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Cerca de 20 minutos do filme “O Homem do Rio” passam-se em Brasília, em 1963, quando a capital do país estava em franca construção. O artista anda numa viga e o espectador fica apreensivo

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Jean-Paul Belmondo numa viga de um edifício de Brasília. O ex-artista de circo dispensou dublês e deleitou-se com o perigo, ao fugir de perseguidores

Há jornalistas que vendem jornais. É o caso de Severino Francisco, do “Correio Braziliense”. Passei numa das bancas da Praça Tamandaré, a do decano João das Revistas, e li, rapidamente, uma reportagem sobre a presença do ator francês Jean-Paul Belmondo em Brasília. O crítico literário e jornalista Cezar Santos afirma que a história não é nova. Por certo, não é. Mas era para mim, admito. Por isso, mesmo sabendo que poderia ler o texto na internet, comprei o jornal e li cuidadosamente a reportagem “Aventura nas ruínas futuristas”.
O “Correio” reproduz uma imagem do filme, com Belmondo equilibrando-se sobre uma viga. Provoca arrepios até hoje, embora se saiba que o ator não caiu e está vivo, com 82 anos. O diretor Philippe de Broca (1933-2004) gravou as cenas do filme “O Homem do Rio” no Rio de Janeiro, em Brasília (“a capital da esperança”, segundo o escritor francês André Malraux), Manaus e outros locais, em 1963, mas o filme só foi lançado em 1964. Brasília era uma cidade em construção, como mostra a película.

Ex-artista de circo e ex-boxeador, Belmondo dispensou dublês e fez todas as cenas, sem nenhum receio de cair, aparentemente. A cena mostrada na foto que ilustra este texto foi feita em Brasília. O personagem estava sendo perseguido e, para escapar, subiu no edifício em construção, a 50m do chão. Severino Francisco conta que o filme “ganhou uma indicação ao Oscar de Melhor Roteiro, e o quadrinista Hergé o considerou a melhor adaptação de Tintin às telas”.

O filme relata a história do personagem Adrien (Belmondo) e de sua namorada, Agnès (Francoise Dorleac, que Severino Francisco diz ser “belíssima”, e não há como discordar; é irmã de Catherine Deneuve). “Agnès é sequestrada e trazida até Brasília porque ela possuía uma estatueta malteca de valor milionário. O filme é uma espécie de versão francesa das aventuras de James Bond e se tornou uma das principais fontes de inspiração de Steven Spielberg para filmar ‘Caçadores da Arca Perdida’. Tanto a película completa quanto a sequência feita em Brasília estão disponíveis na internet. A sequência de Brasília teve mais de 40 mil acessos no Youtube.”

O professor, cineasta e crítico Sérgio Moriconi escreveu um livro, “Apontamentos Para uma História” (Instituto Terceiro Setor; há exemplares no site Estante Virtual, mas não nas livrarias Cultura, Travessa e Amazon), apresentado pelo “Correio” como “uma história detalhada do cinema candango”. No Youtube há a sequência célebre, na qual Belmondo aparece em cima de uma viga, como se estivesse dançando — está, na verdade, fugindo de dois perseguidores —, mas o filme completo não era encontrável. “Só havia uma cópia em reserva especial e ele [Sérgio Moriconi] teve de ver o filme em uma moviola”, anota Severino Francisco. Em Paris. “Veja como Brasília ainda desperta o fascínio. As duas moças da Cinemateca exclamaram: ‘Ça Brasiliá! Oscar Niemeyer!’ E fizeram questão de ver o filme”, disse o crítico ao “Correio”.
Segundo uma versão, o título do filme deveria ter sido “O Homem de Brasília”, mas o lobby dos cariocas foi mais poderoso. “A hipótese tem fundamento, pois a trama transcorre em outros países, passa por Manaus e pelo Rio de Janeiro, mas a maior sequência (de mais de 20 minutos) e o ápice dos acontecimentos ocorrem em Brasília, com o James Bond francês perseguido por sequestradores em corridas de carro, envolvido por nuvens de poeira de um cenário futurista ou a escalar o cume dos prédios em estado de esqueleto, como se fosse um malabarista de circo”, sublinha Severino Francisco. Sérgio Moriconi acrescenta: “Não poderia haver escolha mais acertada do que Jean-Paul Belmondo. Qualquer outro ator poderia ter se esborrachado de 50m de altura e provocado uma tragédia. Belmondo era um atleta, um artista circense. Para ele, aquelas cenas perigosas foram muito divertidas. Fiquei temoroso com coadjuvantes que o perseguiam nos andaimes dos prédios”. De fato, Belmondo parece muito seguro do que está fazendo, como se estivesse andando na rua.

Francoise Dorlean (irmã de Catherine Deneuve) e Jean-Paul Belmondo: a “fera” e a “bela” fizeram  cenas em Brasília e no Rio de Janeiro, em 1963
Francoise Dorlean (irmã de Catherine Deneuve) e Jean-Paul Belmondo: a “fera” e a “bela” cenas em Brasília e no Rio de Janeiro, em 1963

Sérgio Moriconi sugere que a passagem por Brasília é como um safári exótico-surrealista. Em 1963, “todos os edifícios se encontravam em estado de esqueleto, com exceção do Congresso Nacional e do Palácio da Alvorada”, registra Severino Francisco. Imagens do filme mostram edifícios aparentemente concluídos. “Uma visão bela e perturbadora: a Esplanada, a plataforma rodoviária, o céu azul no horizonte, muito azul. A cidade inacabada parece uma ruína futurística. É como disse Clarice Lispector: Brasília é o presente de um futuro que já passou. Para os estrangeiros, é uma percepção fantástica: não existe ponto de referência em nenhuma outra cidade do mundo”, afirma Sérgio Moriconi.