Pearl Harbor puxou os EUA para a guerra e selou o início do fim do totalitarismo alemão e japonês

10 dezembro 2016 às 11h42

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O historiador britânico Andrew Roberts afirma que, se tivesse contribuído com a Alemanha no ataque à União Soviética, o Japão poderia ter colaborado para uma possível vitória dos países do Eixo

O ataque japonês a Pearl Harbor — completou 75 anos na quarta-feira, 7 — provocou a morte de 2335 americanos (1143 ficaram feridos; tais dados são apresentados pelo historiador britânico Antony Beevor; o historiador inglês Andrew Roberts sustenta que 2403 militares e civis foram mortos e 1.178 ficaram feridos. “Os japoneses perderam apenas 29 aviões e cem vidas”). “O avião de reconhecimento que tinha seguido à frente relatou que os americanos pareciam não ter consciência da sua presença”, anota Antony Beevor, no livro “A Segunda Guerra Mundial” (Bertrand, 1095 páginas, tradução de Fernanda Oliveira). Às 7h49, num domingo, o comandante japonês Mitsuo Fuchida (1902-1976) transmitiu a mensagem: “Tora! Tora! Tora!” O historiador britânico explica que “a palavra de código, que significava ‘tigre’, queria dizer que tinha sido alcançada a surpresa total”.
Na quarta-feira, 7, o jornalista Jesús García Calero, do jornal espanhol “Abc”, publicou a reportagem “Las mentiras sobre Pearl Harbor del aviador nipón que grito: Tora! Tora! Tora!”. O tenente (às vezes apresentado como capitão) japonês Mitsuo Fuchida teria mentido para historiadores e diretores e produtores de cinema. Ele atuou como consultor de pelo menos dois filmes — “Tora! Tora! Tora!” e “Midway”. Mais tarde, tornou-se pastor evangélico e naturalizou-se americano.
Jesús Calero sugere que, dadas as verdades e as mentiras, umas mais interessantes do que as outras, a vida de Mitsuo Fuchida daria um romance. Mas é fato que o japonês era mesmo um aviador experimentado e dirigiu de maneira altamente competente o ataque a Pearl Harbor.
Por que o Japão atacou Pearl Harbor? Jesús Calero assinala que “o objetivo do Japão com o ataque a Pearl Harbor buscava neutralizar a frota do Pacífico dos Estados Unidos e, assim, proteger seu avanço na Malásia britânica e nas Índias Orientais Holandesas”. O historiador Andrew Roberts, no livro “Tempestade da Guerra — Uma Nova História da Segunda Guerra Mundial” (Record, 811 páginas, tradução de Joubert de Oliveira Brízida), anota que, preocupado com a expansão japonesa, “em 24 de julho de 1941, os Estados Unidos e a Inglaterra congelaram os ativos japoneses em protesto contra a extensão para o sul, representada pela ocupação da Indochina francesa iniciada pelo Japão em setembro de 1940”.
O presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, avaliava que os japoneses entenderiam a lição dissuasiva. Mas os japoneses mantiveram o avanço para controlar o Extremo Oriente. “Em decorrência”, relata Andrew Roberts, “dias após o congelamento dos ativos, o governo dos Estados Unidos revogou as licenças de exportação do Japão para produtos derivados do petróleo, impondo, de fato, um embargo de petróleo ao Japão, que, na ocasião, importava 75% do seu consumo dos Estados Unidos”.
Dada a resistência do Japão, que movia uma guerra virulenta contra a China (Antony Beevor indica que a Segunda Guerra Mundial pode ter começado na Ásia), Roosevelt transferiu a Frota do Pacífico da Califórnia para Pearl Harbor e reforçou o apoio aos nacionalistas chineses do general Chiang Kai-shek. “A tragédia foi que o governo Roosevelt subestimou perigosamente o orgulho da Dinastia Showa japonesa, que, de maneira equivocada, interpretou aqueles atos tendentes à dissuasão como provocações inaceitáveis.” Andrew Roberts observa que o preconceito pode ser inimigo da razão: “Muitos políticos e militares dos altos escalões” acreditavam “que os olhos rasgados dos aviadores japoneses não os capacitavam para voos longos”. Pearl Harbor ficava a 5.500 km de distância do território japonês.
