentro de mim morreu. Jogar futebol de novo seria uma terapia”, diz o craque que, de alguma maneira, é uma espécie de “fim da história” do futebol.

A história do futebol se divide em a. P. e d. P. Antes e depois de Pelé. Di Stéfano, Garrincha, Puskas, Maradona, Messi, Eusébio, Rivellino, Gérson, Tostão, e vários outros, jogavam uma enormidade (Messi ainda joga). Porém, nenhum — repetindo: n-e-n-h-u-m — se aproxima de Pelé, que, de alguma maneira, é Deus e Zeus. O craque, como Balzac e o café, não passará, porque, como Machado de Assis e Graciliano Ramos, é tão moderno quanto eterno. Ele é o Carlos Drummond de Andrade do futebol: gênio.

Pelé-Edson morreu no dia 29 de dezembro de 2022, aos 82 anos.

[A base deste texto, o terceiro de uma série, é o livro ‘Pelé — A Autobiografia” (Sextante, 299 páginas, tradução de Henrique Amat), de Pelé, com redação de Alex Bellos e Orlando Duarte.]