O jornalista que vendeu a alma ao diabo e Donald Trump à América

30 julho 2016 às 10h42

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Tony Schwarz era um promissor nome de sua profissão, mas foi “aposentado” precocemente por escrever a biografia do megamilionário. Hoje, ele diz que “passou batom em um porco”

“I put lipstick in a pig”. Em português claro: “Eu passei batom em um porco”. Ou outra frase similar (já traduzida) do editor da revista “New York”, sobre o autor da primeira: “Tony Schwartz criou Trump. Ele é o Dr. Frankenstein”.
Talvez Donald Trump se tornasse um “monstro” – o termo é polissêmico, então que o leitor dê a ele o significado que melhor lhe aprouver – de qualquer forma. Mas ser ele o jornalista a transformar o bilionário ególatra e totalmente desarrazoado em um perigo em potencial para a humanidade, haja vista as últimas pesquisas da corrida presidencial dos Estados Unidos, deve obrigatoriamente trazer um peso de consciência. Ele é filho de Felice Schwartz, uma escritora judia nascia em Nova York e que se tornou uma líder feminista e fundadora de duas instituições sociais que se tornaram referência, como porta de entrada para muitos negros em faculdades e para o avanço das mulheres em postos de trabalhos – esta última entidade, a Catalyst, foi presidida por Felice por cerca de 30 anos. Ela teve um posicionamento firme no debate feminista, enfrentando outras correntes para dizer que a mulher deveria ter condições diferenciadas do homem no local de trabalho, principalmente para adaptá-lo a suas outras jornadas, como as de dona de casa e de mãe, por exemplo.
Por todo esse histórico familiar, Tony Schwartz obviamente não seria o sujeito mais indicado para construir a figura positiva de um tipo como Donald Trump. Mas em 1985, quando o magnata ainda estava ascendendo a celebridade nacional, o destino juntou-lhes o caminho e mudou a vida de ambos. Tudo por conta de uma reportagem bem crítica feita por Schwartz sobre aquele forte empresário do ramo imobiliário de Nova York. O título era “A Different Kind of Donald Trump Story” – algo como “Um ângulo diferente da história de Donald Trump”, em inglês – e detonava a imagem do magnata, contando como ele fez para expulsar inquilinos de um empreendimento que havia adquirido, usando até pessoas sem-teto para espantá-los do imóvel. O ricaço, em uma atitude completamente autofocada, como é sua característica, considerou a peça escrita um elogio. Pendurou-a numa parede de seu escritório e quis imediatamente conhecer seu autor.
A cena está descrita na reportagem que a revista “The New Yorker” fez com Schwartz tendo como “gancho” a aprovação da candidatura de Trump à Presidência dos Estados Unidos, pelo Partido Republicano. O desenrolar da situação levou Schwartz a topar escrever a autobiografia, tornando-se, então, o ghost writer de “The Art of Deal”. Foi como ter vendido a alma ao diabo, e a partir daquela escolha – que envolveu muito dinheiro, obviamente – ele sabia que seria um jornalista menor. Ou um “ex-jornalista”, como foi chamado, na época, pela revista satírica “Spy” (hoje uma “ex-revista”, já que encerrou as atividades em 1998).
Ultimamente, o jornalista diz ter uma “profunda sensação de remorso” por haver escrito o livro/inventado o monstro. Mais ainda: na versão do protagonista da obra, Schwartz teve pouquíssima participação na elaboração do livro. Em seu discurso ao ser aclamado candidato do Partido Republicano às próximas eleições presidenciais dos Estados Unidos, Donald Trump disse que o país “precisa de um líder que escreveu ‘The Art of the Deal’”. Depois de quase 30 anos de publicada, a obra ainda não tem versão em português – o que pode dizer muito sobre sua qualidade –, mas seu título poderia ser traduzido para algo como “A Arte da Negociação”. Schwartz não poderia deixar de ser irônico ao responder. “Muito obrigado a Donald Trump por sugerir que eu deva concorrer à Presidência.”
Seria mesmo de surpreender que Trump tivesse escrito alguma coisa na vida, pelo relato que faz Schwartz à “New Yorker”. Partindo-se da premissa de que para escrever algo (quanto mais um livro) é preciso antes gostar de ler – ou pelo menos ter intimidade com a leitura –, o eventual próximo presidente dos Estados Unidos, talvez não dê conta de fazer uma redação básica: seu ghost writer relata nunca ter visto Trump com um livro, seja sobre sua mesa, em seu escritório ou em seu apartamento. Ao ser questionado sobre qual é seu livro preferido, o candidato republicano responde sempre “a Bíblia” ou “The Art of the Deal”. A primeira resposta é a padrão para todos os homens de um livro só; a segunda resposta é autopromoção. A verdade é que, muito provavelmente, nunca tenha conseguido ler totalmente nenhum dos dois.
Relembrando-se do tempo que passaram juntos – 18 meses entre 1985 e 1987 – para que pudesse apreender, não sem muita dificuldade, alguma coisa positiva publicável sobre seu cliente, Schwartz diz: “Trump não se encaixava em qualquer modelo de ser humano que eu tivesse encontrado. Era obcecado por publicidade e não se importava com o que escreviam sobre ele.” Foi assim que ele entendeu por que havia sido o escolhido para escrever o livro.
