Melhor editorial “da” Folha de S. Paulo sobre prisão de Bolsonaro não foi escrito por sua equipe, e sim pelo jurista Lenio Streck

09 agosto 2025 às 21h00

COMPARTILHAR
A “Folha de S. Paulo” publicou um editorial que parece uma defesa da não-prisão de Jair Bolsonaro. Mas não é nada disso. É uma defesa da democracia. Porque a democracia abre portas até para os que não são democratas se defenderem e a atacarem. A democracia, inclusiva e não exclusiva, é para todos. Beneficia, portanto, até ditadores e simulacros de ditadores, como o ex-presidente da República.
Mas o melhor “editorial” da “Folha de S. Paulo” não foi escrito por nenhum jornalista de sua equipe, e sim pelo jurista, professor e advogado Lenio Streck, uma das melhores cabeças do Direito no Brasil.
Na verdade, “A prisão domiciliar de Jair Bolsonaro é correta? Sim” não é um editorial da “Folha”. Trata-se de um artigo de Lenio Streck. Mas é muito melhor do que o do jornal. Por isso, menciono suas ideias, de maneira breve.
De cara, Lenio Streck diz que “a liberdade não é ilimitada”.

Frise-se, e o jurista não trata do assunto, que as elites alemãs “brincaram” com Adolf Hitler, do partido Nazista, certamente por acreditar que a democracia seria capaz de contê-lo. Não foi. O ditador chegou a ser preso, quando ainda não havia se tornado ditador, mas, libertado pela democracia — pelo império da lei —, assumiu o cargo de chanceler em 1933.
Deu no que deu: Hitler “revogou” a democracia e implantou uma das ditaduras mais implacáveis da história. Mandou prender e matar adversários políticos: comunistas, socialistas, socialdemocratas, políticos de centro, religiosos. Enfim, todos aqueles que discordavam dele, minimamente que fosse. Adiante, autorizou a matança de 6 milhões de judeus em campos de extermínio e concentração (e também fora deles).
A democracia deu garrida a Hitler, que a “matou”. Os democratas confiam demais na democracia, na abertura para todos; os ditadores confiam de menos, quer dizer, nada. Porque é uma inimiga de seus projetos autoritários ou totalitários.

Retomemos o que afirma, com percuciência, Lenio Streck. “Depois de coagir com Eduardo [Bolsonaro], inclusive com apoio financeiro, [Jair Bolsonaro] teve contra si a decisão de usar tornozeleira eletrônica e outras medidas substitutivas de prisão. Já saiu, então, no lucro”, sublinha o jurista.
A prisão domiciliar de Jair Bolsonaro “foi referendada pelo colegiado da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal”. Em suma, o ex-presidente não está preso tão-somente por uma decisão do ministro Alexandre de Moraes.
“Pode-se dizer que o ministro Alexandre de Moraes coloca a prisão preventiva [Lenio Streck não diz, mas a Polícia Federal havia pedido a prisão preventiva] em segundo plano, preferindo apostar em medidas menos graves — por isso, a prisão domiciliar”, assinala o jurista.

Então, Alexandre de Moraes agiu, ao contrário do que sugerem as redes sociais bolsonaristas e mesmo o editorial da “Folha de S. Paulo”, de maneira moderada — e cumprindo a lei, de maneira integral. Quem descumpriu a lei, isto sim, foi Jair Bolsonaro.
“Bolsonaro já está na terceira chance: primeiro, o passaporte apreendido; segundo, a tornozeleira eletrônica; e, terceiro, a prisão domiciliar em sua confortável residência em Brasília. Livrou-se da preventiva”, postula Lenio Streck.
O jurista poderia ter acrescentado: as chances para Jair Bolsonaro, para se moderar e acatar a democracia — a lei —, foram dadas. Mas o líder do PL preferiu renegá-las, não em nome da democracia, e sim para criar confusão política e tentar obter anistia para seus atos golpistas.
Jurista diz que Alexandre de Moraes foi “brando”
Para evitar a prisão preventiva, o Supremo escalonou o controle em relação a Jair Bolsonaro, diz Lenio Streck: “Sobre o descumprimento da cautelar que demandou esse maior rigor, dúvida não há: as medidas cautelares impostas a Bolsonaro previam a proibição de utilização de redes sociais, inclusive por intermédio de terceiros, e a impossibilidade de sair de casa aos finais de semana. O que ele fez e o que aconteceu? Burlou a decisão, como se não houvesse proibição”.
A “Folha de S. Paulo”, quiçá numa lembrança dos tempos em que apoiou a ditadura civil-militar, de maneira entusiasmada, “advoga” pró-Jair Bolsonaro: “Moraes errou ao pretender silenciar Bolsonaro numa ordenação kafkiana, impossível de cumprir. Moraes erra ao mandar prender o ex-presidente por ter se comunicado com apoiadores em atos organizados pela direita”.
Com razão, Lenio Streck formula de maneira inteiramente diferente: “O corriqueiro seria a imposição de prisão preventiva a Bolsonaro”.
“Na ‘letra da lei’, seria isso. No caso, Moraes foi brando, expandindo as hipóteses de cabimento de prisão domiciliar, nas quais, olhando bem os artigos 317 e 318 e 319 do Código de Processo Penal, a situação de Jair nem se encaixa”, leciona Lenio Streck.
O jurista pergunta: “Alguém duvida que a democracia esteja sob ataque interno e externo?” E responde: “Os insurrectos querem, em nome do Direito, burlá-lo. Ora, direito de defesa não é direito de golpear as instituições. Metaforicamente: liberdade não é poder esbofetear o juiz, como fez o filho de Henrique 4º, na peça de Shakespeare. Só que, ali, o juiz prendeu o filho do rei”.
Lenio Streck insiste: “A situação é grave. Em nome da democracia não dá para promover a sua extinção. Nenhum democrata comete haraquiri. Com seus atos, os Bolsonaro querem se beneficiar da própria torpeza, colocando a culpa na vítima. Aliás, querem acabar com a vítima”.
Diferentemente da “Folha de S. Paulo”, Lenio Streck sabe: políticos com vocação para ditador arrombam portas abertas; democratas pedem licença — aos eleitores, aos cidadãos — para “entrar”. Trata-se de uma diferença crucial.