Os pontos altos da biografia “Di Cavalcanti — Modernista Popular” (Companhia das Letras, 523 páginas), de Marcelo Bortoloti, são a pesquisa rigorosa, a narrativa serena e equilibrada e certas histórias (revela-se quando a obra de arte se tornou um investimento no Brasil e que o artista plástico viveu como pobre em Paris, chegando a trabalhar como operário). Aqui e ali, o autor escorrega na crítica a certas escolhas do pintor, como a presença de mulatas em seus quadros. A sensualidade da arte do criador carioca parece “assustar” o biógrafo — assim como a suposta bissexualidade, ou homossexualidade (tinha interesse particular por travestis; parecia apreciar a amante Ivette Bahia Rocha porque era uma figura andrógina), de um dos papas da Semana de Arte Moderna de 1922 tende a desconcertá-lo. O Di mulherengo e bon vivant é igualmente apontado. Não seria, digamos assim, revolucionário em termos de comportamento?

No geral, e é o que importa, a biografia é um mergulho denso na vida e na obra de Emiliano de Albuquerque Mello, o Di Cavalcanti. Além do pintor refinado — que morou em Paris e, lá, aprendeu menos assistindo aulas do que vendo quadros e conversando com artistas plásticos —, estão bem expostos o escritor (memorialista e poeta) e o jornalista (foi correspondente em Paris). Sua militância comunista e, em seguida, sua adesão ao cristianismo “de” André Gide e Alceu de Amoroso Lima são relatadas com precisão. As brigas com o escritor Oswald de Andrade, o pintor Cândido Portinari e o crítico de arte Mário Pedrosa estão apresentadas de maneira cuidadosa. A relação com Mário de Andrade e com a elite paulista — Di tinha o hábito de arrancar dinheiro de Paulo Prado e Ciccillo Matarazzo — está disposta com clareza.

Di Cavalcanti: um dos mais importantes pintores brasileiros | Foto: Reprodução

Uma curiosidade: a família de Emiliano o chamava de Didi — daí foi um passo para se tornar “Di”.

A história do breve relacionamento com o escritor Lima Barreto é interessantíssima. Assim como o fato de que a poesia de Di era copidescada por Vinicius de Moraes. O biógrafo trata o poemário do pintor como de segunda categoria, e talvez seja mesmo, mas poderia ter escrito um pouco mais a respeito, submetendo-o, por exemplo, a críticos da categoria de Antonio Carlos Secchin, Augusto de Campos ou Alcir Pécora.

 O leitor de Proust e Georges Bataille (apoio teórico e prático para sua vida erótica sem comedimentos), entre outros, está devidamente contado. A biblioteca de Di não era pequena, e vários de seus títulos eram em francês. Bortoloti enfatiza sua boa formação intelectual. O economista Roberto Campos chegou a elogiar a cultura do pintor.

Ao se aproximar dos arquitetos Oscar Niemeyer e Lucio Costa, consequentemente do presidente Juscelino Kubitschek, Di fez obras de alto valor monetário. Em seguida, com o boom imobiliário, que abriu espaço para pinturas e murais, o pintor acabou ganhando muito dinheiro — que gastava de maneira perdulária.

Samba, de 1927 | Pintura de Di Cavalcanti

Terminada a leitura, o que concluir: Di sai maior ou menor? Na verdade, dado o retrato equilibrado, com as contradições exibidas, Di não sai menor. Sai maior. Quer dizer, é um dos maiores pintores da história brasileira, ao lado de Portinari, Cícero Dias, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Ismael Nery, Volpi, Djanira,  Lasar Segall, Iberê Camargo, Hélio Oiticica, D. J. Oliveira, Elder Rocha Lima, Siron Franco, Alexandre Liah, Ana Maria Pacheco, entre outros.

Bortoloti deixa a impressão de que, a partir de determinado período, Di datou-se. Penso (um pouco) diferente: foi um artista de seu tempo e que respeitou seu estilo, mesmo quando, famoso, decidiu ganhar dinheiro com seu imenso talento. Há quem acredite que a arte é linear, que vai avançando e que as inovações são “melhores”. Não é assim necessariamente.

Trato, a partir de agora, apenas do interessantíssimo prólogo do livro, quase um roteiro de cinema.

