O livro vingança de Paulo Cesar de Araújo e mais dois tiros no cantor Roberto Carlos
10 agosto 2014 às 11h19

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Iúri Rincon Godinho

Roberto Carlos conseguiu tirar de circulação 10 mil exemplares do livro “Roberto Carlos em Detalhes”, do historiador Paulo Cesar de Araújo. A rigor, a obra não tem nada de ruim contra o rei e pode ser encontrada com facilidade no site do Estante Virtual (estantevirtual.com.br) ou no Mercado Livre por cerca de 400 reais. Foi escrito por um fã, como fã que pesquisou com competência durante 15 anos a vida do rei, que saiu engrandecido após o ponto final.
Mas Roberto não gostou, numa prova de que o ser humano é complexo, complicado e inesperado. Processou Paulo Cesar (inclusive criminalmente, pedindo sua prisão por mais de dois anos) e a Editora Planeta. Levou tão a sério o processo que compareceu à audiência. Com seus olhos tristes e a voz de monstro maior no Olimpo da música (e da cultura popular), o cantor e seu séquito de advogados depenaram (mais moral que financeiramente) o autor e a editora. A obra foi recolhida na Planeta, os exemplares nas livrarias teriam sido comprados e a conta enviada à editora. Segundo desconfia o historiador, os livros estão em algum galpão guardado por seguranças ou teriam sido incinerados.
Paulo Cesar ficou bravo. Na audiência ninguém defendia sua pesquisa rigorosa. Os argumentos de Roberto Carlos, para o réu absurdos, diziam que, com a biografia nas lojas, o cantor teria prejuízo financeiro quando fosse lançar sua própria história. O toque final, kafkiano, se deu quando o juiz chamou o cantor em um canto e lhe pediu que escutasse um cd que gravara. Também soltava seus trinados, tímidos, a julgar pelo pseudônimo que usava.
Sozinho no tiroteio, tendo contra si um ícone nacional, sem seu livro, sem editora, Paulo Cesar foi à forra e preparou a vingança, publicada no início desse ano. “O Réu e o Rei”, da Companhia das Letras, tenta descontruir Roberto Carlos. Ao contar de maneira cronológica e rápida a trajetória do cantor, mostra como ele perdeu relevância a partir dos anos 90 e não consegue, há muitos anos, fazer nada de relevante, lançando músicas raras e ruins, se regravando à exaustão ano após ano. Os cruzeiros do rei são tratados como um passeio de vovozinhas ricas e deslumbradas. Seus shows como excludentes e caros, prejudicando justamente a população humilde que comprou os discos e fez sua fama, e que agora teria sido “abandonada” por ele, privada financeiramente de vê-lo ao vivo.
De maneira desnecessária, relembra o acidente no qual o rei perdeu uma perna (do joelho para baixo), em um acidente na linha férrea, quando criança. Também desnecessariamente desce aos sempre chatos detalhes do processo. Gasta bem umas 100 páginas (e a paciência do leitor) da repercussão (negativa para o cantor, excelente para o autor) da polêmica na imprensa.
Se no primeiro livro Paulo Cesar constrói um herói da música popular, no segundo põe tijolo sobre tijolo num monumento sobre um cantor talentoso mas intolerante, cheio de manias e capaz de influenciar, além dos admiradores, outros artistas e o Judiciário.
Mas a vingança de Paulo Cesar é mais efetiva quando ele dá o caminho de outras obras que não compactuam com a imagem de bom moço de Roberto Carlos. Parte dessa mágoa, para além do processo, foi o fato de os advogados do rei não terem processado também Pedro Alexandre Sanches, autor de “Como Dois e Dois São Cinco”, sobre Roberto, Erasmo e Wanderléa. E nem a ex-mulher do costureiro Dener, Maria Stela Splendore.
Maria Stela (Sri) era uma moça bonita que, ainda adolescente, caiu nas graças do maior costureiro do Brasil e se casou com ele por pouco tempo, para logo depois ter um caso com Roberto Carlos. Em seu livro “Sri Splendore – Uma História de Vida”, ela conta seu envolvimento com o rei e revela as dúvidas sobre quem seria o pai de sua filha: Dener ou Roberto Carlos. De maneira vaga, conta um encontro das duas com o cantor e que ele prometera algo (ela não diz o quê) e não cumpriu. Paulo Cesar parece achar que esse livro seria suficiente para um processo.
Se com Maria Stela nada aconteceu, Nichollas Mariano teve problema semelhante a “Roberto Carlos em Detalhes”. Nichollas era funcionário de rádio no Rio de Janeiro que se aproximou do cantor em início de carreira e trabalhou como seu divulgador — uma espécie de relações públicas. Roberto Carlos o levou pra casa — ainda morava com a mãe, Laura.
Quando o cantor se mudou para São Paulo, demorou para chamar Nichollas, que parecia se sentir abandonado quando não estava com Roberto Carlos. O fato é que o cantor confiava nele mas Mariano não tinha qualificação na vida profissional que o rei entrara, cheia de grandes empresários, advogados e contratos. O jeito que Roberto achou foi contratá-lo como mordomo, na verdade um empregado doméstico de luto, que atendia telefone e fazia compras nos supermercados.
Estar perto do ídolo — e do poder advindo disso — era o bastante e quando os dois se desentenderam e Nichollas foi mandado embora, perdeu o rumo. Tentou vários empregos, até gravou um disco. Tudo fracasso. Voltou a procurar Roberto, pediu dinheiro, recebeu mas não foi o bastante. Em 1979 lançou “O Rei e Eu – Minha Vida com Roberto Carlos”.
Naquele ano, o cantor estava no auge. O sucesso adolescente da Jovem Guarda passara e no final dos anos 60 ele entrara em uma fase mais adulta, densa, um pé na soul music e sem o som pastiche e piegas que faria a partir da metade dos anos 80. Em resumo, seu melhor período, quando, com certeza, produziu algumas das melhores músicas de nossa história.
Roberto Carlos conseguiu proibir o livro até com facilidade — e proibido está até hoje. Até porque Nichollas Mariano não é o Paulo Cesar, que tem estilo, sutileza e estudo. E pegou pesado. Narra a “ginástica” que a família fazia para esconder a deficiência física de Roberto, conta que ele dirigia de maneira quase suicida (disputando quem chegava em menos tempo), diz que Laura não gostava da primeira mulher do filho, Nice, e outros detalhes no limite entre informação e fofoca.
O livro de Nichollas Mariano é bem mais difícil de conseguir, nunca por menos de mil reais. E em tempos de internet não adianta muito proibir a circulação de qualquer texto. Por mais dialético que pareça, ao mesmo tempo, é também necessário que se defenda o direito de quem não quer ver sua história exposta. Mesmo que essa pessoa seja Roberto Carlos.
Iúri Rincon Godinho, jornalista e publisher da Contato Comunicação, é colaborador do Jornal Opção.
