Poucos intelectuais brasileiros dialogam com a cultura dos países latino-americanos. Um deles era Sergio Miceli, que morreu na sexta-feira, 12, aos 80 anos, de um câncer no fígado.

Professor titular da Universidade de São Paulo e diretor-presidente de sua editora, a Edusp, o sociólogo e ensaísta Sergio Miceli escreveu sobre a literatura argentina e, inclusive, sobre o artista plástico Xul Solar.

Sergio Miceli capa de Sonhos da Periferia 1

A crítica de Sergio Miceli era dura com aqueles escritores que supostamente tinham menos preocupações com o registro social direto e posicionado. Por isso exibe uma certa falta de empatia por Jorge Luis Borges, Bioy Casares e Victoria Ocampo e um certo entusiasmo pela poeta Alfonsina Storni e pelo prosador Horacio Quiroga (que, nascido no Uruguai, passou parte de sua vida na Argentina).

Sergio Miceli faz quase a defesa de uma literatura nos moldes do realismo socialista? De maneira alguma. A seriedade do que diz pode ser conferida no livro “Sonhos da Periferia — Inteligência Argentina e Mecenato Privado” (Todavia, 183 páginas).

Sergio Miceli capa de Vanguardas em retrocesso 2

A releitura que Sergio Miceli faz tanto de Alfonsina Storni quanto de Horacio Quiroga, escritores que se suicidaram, é crucial porque valoriza suas obras e as recoloca no centro da cultura latino-americana. Quase os transforma em sociólogos? Não. Mostra que ao registro estético de ambos não escapava a vida das pessoas, notadamente dos pobres, e a denúncia das desigualdades sociais.

Os obituários de Sergio Miceli publicanos pela mídia também não mencionam outro de seus livros importantes: “Vanguardas em Retrocesso — Ensaios de História Social e Intelectual do Modernismo Latino-Americano” (Companhia das Letras, 217 páginas). O pesquisador estuda, entre outros, Jorge Luis Borges, Mário de Andrade, os pintores Lasar Segall e Xul Solar e Florestan Fernandes e Gino Germani, “os inventores da sociologia ‘científica’ sul-americana”.

Sergio Miceli capa de Intelectuais 1

Num livro mais recente, “Lira Mensageira” (Todavia, 264), Sergio Miceli estudou o poeta Carlos Drummond de Andrade e seus contemporâneos. O subtítulo da obra é “Drummond e o Grupo Modernista Mineiro”. (Drummond, sabemos, é “deus” — os demais, apóstolos, no máximo.)

A obra de Sergio Miceli que provocou mais debate — inclusive no prefácio do sociólogo e crítico literário Antonio Candido — é, sem dúvida, “Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil — 1920-1945”.

Sergio Miceli capa de Intelectuais 1

A subordinação dos intelectuais ao poder, com seus discursos por vezes enviesados — a partir de uma “defesa” dos interesses da nação —, é descrita com rigor e sem meias palavras. Sua crítica é contundente, corrosiva.

Formado pela PUC-Rio, Sergio Miceli era mestre pela USP. Em seguida, fez doutorado pela USP e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales. Na França, foi orientado pelo sociólogo Pierre Bourdieu.

Sergio Miceli contribuiu para divulgar a obra de Pierre Bourdieu no Brasil. Sua morte é uma grande perda para a cultura brasileira e latino-americana.