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Eudora Welty e Virginia Woolf: a contista americana influenciou Nadine Gordimer, mas não tinha uma cabeça política, possivelmente devido  à estabilidade dos Estados Unidos; já a autora inglesa, autora dos romances “Orlando” e “Ao Farol”, buscou e entendeu a magnitude da vida / Fotos: Wikipédia Commons
Eudora Welty e Virginia Woolf: a contista americana influenciou Nadine Gordimer, mas não tinha uma cabeça política, possivelmente devido à estabilidade dos Estados Unidos; já a autora inglesa, autora dos romances “Orlando” e “Ao Farol”, buscou e entendeu a magnitude da vida / Fotos: Wikipédia Commons

Nadine Gordimer, uma das poderosas escritoras sul-africanas e Nobel de Literatura de 1991, morreu em 13 de julho deste ano, aos 90 anos. Sua literatura é celebrada por críticos do gabarito de Susan Sontag e John Maxwell Coetzee, ambos também prosadores. Escreveu, entre outros, “A Filha de Burger” (Editora Rocco), “Uma Mulher Sem Igual” (Rocco) e “O Melhor Tempo É o Pre­sente” (Companhia das Letras). Convencionou-se dizer que um de seus principais temas é o Apar­theid e suas consequências. Mas seus livros contam histórias mais amplas, sobre a vida cotidiana dos indivíduos, inclusive no pós-Apartheid.

No livro “Os Escritores — As Históricas Entrevistas da Paris Review” (Companhia das Letras. O diálogo com a escritora, exposto em 32 páginas, foi traduzido por Alberto Alexandre Martins), Jannika Hurwitt mantém ótima conversa com Nadine Gordimer, entre 1979 e 1980. Trinta e três anos depois, permanece como uma entrevista muito bem feita e atual.

Nadine Gordimer revela que, antes de ser escritora, pretendia ser bailarina. Porém, acometida de uma doença, menos grave do que pensava sua mãe, começou a ler freneticamente e decidiu escrever livros. “Quando converso com jovens escritores e digo: ‘Já leu isso ou aquilo?’, ‘Bem, não, os livros estão tão caros…’, eu digo: “Deus do céu! A biblioteca central é uma excelente biblioteca. Pelo amor de Deus, use-a! Você nunca vai ser capaz de escrever se não ler.”

O leitor iniciante deve seguir algum método? Nadine Gordimer sugere que, quando não se é especialista, não se deve ser rígido. “Costumava ir à biblioteca e vagar por lá, e um livro levava a outro. Mas penso que essa é a melhor forma.” Quando criança, ela lia os livros — como “… E o Vento Levou” e “Diary”, de Samuel Pepys — e escrevia pequenas críticas. Além da leitura, que é formativa, a autora já começava a observar como seus ídolos escreviam.

Na universidade, à qual frequentou um ano, relacionou-se pela primeira vez com negros e leu Henry Miller e Upton Sinclair. “Foi ‘The Jungle’, de Sinclair, que realmente me fez pensar em política.”

Como não conseguiu ser bailarina, Nadine Gordimer decidiu ser jornalista, depois de ter lido “Scoop” (publicado no Brasil como “Furo!”), de Evelyn Wau­ghan. Em 1949, aos 26 anos, publicou um livro de contos, na África do Sul, e começou a escrever contos para a prestigiosa “New Yorker”. Um editor da Simon and Schuster interessou-se por sua prosa ao ler um conto na revista norte-americana.

Busca-se às vezes, na prosa de Nadine Gordimer, um óbvio engajamento político, uma defesa quase panfletária dos negros sul-africanos e uma crítica contundente do Apartheid. Há certo engajamento e a crítica é concreta, mas a autora escapa ao engajamento típico de escritores de esquerda que estão a serviço de partidos comunistas e socialistas. “Na minha literatura, a política transparece de uma maneira didática muito raramente. […] A verdadeira influência da política na minha literatura é a sua influência nas pessoas.” A política está presente em sua literatura, é um dos alicerces, mas não é a casa inteira. Porque a política é apenas uma faceta da vida de um indivíduo. A vida é mais rica e diversificada. Mas na África do Sul, de fato, dadas as condições políticas e humanas radicalizadas, envolver-se com a política, não raro subordinando a literatura, era, até certo período, inescapável. Talvez ainda seja, porque os efeitos do Apartheid não desapareceram inteiramente. No romance “Desonra”, J. M. Coetzee sinaliza que mesmo um escritor possivelmente mais refinado — mais literário, digamos — não escapa aos tentáculos de aço da política.

“A Filha de Burger”, para a autora, “é um livro sobre engajamento. O engajamento não é apenas uma coisa política. É parte de todo o problema ontológico da vida. […] Aquilo que um escritor faz é tentar compreender a vida. Penso que isso é o que a literatura é. […] É procurar esse fio de ordem e lógica na desordem, e o caráter de incrível desperdício e maravilhosa prodigalidade da vida”. O romance foi censurado pelo governo do Apartheid.

Por morar na África do Sul, por ter nascido no país, a política ampliou os horizontes da literatura e do indivíduo Nadine Gordimer. A autora de “O Melhor Tempo É o Presente” diz que a escritora Eudora Welty, que considera como “a maior contista norte-americana”, “se tivesse vivido” no país de Nelson Mandela “poderia ter voltado” os “dons incríveis que possuía mais para fora — poderia ter escrito mais, poderia ter atacado assuntos mais abrangentes. Eu hesito em dizer isso, porque o que ela fez fê-lo de modo maravilhoso. Mas o fato é que não escreveu muito; não creio que tenha chegado a desenvolver integralmente seus dons como romancista. Não foi obrigada pelas circunstâncias a ajustar contas com alguma coisa diferente”. O que a sul-africana está a insinuar, com a devida delicadeza, é que, apesar da literatura apurada, há um certo grau de alienação político-social na prosa de Eudora Welty. Um dos motivos é a estabilidade política — ao menos a interna — dos Estados Unidos.

A perspicaz entrevistadora inquire se o mesmo ocorre com a escritora britânica Virginia Woolf. Nadine Gordimer diz que não. “Porque Virginia Woolf se ampliou na outra direção. Realmente se concentrou por inteiro naquele envelope transparente que tinha descoberto para si. Há duas maneiras de amarrar a experiência, que é o ato de escrever afinal de contas. Escrever é tentar entender a vida. Você trabalha a sua vida inteira e talvez tenha conseguido entender um pedaço bem pequenininho. Virginia Woolf fez isso de forma incomparável. E a complexidade das suas relações humanas, a economia com que conseguiu retratá-las.” Noutras palavras, a inglesa não era uma autora engajada, mas tinha uma compreensão aguda do funcionamento da sociedade, com suas implicações políticas. Nadine Gordimer não diz, mas Virginia Woolf participava de um círculo de intelectuais e escritores (Blooms­bury), ao qual pertencia John Maynard Keynes, o mais importante economista do século 20, que discutia — além de literatura — política, economia, a sociedade.

Ao contrário dos autores que se consideram gênios desde os primeiros livros, Nadine Gordimer admite que seus romances iniciais eram fracos. “Foi somente com ‘O Falecido Mundo Burguês’, publicado em 1966, que comecei a desenvolver uma musculatura narrativa. Daí em diante, minha luta tem sido não perder a sensibilidade aguda — quer dizer, a agudeza de captar nuances de comportamento e casá-las com sucesso a um talento narrativo.”