Samba, de 1927 | Pintura de Di Cavalcanti

Velório e enterro renderam filme de Glauber

Di comia e bebia muito — acabou gordíssimo, com 110 quilos. E era baixinho (1,62m). O que surpreende é que tenha vivido acima da média do homem brasileiro.

No dia 26 de outubro de 1976, aos 79 anos, Di morreu de insuficiência renal e hepática (tinha cirrose), no Rio de Janeiro, consagrado como um dos maiores vendedores de quadros da história do país. Di havia se tornado uma grife de luxo e, como tal, vendia muito bem. Galeristas chegavam a ir ao seu apartamento, na Rua do Catete, em busca de alguma novidade — que, muitas vezes, era repeteco do que o pintor já havia feito — porque o mercado clamava por mais Di. Ter uma pintura sua na parede era símbolo de status, de emergência socioeconômica.

Entretanto, se vendia bem, o funeral de Emiliano Di Cavalcanti não foi dos mais concorridos. Pelo contrário, havia pouca gente no cemitério. “Era um pintor que, embora atuasse num campo restrito à elite, havia conseguido, em razão de suas qualidades sociais, conquistar um status de celebridade cultural, sendo reconhecido enquanto andava pelas ruas, autografando cadernos de jovens estudantes, participando de programa na televisão”, assinala Bortoloti.

Samba, de 1929 | Pintura de Di Cavalcanti

O corpo de Di foi colocado num caixão de madeira nobre e o velório ocorreu no saguão do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, no dia 27 de outubro de 1976.

A mulher de Di, a inglesa Beryl Tucker — viviam em casas separadas (o pintor era mulherengo) —, e sua filha, Elizabeth Di Cavalcanti, que o pintor havia adotado, ficaram o tempo todo no velório. Amigos do peito, como Vinicius de Moraes, Jorge Amado e Rubem Braga, fizeram forfait. O ex-ministro Delfim Netto — colecionador de obras de arte — mandou uma coroa de flores. O marechal Cordeiro de Farias, Oscar Niemeyer, as atrizes Tônia Carrero e Neila Tavares, o teatrólogo Paschoal Carlos Magno compareceram. O último “espantado com ‘a ausência de tanta gente com quem ele dividiu o pão” (Di era generoso e dava dinheiro para muitos amigos, como o cronista Antônio Maria).

Mas eis que, de repente, surge, do nada, o diretor de cinema Glauber Rocha — e aí o velório e o enterro se tornaram cousas de cinema.

Glauber Rocha “dirigindo” o velório de Di Cavalcanti, em 1976

Eterno cidadão da contracultura, Glauber apareceu com seu “cabelo encaracolado, a barba por fazer e uma descolada combinação do paletó azul-claro sobre uma camisa xadrez”. Era quase um personagem de um quadro digamos modernista, não necessariamente de Di.

Glauber estava com um grupo, que carregava equipamento de filmagem. “A partir de sua intervenção, que tantos consideraram verdadeiro acinte à família, a cerimônia ganhou um viés artístico e contemporâneo”, diz Bortoloti.

Entusiasmado, Glauber transformou o morto, que se tornara “vivo”, num astro. Ao cinegrafista, dava ordens peremptórias: “Agora dá uma panorâmica e enquadra o caixão no centro! Depois começa a filmar da esquerda para a direita! Aqui, devagarinho, vamos lá: um, dois, três! Corta”. Agora, sim, Di havia se tornado o Pablo Picasso dos trópicos.

Homens importantes, engravatados, começaram a chegar e assistiam, sem dizer palavra, as cenas de cinema do enterro-filme. O que, a rigor, conferia relevância a um velório tão desprestigiado, mas que acabou se tornando um espetáculo. O diretor de fotografia Mário Carneiro fazia o impossível para atender o cinemanovista Glauber Rocha. “Somente o marechal Cordeiro de Farias, circunspecto militar, foi capaz de dizer palavras mais ásperas ao produtor, que lhe pedira para repetir a ‘cena’ da despedida diante do caixão”, conta Bortoloti.