Curiosamente, o plano de ataque a Pearl Harbor chegou a ser descartado, por ser arriscado, pelo Estado-Maior da Armada do Japão. Em agosto de 1941. Mas o mandachuva japonês Hideki Tojo e o almirante Isoruku Yamamoto, comandante-em-chefe da Frota Combinada, decidiram torpedear a base americana. “As forças navais oponentes no Pacífico, em dezembro de 1941, eram tão equilibradas, salvo em uma área — a dos porta-aviões [o Japão contava com 11 porta-aviões contra três dos Estados Unidos] —, que, se os japoneses tivessem alcançado vitória total em Pearl Harbor, por certo ficariam com tempo suficiente para consolidar a Área Meridional de Recursos e tornariam mais difícil para os Estados Unidos fazerem valer seus meios mais abundantes”, informa Andrew Roberts.
Comenta-se que Roosevelt sabia que os japoneses iriam atacar em Pearl Harbor. Andrew Roberts postula que o governo americano acreditava num ataque do governo japonês, mas não em Pearl Harbor. Washington alertou o almirante Husband Kimmel, em 24 de novembro de 1941: “Um movimento agressivo de surpresa em qualquer direção, inclusive sobre as Filipinas ou Guam, é uma possibilidade”. Três dias depois, o governo alertou: “Este despacho é para ser considerado um alerta de guerra. Uma iniciativa agressiva pelo Japão é esperada para os próximos dias”. Os militares e os políticos americanos esperavam “que o golpe inicial fosse desferido contra as possessões inglesas e holandesas no sudeste da Ásia, possivelmente até contra as Filipinas. (…) É inegável que Roosevelt queria provocar um conflito com a Alemanha, mas ele não desejava uma guerra em duas frentes e, fato, tinha vontade de transferir parte da Frota do Pacífico para o Atlântico”. O historiador sublinha que Roosevelt amava a Marinha, à qual servira.
Andrew Roberts frisa que “o ataque a Pearl Harbor foi minuciosa e brilhantemente planejado”. Os americanos haviam quebrado o sistema japonês de cifras, o Purple. Mas isto de nada adiantou “porque a frota de [almirante Chuichi] Nagumo navegou sem usar o rádio, para não dar qualquer indicação de onde estava”.

“Os aviões inimigos chegaram a Oahu sem ser detectados porque Kimmel decidira concentrar o reconhecimento aéreo no setor de 3,4 km a sudeste na direção das ilhas Marshall japonesas, em vez de o fazer nas vias de aproximação do norte. Estavam no ar naquela manhã apenas três aviões norte-americanos de patrulha e nenhum deles cobria o norte. Os bombardeiros Kate nipônicos e os caças Mitsubishi A6M2 Zero-Sem (os “Zeros”) encontraram sete encouraçados norte-americanos atracados, ao longo da ilha Ford, dentro da baía, e um oitavo — o Pennyslvania — em dique seco. Por temor de sabotagem, os aviões da força aérea dos Estados Unidos estavam pousados, asa com asa, nos pátios, pois assim era mais fácil guardá-los. Não havia como os veteranos pilotos dos bombardeiros japoneses errarem. As baterias antiaéreas não tinham munição disponível; as chaves dos cofres de munição estavam com o oficial de dia”, expõe Andrew Roberts o que se pode chamar de espetáculo de incompetência dos americanos.
Em poucas horas, os japoneses haviam provocado um estrago em Pearl Harbor. “Dos oito encouraçados norte-americanos no porto, três estavam afundados, um — o Oklahoma — emborcado e os outros com diferentes graus de estragos sérios. Três cruzadores leves, três destroieres e outras embarcações ou tinham afundado ou estavam muito danificados, porém submarino algum fora vitalmente atingido. Apenas 54 aviões da Marinha e dos Fuzileiros, do total de 250, haviam sobrevivido intactos ou eram reparáveis, mas 166 dos 231 da força aérea tinham também sobrevivido.”
Os japoneses não intensificaram o ataque, por exemplo aos depósitos de combustíveis e docas de manutenção, porque avaliaram que, como os porta-aviões não estavam no porto, os americanos poderiam promover um contra-ataque letal. “Uma coisa foi Pearl Harbor ficar inoperante por seis meses; sua destruição total seria outra totalmente diferente”, analisa Andrew Roberts.
Mentiras
Ao voltar para o porta-avião Akagi, Mitsuo Fuchida teria mantido uma discussão “amarga e iracunda” com o almirante Chuichi Nagumo (o jornal espanhol prefere a grafia Cuichi). A história está registrada em livros. O tenente teria dito ao seu comandante que era necessário um terceiro ataque à base americana “para destruir” suas “imensas provisões de combustíveis”. Trata-se, segundo os historiadores, de uma mentira do militar. Mentira que, endossada pelo cinema, tornou-se verdade.
