O ataque das bandeiras na Espanha e no Brasil contra o dicionário amoroso

24 maio 2020 às 00h00

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O outro. Este é o verdadeiro território inimigo das bandas patrióticas. Tal território, a quem damos o nome de o Outro, é universal
Halley Margon
Especial para o Jornal Opção, de Barcelona
Para uma psicanalista nada mais natural que no título de um dicionário da psicanálise haja alguma sugestão de vínculo com Eros ou pelos menos ao mundo dos nossos possíveis afetos. Na Espanha “O Dicionário Amoroso da Psicanálise”, da historiadora e psicanalista francesa Élisabeth Roudinesco, foi lançado em janeiro do ano passado — não confundir com o “Dicionário da Psicanálise” que Roudinesco publicou com Michel Plon, em 1997. O “Dicionário Amoroso” é, segundo a própria autora, um léxico singular, no qual o que se encontra não são “conceitos, nem autores, nem países, mas sim temas, palavras, ficções e territórios reunidos de maneira arbitrária, citações e referências a outros dicionários amorosos, assim como um índice de nomes próprios”.

Ali está, por exemplo, Monroe, Marilyn, a atriz, e logo abaixo do verbete, Suicídio em Couch Canyon. Ou Dinheiro— Bom lacaio, mal amo. Vários verbetes são nomes de cidades como Berlim, Nova York, Roma ou Zurique. Com o que nos deparamos ao chegarmos nessas cidades será quase sempre uma surpresa. Há os termos inevitáveis relacionados à psicanálise como Édipo, Eros e Espelho, Antígona e Narciso, Incesto, Infância e Loucura. E referências a outras personalidades, além de Marilyn, como Gershwin (George), Bonaparte (Napoleão), Hitler (Adolf) e Holmes (Sherlock).
Nacionalismo é incompatível com a psicanálise e conduz à guerra
Ou termos como Guerra — A sombra de todas as guerras na guerra de hoje. A autora desse verbete (e do “Dicionário Amoroso”) nasceu no 12 Distrito de Paris, no penúltimo ano da Segunda Guerra Mundial, veio ao mundo duas semanas após a libertação da cidade, em agosto de 1944, ocupada pelos nazistas da vizinha Alemanha desde junho de 1940. Ali ela se refere a Freud e a uma outra guerra que não muito tempo atrás havia destruído seu país, assim como o de Freud e a Europa inteira. Quando teve início a Primeira Guerra Mundial, em junho de 1914, Freud não imaginava, diz ela, “que a guerra seria longa, nem que deixaria milhões de mortos, nem que a Europa, a que amava e conhecia, desapareceria para sempre. Em novembro, no entanto, ele afirma… que a voz da psicanálise já não é audível, a tal ponto a eclipsa o ruído dos canhões”.

Essas duas guerras e o patriotismo que as alimentou, um patriotismo que a um só tempo mascarava interesses e estimulava o ódio nacional de acordo com as circunstâncias das alianças políticas, marcou tragicamente a existência de algumas gerações. Essa gente sabe do que se trata quando ouve o rufar dos tambores e dos hinos patrioteiros e o agitar das bandeirolas nacionais. Talvez esse seja o verbete mais carregado de afeto de todos quantos constam do dicionário.
Na sequência do comentário sobre Freud e a guerra de 1914, Roudinesco afirma que: “Nunca se insistirá demasiado em como a psicanálise é incompatível com o nacionalismo e em que medida o nacionalismo sempre nos conduz à guerra”.
Bandeirolas aqui e aí e uns tantos mortos no meio
Velhos ditados volta e meia trazem à luz fragmentos de verdade. Aquele que diz, por exemplo, que a mentira tem pernas curtas. Pode ser até que não sejam tão curtas, os meios e os métodos se aperfeiçoam (ver coluna anterior) e, numa sociedade onde estão desmoronando as poucas instituições de defesa da res publica, crescem os que estão dispostos a encobrir a realidade e para praticar o malfeito. Mas também pode ser que a realidade acabe por vir à tona revelando a face feia dos aliados da morte.

