O embate político não deve desconsiderar a verdade e é grave quando quem distorce fatos é um presidente da República

O Partido Comunista do Brasil teve como modelos a União Soviética de Stálin, a Albânia de Enver Hoxha e a China de Mao Tsé-tung (na falta de novas referências, parece ter se reaproximado dos comunistas chineses). O PC do B foi criado, no início da década de 1960, a partir de uma divisão do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Depois do golpe civil-militar de 1964, o partido começou os preparativos para a guerrilha, a partir do campo, e instalou militantes no Norte de Goiás (hoje Tocantins) e no Sul do Pará. Os comunistas queriam tomar o poder a partir do campo — o que caracterizava sua linha maoísta. Entre 1966 e 1972, montaram suas bases guerrilheiras com certa tranquilidade, até serem descobertos pelos militares. De 1972 a 1974, as operações do Exército prenderam e mataram vários guerrilheiros. Alguns foram torturados e mortos quando não ofereciam nenhum perigo aos seus captores — o que caracteriza assassinato. A ordem para matar presos era da cúpula do governo militar e Curió e demais militares cumpriam as ordens.

Miriam Leitão e Jair Bolsonaro: a primeira faz críticas consequentes e o segundo distorce fatos | Fotos: Reproduções

O que queria o PC do B na região do Araguaia e para o Brasil? Os dois lados que lutaram na região não propugnavam pela democracia. Os militares queriam manter a ditadura instalada em 1964 (estava com 8 anos no início da guerrilha). Os comunistas, se vencessem, instaurariam a ditadura do proletariado — que não é democrática. Comumente se pensa que a esquerda armada batalhava pela retomada da democracia — o que não é fato comprovável. Em 1964 e 1985, o partido que efetivamente militou pela reinstalação da democracia no país foi o MDB de Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Francisco Pinto, Henrique Santillo, José Richa, Franco Montoro. Tal luta, embora importante, porque democrática, é, espantosamente, menos realçada do que a luta guerrilheira.

Inquirido por pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas — o longo depoimento resultou num livro excepcional — sobre a razão de ter trabalhado para “matar” a ditadura, o presidente Ernesto Geisel, homem íntegro e capaz (mas ditador, e não há ditadura positiva), não excedeu na linguagem. Disse que o motivo era simples: a ditadura havia se tornado uma bagunça. Similar, ou quiçá pior, aos tempos do poder dos civis. A democracia, porque a sociedade é fragmentada, com interesses diferentes e divergentes, parece um caos, mas não o é. O que parece caos, com o debate aberto — e, portanto, decisões demoradas —, é, na verdade, a essência da democracia. O caos é, na verdade, o primado da liberdade.

Hoje, a partir do que se ouve do presidente Jair Bolsonaro, fica-se com a impressão de que os militares, dado o tempo da Guerra Fria, quiseram, com o golpe de 1964, unicamente livrar o país do comunismo. O problema reside no fato de que o presidente João Goulart não era comunista — no máximo, era nacionalista — e não pretendia implantar nenhuma República Sindicalista no país. Fora as correntes mais radicais, os comunistas não subordinavam o líder do PTB — antes subordinavam-se ao seu poder. Há a possibilidade de que os militares que contribuíram para “entregar” o poder ao presidente Getúlio Vargas, com a Revolução de 1930, decidiram, aproveitando-se da fragilidade do governo de Jango e das facilidades proporcionadas pelo anticomunismo da Guerra Fria, pelo golpe de 1964. Sem intermediários — como Getúlio Vargas. O “esquerdismo” de Jango Goulart era mais desculpa, uma questão instrumental, do que motivo real para sua derrubada. Os militares queriam o poder e, sim, não para repassá-lo de imediato aos civis.

A esquerda — a Ação Libertadora Nacional (ALN) e o PC do B, entre outros —acreditava que a ditadura militar podia ser derrotada. Podia? Quem sabe. Mas não o foi. Os guerrilheiros — como os líderes Carlos Marighella, da ALN, e João Amazonas, do PC do B — lutaram na cidade e no campo, mas não chegaram a ameaçar o poderio dos militares. Na realidade, o confronto armado revitalizou a linha dura e radicalizou, à direita, os governos dos generais Costa e Silva e Emilio Médici.

Miriam Leitão e a democracia

A jornalista Miriam Leitão, como militante do PC do B, queria a democracia em 1972? Não. Aos 19 anos, estudante universitária, era uma apóstola da ditadura do proletariado. Se não fosse, não poderia militar no partido. Este é um fato incontestável. Mas derivar daí outras questões, como faz o presidente Jair Bolsonaro — a quem falta compostura, o mínimo que se exige de um gestor nacional (que, quando se torna ideólogo, portanto pregador de uma linha justa, deixa de trabalhar para todos e perde tempo com questiúnculas) —, é um equívoco.