“Não é provável que um almirante como Nagumo tolerasse uma discussão tão desagradável com um subordinado”, de patente bem mais baixa, e logo depois de uma “vitória recém-obtida”. A “verdade” de Mitsuo Fuchida não aconteceu, mas o cinema consagrou a versão. Detalhe: o militar japonês atuou como assessor para assuntos militares na produção do filme “Tora! Tora! Tora!” (fez o mesmo com o filme “A Batalha de Midway”).
No lugar da precisão que havia sido solicitada por diretores e produtores de cinema, Mitsuo Fuchida oferece sua “verdade”. Jesús Calero sugere que era um mestre do “adorno” ou, quem sabe, da contra-história. O historiador Jonathan Parshall demole as versões de Mitsuo Fuchida no livro “O Conto dos Três Embustes” (inédito no Brasil). “De fato, Parschall [autor de um livro sobre a Batalha de Midway, junto com Anthony Tully] conta que o aviador mais tarde elaborou outro relato segundo o qual não atacaram os depósitos de combustível de Pearl Harbor porque queriam utilizá-los adiante na guerra, depois da invasão de Oahu, no Havaí. Os documentos desmentem a existência desses planos de invasão em 1941”, escreve o repórter do “Abc”.
Historiadores recentes não conseguem compreender porque historiadores sofisticados — diretores de cinema tendem ao espetacular e, se os fatos não são interessantes, publicam a versão (esta é, por final, a fala clássica do belo filme “O Homem Que Matou o Facínora”, de John Ford) — se submeteram às versões de Mitsuo Fuchida. Não se sabe os motivos, mas arrisco três hipóteses. Primeiro, ao menos no início das pesquisas, talvez tenha a ver com a dificuldade de acesso às fontes japonesas. Segundo, como comandante do ataque a Pearl Harbor, Mitsuo Fuchida tendia a ser visto praticamente como um “documento histórico” vivo, autêntico. Terceiro, suas mentiras podem ser, mais do que mentiras, interpretações idiossincráticas, enviesadas. “A atenção midiática e o impacto do cinema de guerra transformaram sua versão em verdade incontestável e seus relatos pesaram mais que a investigação história. A visão popular (e nacional) americana do conflito deriva desses filmes, desses relatos e, de fato, uma pessoa como Fuchida, com essa capacidade para influir, se converteu no amigo público e celebrado dos Estados Unidos”, diz o comentarista do “Abc”.
Numa entrevista de 1965, concedida a Merv Griffin, Mitsuo Fuchida — que, frise-se, não era um militar do alto comando — falou de suas ações para reestabelecer a paz entre os Estados Unidos e o Japão. “No vídeo”, afirma Jesús Calero, “conta algumas de suas peripécias, dignas de uma novela, que o levaram a viver nos EUA”. Tornou-se pastor na América, onde se teve dois filhos.
O repórter do “Abc” pergunta: “Por que as invenções” de Mitsuo Fuchida “tiveram tanto êxito?” O jornalista apresenta uma interpretação: “Há quem pense que ofereceu ao inconsciente coletivo americano aquilo de que precisava, conectou essa visão mítica de suas batalhas, muito arraigada na nação, à dos desvalidos valentes que prevalecem contra todo prognóstico. Fuchida alimentou sua presença na vida pública americana não só com seu assessoramento bélico-cinematográfico e suas gotas de drama, também ofereceu ao seu antigo inimigo um sentido para tanto sacrifício: se converteu ao cristianismo e pregou por todo o país. Ele contava que se converteu, quando vivia em Tóquio, ao ler um panfleto que relatava a vida de um piloto americano que havia sido derrubado, Jacob Daniel DeShazer, que foi capturado em 1940 e que odiava com toda sua alma o Japão, pelos longos meses de tortura e maltrato recebido como prisioneiro. Depois da guerra, DeShazer se converteu e voltou para o Japão como missionário: ‘A Bíblia havia transformado todo meu ódio em amor’”.
Mitsuo Fuchida seria a réplica japonesa de DeShazer. A diferença é que o japonês dizia que atacara os americanos, em Pearl Harbor, como soldado e que jamais tivera ódio dos Estados Unidos. Jesús Calero afirma que a conversão do militar e o “seu prestígio como pastor lhe deram relevância pública, converteram-no” numa figura “exemplar e permitiram” que publicasse livros como “De Pearl Harbor ao Gólgota”.
