Médicos receitam Juxtapid, que não combate colesterol alto, e governo banca a conta milionária

25 junho 2016 às 09h33

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Pelo menos 30% dos pacientes não buscam os medicamentos que a Justiça obriga o Estado a comprar

“Os falsos doentes de R$ 9,5 milhões”, reportagem de Cristiane Segatto, da revista “Época”, mostra que a crise da saúde não tem a ver apenas com a escassez de recursos. Assim como há problemas com UTIs em Goiânia — num processo corruptivo e de rara sordidez que envolve médicos, enfermeiros e bombeiros (a cobertura dos fatos pelo Jornal Opção tem sido ampla e, ao mesmo tempo, cuidadosa) —, há a aquisição nada honesta de às medicamentos às vezes desnecessários e caríssimos.
“O volume crescente de ações judiciais para fornecimento de medicamentos de alto custo (um fenômeno conhecido como judicialização) desorganiza o planejamento orçamentário das secretarias de Saúde nas três esferas de poder. É um problema para a União, os Estados e, principalmente, para os pequenos municípios”, anota Cristiane Segatto. O governo de Goiás tende a gastar cerca de 100 milhões de reais com medicamentos de alto custo em 2016.
Um médico de uma cidade do interior de São Paulo, o cardiologista José Eduardo Guimarães, e outros especialistas receitam Juxtapid (lomitapida) para alguns pacientes. O funcionário do laboratório, baseado na antessala de Guimarães, colhia assinaturas de pacientes com o objetivo de processar o governo. As pessoas nem sabiam que estavam processando o poder público.
“Cada cápsula de Juxtapid, da empresa americana Aererion Pharmaceuticals, custa cerca de US$ 1.000 por dia. São mais de R$ 1 milhão por paciente”, afirma a repórter. Um médico receitou Juxtapid, como redutor de colesterol, para Gaspar Landim dos Reis. Este, sem saber, “recorreu” à Justiça, que mandou o governo de São Paulo entregar-lhe o medicamento. Ele preferiu não tomá-lo, mas o Estado gastou 9,5 milhões de reais bancando seu “tratamento”.
Aparecida de Fátima Souza e sua filha, Fernanda de Oliveira Souza, tomaram o Juxtapid por quatro meses — com um custo de 686 mil reais — e não notaram efeito positivo algum. O delegado de polícia Fernando Bardi afirma que “houve relatos de náuseas, dores de cabeça e problemas hepáticos. Um dos pacientes sofreu paralisia temporária de um dos braços”. As duas mulheres “processaram” o Estado, mas não foram informadas sobre isto.
Há uma questão grave: “O Juxtapid não se destina a combater o colesterol alto. Ele foi aprovado nos Estados Unidos apenas para uso nos raros casos de uma doença genética chamada de hipercolesterolemia familiar homozigótica. Esse distúrbio acomete cerca de uma pessoa a cada 1 milhão, segundo a Organização Mundial de Saúde”. O médico Marcelo Bertolami, diretor da Divisão Científica do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, é peremptório: “Em 40 anos de formado, vi meia dúzia de casos desse tipo”. Médicos relataram à revista que “o risco de cirrose e insuficiência hepática é elevado demais para que o Juxtapid seja visto como uma opção segura para qualquer paciente em luta contra o colesterol alto”.
Acatando decisão judicial, o governo de São Paulo gasta 1 bilhão de reais por ano com medicamentos. Porém, “em cerca de 30% dos casos, os medicamentos fornecidos por ordem judicial não são retirados pelos pacientes”. A advogada Lenir Santos, secretária de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde, diz que “o caso Juxtapid demonstra que os juízes estão sendo manipulados”. O Ministério da Saúde “firmou uma parceria com o Conselho Nacional de Justiça. O objetivo é criar núcleos de apoio técnico formados por profissionais de saúde de universidades públicas. Eles emitirão pareceres sobre as drogas requisitadas, com base nas melhores evidências científicas”, reporta “Época”.
Treze médicos e representantes da Aegerion devem ser indiciados pela Operação Asclépio.
A reportagem de “Época”, de excelente qualidade, tem um problema, digamos, editorial. As fotos dos denunciados não são publicadas, só as das vítimas, a de um juiz e a de um médico que critica o uso desordenado do Juxtapid. Quem folheia a revista rapidamente pensa que estão envolvidos em algum crime.