O velório de Di Cavalcanti sob o olhar de Glauber Rocha | Foto: Reprodução

Não contente em filmar o corpo de longe, Glauber Rocha orientou o cinegrafista a “ousar” — “focar os detalhes: os sapatos pretos, as mãos enrugadas, o tronco submerso em flores vermelhas. Cobrindo o rosto havia um véu branco, em respeito à memória do artista vaidoso, que nos últimos meses se recusava a encontrar qualquer amigo, para que ninguém o visse acabado pela doença. O diretor arrancou o véu — gesto simbólico da revelação — e expôs o rosto descarnado, a enorme fileira de dentes que se projetava para fora da boca, a imagem cadavérica da morte desnudada”. Não, leitor, Alfred Hitchcock não encarnou no autor de “Terra em Transe”, pois só morreria em 1980, quase quatro anos depois. Glauber Rocha morreu em 1981.

Apimentando a filmagem, Glauber Rocha orientou: “Close no rosto, quero ver os algodões no nariz”.

Uma amiga da família de Di protestou: “O senhor pare com este espetáculo mórbido, eu peço em nome da família”. Glauber Rocha não se sentiu admoestado: “Não se preocupe, minha senhora, esta é a minha homenagem a um amigo que morreu. Estou aqui filmando minha saudação a Di Cavalcanti. Agora, dá licença, preciso trabalhar”.

Carnaval, pintura de Di Cavalcanti

É provável que alguns dos que viam a cena tenham pensado que Di Cavalcanti havia feito algum acordo para Glauber Rocha filmar seu velório.

Fechado o caixão, o ator Joel Barcelos, “paramentado com uma capa de chuva marrom, apanhou uma das alças do caixão”, acatando determinação de Glauber Rocha.

“O cortejo dirigiu-se até a Kombi funerária que levaria o corpo ao cemitério. Com o caixão já acomodado na parte traseira do veículo, foi o diretor quem ordenou: ‘Pode fechar!’”, narra Bortoloti.

O biógrafo afirma, com razão, que “Glauber Rocha não estava ali por acaso. Sabia que junto com Di Cavalcanti morria um pedaço do Brasil, que precisava ser registrado”.

De acordo com Bortoloti, “Di Cavalcanti encarnava o espírito do artista brasileiro por excelência. (…) Seu interesse sempre foi interpretar o Brasil nas suas telas, identificando os tipos humanos e as manifestações culturais mais genuínas”.

Di Cavalcanti trabalhando | Foto: Reprodução

Tendo sido peça decisiva na Semana de Arte Moderna de 22, Di firmou-se “como o modelo vivo do desbravador ou, ao final, do patriarca da arte moderna. (…) Manteve-se criativo e inovador nas décadas seguintes, com recaídas. (…) Mantinha-se ainda ativo e polêmico. (…) Ajudou na elaboração de uma imagem típica do Brasil. (…) Seu objeto de interesse sempre foi o povo humilde, os pescadores, as prostitutas, as mulheres negras e o subúrbio”, anota Bortoloti.

Di foi “o primeiro dos modernistas filiado ao Partido Comunista e o único a ser três vezes preso por sua militância”.

Se Glauber Rocha, de viés marxista — um marxista quiçá surrealista —, fez a denúncia direta da miséria de parte substancial dos brasileiros, com um discurso afiado, Di, postula Bortoloti, “retratou o povo em seus momentos de folga lírica, nas alcovas, nos bordéis e nas rodas de samba”. Talvez o cineasta procurasse “demonstrar” e Di optasse por “mostrar”…

Bortoloti acrescenta: “Di retirou das manifestações culturais e dos tipos humanos da periferia elementos pictóricos e cores próprias para produzir uma pintura que dialogasse com a arte contemporânea à época e que fosse também original de sua terra. Além disso, escolheu a mulher de pele negra ou mestiça — então popularizada como ‘mulata’ — para ser um símbolo de identidade nacional, conferindo a esse ícone um lugar de consagração”.

Jorge Amado, Zélia Gattai, Di Cavalcanti e Vinicius Moraes | Foto: Reprodução

Com dinheiro da Embrafilme, Glauber Rocha concluiu o filme sobre Di, que incluiu imagens de uma exposição de obras do pintor. O ator Antônio Pitanga, pai de Camila Pitanga, aparece, “vestido apenas com uma calça de capoeira”, dançando “na frente dos quadros”.