A batalha de Midway também “sofreu” nas palavras e mãos de Mitsuo Fuchida. Jesús Calero, baseado no estudo de Jonathan Parshall (ele escreve “Pashall”), afirma que o afundamento do porta-avião Akagi não se deu no momento em que os militares japoneses se preparavam para levantar voo e contra-atacar os americanos. Publicado em inglês, o relato do militar tornou-se a versão hegemônica. Os documentos originais foram escritos em japonês e microfilmados.
Os relatos de Mitsuo Fuchida foram endossados pelo historiador Gordon Prange, autor de um best seller sobre a batalha de Midway, e prevaleceram por 50 anos. Mas uma nova geração de historiadores decidiu investigar os microfilmes e puderam recontar o que aconteceu.
Jesús Calero diz que “a terceira grande mentira de Fuchida é, talvez, a mais chamativa: assegurou que estava a bordo do USS Missouri no dia em que se firmou a rendição do Japão. Prange o incluiu em um de seus livros, como um fato certo”. Mas, ao contrário do que afirmou, “não era parte da delegação de rendição nipônica e ademais não existe documento que prove sua presença no navio da marinha americana”. Por que um militar que não era de alta patente seria convidado para importante ato histórico? Não eram muitos os militares de proa — americanos e japoneses — e, como o acontecimento foi muito fotografado, por que Mitsuo Fuchida não aparece nas fotografias? Porque, tudo leva a crer, não estava no navio.
A mentira não é senão a verdade que esqueceu de acontecer, ao menos no poetar do bardo Mario Quintana.
Balanço

Andrew Roberts diz que a tendência é se pensar que alemães, italianos e japoneses agiam inteiramente conectados. Não era bem assim. No julgamento de Nuremberg, o almirante alemão Erich Raeder disse: “A Marinha e eu não tínhamos a menor ideia de que um ataque do Japão contra Pearl Harbor estava sendo planejado. Só soubemos do fato depois que o ataque foi executado”.
Pearl Harbor, se levou os Estados Unidos à guerra, não abalou o país em termos estruturais. “Por volta de 1943, o número de aeronaves perdidas em Pearl Harbor correspondia a apenas dois dias de produção norte-americana e, no ano fiscal de 1944, enquanto os alemães fabricavam 40 mil aeronaves, os Estados Unidos produziram 98 mil, evidenciando a tolice catastrófica de Hitler” (que vibrou com o ataque japonês). Subestimar os Estados Unidos foi, avalia Andrew Roberts, “um dos maiores erros de cálculo da história. (…) O grande erro de Hitler foi o de não ter avaliado corretamente o potencial da capacidade de produção industrial dos Estados Unidos”.
Se o Eixo atuasse de maneira coesa, o Japão teria ajudado mais a Alemanha nazista “se tivesse atacado a União Soviética no Leste simultaneamente com a Operação Barbarossa”. Obrigado a lutar em duas frentes, Stálin possivelmente teria sucumbido. O Japão poderia ter “se apossado das ricas reservas de minerais e de petróleo da Sibéria”.
Porém, apesar do equívoco de ter enfrentado um gigante que não estava lhe atacando, as forças do Japão, “no curto prazo, foram capazes de se alastrar pela Ásia, capturando um sexto da superfície do planeta em apenas seis meses e desfechando um vigoroso golpe de morte no Império Britânico, que levara dois séculos para ser construído”.
Ao brigar com três gigantes, a Inglaterra, a União Soviética e os Estados Unidos — criando, por assim dizer, “três frentes” —, de uma só vez, os países do Eixo, a Alemanha, o Japão e a Itália, contribuíram para gerar a própria derrota. Se o Japão não tivesse “convocado” o país de Henry James e William Faulkner para a guerra, de maneira até intempestiva, e se a Alemanha não tivesse atacado a União Soviética de Aleksandr Púchkin e Liev Tolstói antes de derrotar a Inglaterra, tudo em 1941, é provável que a história teria sido diferente. Os historiadores, depois de anos “desconfiando” do “se” no exame da história, voltaram a usá-lo. Não muda a história, aquilo que aconteceu, mas oferece um entendimento mais amplo dos fatos. A análise das possibilidades na história é sempre interessante e pesquisadores gabaritados, como Andrew Roberts, Ian Kershaw e Antony Beevor, não deixam de examiná-las. O que, a rigor, fez Mitsuo Fuchida? Criou, quem sabe, uma história alternativa, “esticando” os fatos…