Jair Bolsonaro, que não parece bem informado sobre a história recente — deveria ler pelo menos os cinco volumes da coleção Ilusões Armadas, do jornalista Elio Gaspari —, ou a usa para combater adversários reais e imaginários, equivoca-se, por exemplo, ao sugerir que Miriam Leitão, quando foi presa em 1972, estava se preparando para participar da Guerrilha do Araguaia. “Não estava indo para a guerrilha do Araguaia. Nunca fiz qualquer ação armada”, assinala a jornalista. Ao ser presa, estava indo para a praia. Seu depoimento é crível, porque nem todos que militavam no PC do B foram (ou queriam ir) para o Araguaia. O partido não tinha, entre 1966 e 1972, apenas cem militantes. Entre Goiás e o Pará, nas batalhas de 1972 a 1974, o partido não contou com a participação de cem guerrilheiros. Militares como o vice-presidente Hamilton Mourão e o ministro Augusto Heleno — generais qualificados e bem informados — deveriam, se possível, sugerir que o presidente não distorcesse a história dos outros e mesmo a história dos militares.

Jair Bolsonaro e Augusto Heleno: o general radicalizou recentemente, mas representa um poder moderado ao lado do presidente | Foto: Reprodução

As evidências de que Miriam Leitão foi torturada — estava grávida de sete meses — são fortes e nunca desmentidas por militares qualificados. Ao prestar depoimento à Primeira Auditoria da Aeronáutica, ao ser julgada, a jornalista, então estudante, contou o que se fazia no governo de Médici, e não nos porões. “Narrei a tortura aos militares e ao juiz auditor, que fez constar nos autos um trecho do relato. Fui absolvida (das acusações) em todas as instâncias”, conta a profissional. Vale frisar: os militares, ao julgarem Miriam Leitão, a absolveram. Por que, então, condená-la, 46 anos depois, com o objetivo de cristalizá-lo, digamos assim, como uma espécie de “comunista disfarçada”? Detalhe: apesar de ter direito, não pediu indenização ao governo federal.

O que Miriam Leitão é hoje? Uma notável jornalista de economia (a melhor da televisão), que brilha tanto no jornal escrito quanto na televisão, sempre de maneira consequente e bem informada. Permanece de esquerda? É possível. Vejo-a, porém, como democrata — o que, por certo, não agrada quem tem uma cabeça autoritária.

Não há dúvida de que Jair Bolsonaro — como o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump — é de direita, mas, apesar do discurso radicalizado, não tem se comportado, na prática, como não-democrata. Mas suas contrafações beiram o combate antidemocrático — o que não pode ser confundido com o governo, que, insista-se, permanece no campo democrático. Militares como Eduardo Villas Bôas (eis um grande homem), Hamilton Mourão e Augusto Heleno — sua radicalização recente, em nível de discurso, pode até agradar o bolsonarismo, mas não condiz com o que ele é de fato, um democrata — são realistas absolutos e, ao modo deles, com discrição, contribuem para “puxar” o presidente para o campo democrático.

Hamilton Mourão, vice-presidente, e Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército: generais que são democratas e procuram não exceder no discurso | Foto: Reprodução

Há quem acredite que Jair Bolsonaro é “bobo”, e é preciso dizer que bobo é quem pensa assim. O presidente pode até ser inculto — não fala bem, por exemplo —, mas é inteligente e perspicaz (sua vitória eleitoral significa que percebeu uma oportunidade única e a aproveitou). Ao criticar Miriam Leitão, uma figura exponencial do establishment da Rede Globo e das comunicações do país, está sugerindo que nada teme e reforçando preconceitos, típicos das teorias conspiratórias, contra jornalistas, jornais e emissoras de televisão. Miriam Leitão, portanto, é o alvo imediato, mas integra um alvo maior. A Globo? Não só, e sim, sobretudo, a liberdade de expressão dos que pensam diferente e, por isso, contribuem para impedir, na prática ou teoricamente, um governo que, se a sociedade não questionar, poderia caminhar da direita para a extrema direita. A presença ativa de Rodrigo Maia, como presidente da Câmara dos Deputados, tem contribuído, de alguma maneira, para “enquadrar” o governo de Jair Bolsonaro nos marcos da democracia. A imprensa faz o mesmo e colabora para impedir aventuras antidemocráticas, como a de 1964. Diga-se que generais como Eduardo Villas Bôas, Hamilton Mourão e Augusto Heleno são democratas e sabem que, com o fim das ditaduras, que às vezes são impulsionadas por não militares, os civis safam-se, como se todos tivessem sido vítimas, e deixam o desgaste, a imagem de brutamontes, unicamente para os homens de farda.

O que se pede a Jair Bolsonaro é que se preocupe menos com a ideologização da política — uma maneira de manter o apoio dos que já o apoiam, portanto a tática é infrutífera — e trabalhe mais para a retomada do crescimento da economia. A maioria da população não quer e não se interessa pelas guerras ideológicas-culturais, pois está mais interessada em conquistar ou manter empregos. Unificar a militância, a partir de ataques a jornalistas, não colabora para melhorar o país. E, para piorar, contribui para reforçar a imagem do presidente como antidemocrata, o que ele, até agora, não é. O pior de um político é quando ele mesmo fornece as armas àqueles que o combatem.