Na terça-feira, 19 de maio, os noticiários da Espanha informam que o Brasil tinha rompido oficialmente a marca dos mil falecimentos diários — com 1.179 novos óbitos. Com isso o país estaria somando 19.971 falecidos num total de 271 mil contaminados (no sábado, 23 — 21.678 mortos e 340.887 contaminados). Os estudos que começam a aparecer mostram uma situação dramaticamente diferente. A BBC divulgou um estudo feito pelo Laboratório de Inteligência em Saúde da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP no qual o total de infectados no Brasil, em 19 de maio de 2020, já teria ultrapassado a cifra de 3 milhões de pessoas. Isto é 11 vezes mais que os casos divulgados pelo Ministério da Saúde e muito acima, por exemplo, do número de infectados nos Estados Unidos (com cerca de 1,5 milhões na mesma data).
Repetindo: os infectados pela Covid-19 no Brasil, de acordo com esse estudo ligado a uma das mais importantes universidades do país, já ultrapassaram em muito os 3 milhões de brasileiros — enquanto o governo de Jair Messias Bolsonaro persiste em seu esforço de convencimento com números pelo menos dez vezes menores. A capa sob a qual tenta salvaguardar sua política que finalmente começa a escancarar os nefastos resultados é nada mais nada menos que a do estandarte nacional. A máscara do patriotismo convoca a tropa a vestir a bandeira verde e amarela e ocupar praças e ruas.
Os números da pandemia na Espanha, um dos países mais violentamente atingidos pelo patógeno, são não apenas muito diferentes, mas sobretudo o reflexo da política adotada pelo governo espanhol. Após o pico de 950 mortos num só dia, em 2 de abril, na quinta-feira da semana que se encerra agora, 21 de maio, os óbitos registrados decaíram para 48. A primeira consequência desse resultado é que o país já está em pleno mas muito controlado processo de “desescalada” (o processo de volta à normalidade, cuidadosamente planejado pelo governo e que consiste em quatro fases — embora a maioria das cidades e Estados já tenham saído da fase zero para a fase 1, as duas maiores cidades, Madri e Barcelona, ainda estão na zero, da qual deverão sair neste final de semana).
A segunda consequência dessa melhoria é política. O Vox, o partido da ultradireita, imediatamente se lançou à ofensiva contra o governo, atacando grosso modo as medidas de combate à pandemia (que desde o início vinha apoiando), e deixando para trás tanto o tradicional partido da direita espanhola, o Partido Popular (PP), quanto o mais recente Ciudadanos, de centro-direita.
Convocadas, lá estavam elas, indefectíveis, com suas bandeirolas patrióticas amarradas ao pescoço acobertando as costas, as tradicionais gentes defensoras dos supostos valores pátrios. Quanta semelhança, apesar de um oceano a separá-los, com os da tropa de choque bolsonarista. Até o nó que ata as pontas do estandarte ao peito estufado de orgulho nacional. Que espantosa identidade. É como se a bandeira os agasalhasse e os protegesse. Mas protegesse contra quem? Aparentemente contra todos aqueles que, mesmo ocupando o mesmo pedaço do planeta, partilhando línguas e histórias, leis e decisões comuns, não pensam exatamente tal e qual. É que então a pátria os protege contra seus compatriotas, aqueles a quem não lhes agradam. É mais que isso: quando o guerreiro pinta o rosto se preparando para a guerra, se acobertando por detrás de uma bandeira da qual tomou posse como se fosse sua, pouco lhes importa onde os inimigos tenham de fato nascido, no Itaim Bibi, no Jalapão ou no Himalaia. Porque os inimigos são, para eles, inimigos da pátria. E os inimigos da pátria são os seus inimigos. E nem se pense em falar de tautologia com essa gente. Aos bandos patrióticos lhes bastará balançar o estandarte, entoar os devidos hinos, bradar as canções de batalha. A bandeira grudada às costas lhes pertence como uma fralda, e é irrepartível. Seria anti-higiênico. Na face um orgulho gozoso e ostensivo, carregado de rancor e desprezo pelo outro.
O outro. Este é o verdadeiro território inimigo das bandas patrióticas.
Tanto aqui, na bem-sucedida saída de uma crise sanitária assustadora, quanto aí, enquanto o país mergulha rumo a um desastre humanitário provavelmente sem precedentes.
Porque aquele território, na verdade, a quem damos o nome de o Outro, é universal.