Durante esses 18 meses de convívio, talvez nem mesmo a família tenha sido tão íntima do empresário quanto ele. É que o jornalista tinha de solucionar um problema grave para quem precisa escrever uma biografia: entrevistar o biografado. Trump, segundo Schwartz, não consegue ficar alguns poucos minutos concentrado em uma tarefa. Logo se irrita e se dispersa. A solução foi ficar “de campana” no escritório de Trump, que aceitou sem maiores problemas abrir a seu biógrafo, no viva voz do telefone, suas conversas pessoais e de negócios abertas. Tudo sem filtros.
Por tudo isso, se tem alguém que se responsabiliza pelo perigo que é a possibilidade de Donald Trump assumir a cadeira mais poderosa do planeta a partir do ano que vem, essa pessoa é Tony Schwarz. Foi esta a justificativa que fez com que ele resolvesse quebrar o contrato não falado de confidencialidade que tinha com seu cliente: acreditar que a eleição do republicano é uma real ameaça ao futuro do planeta.
No Twitter, ghost writer faz cruzada contra o candidato republicano
A julgar por sua conta no Twitter, Tony Schwartz não é um sujeito muito frequente nas redes sociais. Está no microblog desde novembro de 2008 (como @tonyschwartz), período em que fez 1.401 postagens (até sexta-feira). É uma média de um tuíte a cada dois dias, o que sugere baixa assiduidade. No perfil, define-se como “CEO (diretor-executor) do The Energy Project. Autor. O autor-fantasma de ‘The Art of the Deal’ agora falando abertamente. Determinado a transformar o jeito de o mundo funcionar.”
A primeira vez que Schwartz falou no Twitter sobre o político Donald Trump foi em 16 de junho do ano passado, ao reafirmar ser o autor do livro que o então postulante à candidatura republicana reivindicava ter escrito. Suas publicações, mesmo assim, foram esporádicas naquele espaço. Chegou a ficar quase quatro meses sem publicar nada. Mas assim que Trump ganhou oficialmente a nomeação para concorrer à Casa Branca, o jornalista começou uma campanha pessoal contra o republicano pela rede social (veja postagens de Schwartz nesta página).
Apesar de estar, pelo menos até o momento, longe de ser uma grande celebridade (tem 48 mil seguidores no Twitter), seu posicionamento foi imediatamente contestado, como era de se esperar. Foram vários os internautas que o tacharam de “oportunista” e de estar tentando “posar de santo” depois de ter lucrado bastante com o livro.
Na entrevista à revista “New Yorker”, Tony Schwartz disse que, hoje, rebatizaria “The Art of the Deal” como “The Sociopath” (“O Sociopata”, em inglês). E que o mundo não pode ficar à mercê de alguém que não tem escrúpulos e não consegue se concentrar em nada. Fala mesmo em perigo nuclear. Está ganhando notoriedade, sim. Mas uma coisa é fato: ninguém conhece realmente o risco chamado Donald Trump como ele.
The Trump I know has never listened to anyone. No one can tell him what to do. Won’t take any advice. Terrifying in a president.
— Tony Schwartz (@tonyschwartz) 28 de julho de 2016
A “guerra santa” de Tony Schwartz contra Donald Trump pelas redes sociais
16/6/2015
“Muito obrigado a Donald Trump por sugerir que eu deva concorrer à Presidência, baseado no fato de que eu escrevi ‘The Art of the Deal’. Sem planos, no momento, de aceitar o projeto.”
16/9/2015
“Eu escrevi (o livro) ‘The Art of the Deal’. Donald Trump o leu.”
21/7/2016
Semana extraordinária para falar a verdade. Enquanto Donald Trump prepara-se para aceitar a nomeação (como candidato republicano à Presidência), de agora em diante estou comprometido a compartilhar tudo o que sei.”
21/7/2016
“Nos 18 meses que eu passei ao lado de Donald Trump nunca vi Ivanka [filha de Trump] sequer uma vez no escritório dele. E nunca o ouvi fazer uma menção sequer ao nome dela.”
21/7/2016
“Este é o Donald Trump que eu conheci: nenhuma palavra sobre esperança, nenhuma palavra sobre possibilidade. Desgraça o tempo todo.”
21/7/2016
“Meu estômago revira com Trump defendendo a comunidade LGBT. Isso é inteiramente roteirizado. O Trump que eu conheço nunca diria isso, em um milhão de anos.”
23/7/2016
O que eu conheci de Donald Trump é que ele é verdadeiramente sem coração ou sem alma. Seu único foco é Donald Trump. Nada mais importa.”
23/7/2016
As pessoas me perguntam por que eu esperei para me manifestar. Eu não acreditava que Trump tivesse chance (de ser candidato). Mas está longe de estar tarde demais. Agora é tempo de despertar.”
24/7/2016
“Trump se destacou como um valentão e agora está tentando intimidar a América. Seu modelo é Vladimir Putin. Nós queremos um ditador como presidente?”
26/7/2016
“Trump odeia perdedores – o que significa qualquer um que não seja rico, poderoso ou que tenha medo dele. Ou seja, quase todos nós.”
27/7/2016
“Como reação à agitação social e à oposição, eu posso facilmente enxergar Donald Trump estabelecendo lei marcial e suspensão dos direitos de todos os cidadãos.”
28/7/2016
“Trump tuitando sobre ‘pobreza’ e ‘desesperança’. Nunca o ouvi mencionar essas preocupações enquanto estive com ele. Essas coisas não significam nada para ele.”