Glauber Rocha “batizou o filme inspirando-se nos versos do poeta Augusto dos Anjos: ‘Ninguém assistiu ao formidável enterro de tua última quimera, somente a ingratidão — essa pantera — foi tua companheira inseparável’. Por ser excessivamente longo, mais tarde acatou a sugestão de um amigo, reduzindo para ‘Di-Glauber’”.

O curta-metragem, conta Bortoloti, “deixou o público perplexo, sem saber se era genial ou uma zombaria com a memória do morto. Transmitia, de todo modo, a forte impressão de obra de arte original, mesclando locução caótica, montagem com cortes bruscos, uma animada trilha sonora em contraste com as imagens fúnebres e certo humor permeando toda a narrativa”.

No dia do lançamento do filme, o palavroso Glauber Rocha disse: “Fênix/Di nunca morreu. No caso o filme é uma celebração que liberta o morto de sua hipócrita-trágica condição”. Há aí “uma imagem fundamental tanto para Di como Glauber naquele momento histórico: o da ressurreição, da pertinência cultural, do legado que não se apaga”, considera Bortoloti. O cineasta pontuou: “O cinema brasileiro não morreu está vivo com Di”.

Um poema de Vinicius de Moraes “conduz” o filme: “Viveste, Di Cavalcanti/ Foste amigo e foste amante/ Não há outro igual a ti/ Juntos bebemos champanhe/ uísque, vinho, parati/ Juntos rimos e choramos/ No México e em Paris./ Quantas mulheres amamos!/ Quantas Marias perdi./ A muitas eu disse yes./ A muitas disseste oui.”

No Festival de Cannes, na França, o filme foi aplaudido e ganhou o prêmio de Melhor Curta-Metragem de um júri renomado” presidido por Roberto Rosselini, o diretor de cinema italiano.

Apesar do “sucesso”, a Justiça, a pedido da filha de Di, proibiu a exibição do filme. Elizabeth Di Cavalcanti disse que a obra de Glauber Rocha retratava o pintor de “maneira deprimente”.

Bortoloti informa que, apesar da proibição, o filme pode ser visto na internet. O biógrafo sublinha que, para Glauber Rocha, “o artista Di Cavalcanti, se parecia empanado pelo tempo, revelava-se absolutamente atual quando aspectos esquecidos da sua trajetória eram revistos”. Sua arte era vigorosa e inapagável.

Livro precisa de revisão criteriosa

Ainda que muito bem escrito e formulado, o livro de Bortoloti precisa de uma revisão criteriosa, pois há vários erros: “coalização” (coalizão), “benção” (bênção), “matinha” (mantinha) “taxado” (tachado), “mise um scène” (mise-en-scène), “pensado” (pensando), João “Batista” (Baptista) Figueiredo, “Castelo” (Castello) Branco, Mario (Mário) Pedrosa, “Lúcio Costa”, “Olga Benário” (Lucio e Benario, no caso, não têm acento). Mais: “embarcado” (embarcando). Há pelo menos um trecho repetido e um trecho confuso (“No caminho para a mostra, Di passou pelo Rio Grande do Sul, onde era interventor de seu colega Cordeiro de Farias” — o “de” está passando).

Há também certas impropriedades. Primeiro, ao contrário do que acredita Bortoloti, o general Golbery não era uma “figura querida entre os militares”. Era “querido” do grupo militar do presidente Ernesto Geisel — e só. E era “querido” de um grupo de jornalistas, que incluía Elio Gaspari e, um pouco menos, Mino Carta.

Segundo, o biógrafo apresenta Gilberto Freyre como “escritor”. O intelectual pernambucano, que provavelmente ficaria lisonjeado, deve ser ressaltado como sociólogo — autor do livro “Casa Grande & Senzala”, uma poderosa interpretação do Brasil, independentemente de seu caráter polêmico.

Terceiro, sem explicar seus motivos, Bortoloti diz que Jayme Ovalle era “grande poeta”. É provável que nenhum crítico de categoria endosse a opinião.

Me parece também que, ao dissecar a pintura, Bortoloti às vezes interpreta Di à luz do politicamente correto — que, no tempo dele, não existia, não havia um exército de “corretores” e “patrulheiros” de ideias, estilos e comportamentos. Mas, como disse no início, a biografia é de excelente qualidade: uma história do Brasil contada a partir da vida de um indivíduo.

O documentário de Glauber Rocha