Marcelo Rezende e sua morte estoica dizem alguma coisa sobre os que vivem

23 setembro 2017 às 12h43

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A exposição de sua dor, por meio de vídeos, chocou parte do público. Porque a morte “precisa” ser mantida a distância, como uma inimiga oculta

O jornalista Marcelo Rezende morreu, na semana passada, aos 65 anos. Era relativamente jovem. Mas, em pouco tempo, o câncer, que começou no pâncreas, o devastou. Não há saída, até agora, para o câncer de pâncreas. Mas recomenda-se tratamento quimioterápico (eventualmente, passa-se por uma cirurgia, com o objetivo de retirar órgãos inteiros, como um rim, o baço e, às vezes, um pedaço do pâncreas). Jornalista experimentado, tendo passado pela TV Globo, nos últimos anos esteve na TV Record, no telejornal “Cidade Alerta” — no qual fazia um jornalismo sensacionalista que não é do meu agrado (não aprecio a “técnica” de se produzir vilões para a sociedade odiar e se purgar) —, e, mesmo doente, querendo viver (são raras as pessoas que querem morrer, exceto os suicidas contumazes), deve ter estudado minimamente o seu caso.
Se o fez, com certo critério, sabia que não tinha escapatória. O câncer no pâncreas e no fígado era um mau sinal. Por isso, certamente, decidiu abandonar o tratamento quimioterápico, optando por terapias alternativas e pelo “medicamento” para as causas impossíveis, Deus e os santos. O que precisava, sabia o homem Marcelo Rezende, era mesmo de conforto, do carinho de sua namorada, dos filhos e dos fãs — não da “violência” do tratamento formulado pela ciência (eficaz em determinados casos). Quando gravava e divulgava vídeos, que iam mostrando o quadro de deterioração física, Marcelo Rezende talvez estivesse sugerindo: “Vivi mais um pouco. Veja”. Cada dia vivido, para o doente, é uma larga vitória.
Como o câncer é uma doença que me interessa, pois alguns parentes tiveram de enfrentá-la (e eu, pessoalmente, a temo, admito) — avó materna, Margarida (morreu no ano em que nasci, em 1961), pai, Raul de França Belém, tia Josefa-Zefinha Fagundes (fumava muito), duas irmãs, Eliana (se matou possivelmente pelo receio de passar por sofrimento semelhante ao do pai; era uma garota bonita, inteligente e espirituosa, que havia “vencido” sob o capitalismo selvagem para imigrantes na terra do presidente Donald Trump), Erika (em fase de remissão), e tio, Nelito Fagundes Furtado (um guerreiro, que, com quase 88 anos, está derrotando a doença e jamais se entrega). Por isso acompanhei os vídeos e declarações de Marcelo Rezende e anotei alguns comentários divulgados nas redes sociais.
As opiniões são basicamente de três ordens. A maioria dizia torcer pela sobrevivência do jornalista e mencionava Deus. “Deus pode tudo” e “Deus está no comando” — diziam os internautas, consternados e, até, confiantes. O grupo dos xingadores era menor, mas atuante. Um pastor da Igreja Mundial, Valdemiro Santiago, sugeriu que a doença do apresentador da Record — rede que pertence ao grupo dirigido pelo bispo Edir Macedo, da Igreja Universal — era “castigo divino”. Alguns seguiram pela mesma trilha. Havia um terceiro grupo, que não defendia nem xingava o jornalista. Dizia apenas que não deveria divulgar os vídeos e que as imagens e suas palavras eram quase um horror (não usavam a palavra, mas o sentido era evidente). Era como se um morto estivesse tentando ficar vivo. Algo assim. Por que a morte, a proximidade dela, parece nos incomodar tanto?
Celebrar a vida, seus prazeres, é necessário. Faz parte do jogo cotidiano. Precisamos de ânimo para seguir adiante, mesmo quando deprimidos ou melancólicos, e nada como celebrar a vida com um vinho de qualidade, uma boa refeição e uma conversa agradável com amigos. Mas é provável que, se “incorporamos” a morte — sim, a Velha Senhora, aquela que simulamos carregar uma foice, porque é uma ceifadora — como tema de nossa vida, como parte da vida, da nossa história e da história comum —, talvez provoque menos estranhamento e, até, menor dor. A vida e a morte são nossas irmãs, nosso destino é viver e morrer, mas fica-se com a impressão de que a segunda é nossa inimiga.
O que choca, portanto, nos vídeos de Marcelo Rezende é a proximidade da morte, é como se estivéssemos vendo-a, e precisássemos execrá-la ou afastá-la. O jornalista era um quase-morto a nos incomodar, a dizer que a gente morre e que, ao morrer, sobretudo quando se tem determinadas doenças, fica decrépita, feia, magérrima, os cabelos ficam ralos e, por vezes, brancos. O apresentador da Record, que um dia fora um homem forte e até charmoso, era o nosso espelho, o espelho do (nosso) futuro. Como rejeitamos a morte como Lúcifer foge da cruz, de algum modo, mesmo compadecidos, ficávamos incomodados com as cenas finais de uma vida. Parecia filme de Ingmar Bergman, uma conversa terrível sobre a vida que está se tornando morte, mas sem a sofisticação artística do cineasta sueco. Por isso, os vídeos parecem lamentáveis, quando, na verdade, são apenas humanos.
Para um entendimento amplo do câncer, de sua trajetória — é uma doença antiga —, vale a pena ler o livro “O Imperador de Todos os Males — Uma Biografia do Câncer” (Companhia das Letras, 648 páginas, tradução de Berilo Vargas), de Siddartha Mukherjee. O pesquisador é formado em Biologia por Stanford, em Imunologia por Oxford e em Medicina por Harvard. Especializado em Oncologia, trabalha na Universidade Columbia. Seu livro ganhou o prêmio Pulitzer de 2011 e qualquer leitor atento tem condições de lê-lo. Não é livro para especialistas mas que não abaixa o nível para se tornar legível. Sobretudo, é muito bem escrito. A história do câncer é dolorosa, não há dúvida, mas há vitórias, até grandes vitórias. Graças ao avanço da ciência, o tratamento se tornou mais eficaz, às vezes menos brutal e invasivo. Hoje, apesar das milhões de mortes, milhares sobrevivem. Os serviços de prevenção melhoraram e as pessoas procuram os médicos mais cedo.
Morte de Raul
A seguir, contarei uma história pessoal, dolorosa para mim (ainda hoje). Cabe ao leitor seguir ou parar aqui.
Uma coisa sobre meu pai que, não sei por quê, preciso contar (quiçá ao estilo doloroso de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir). A psicanálise diria que se trata de um incômodo que precisa, posto para fora, ser compartilhado. Uma dor a ser aceita ou, pelo menos, suportada (até que, um dia, o trágico, distante, possa se tornar, digamos, cômico). Num sábado, no início de dezembro de 2011, deixo o trabalho, almoço nas proximidades da sede anterior do Jornal Opção e Candice Marques, minha mulher, sugere que vá pra casa descansar. Uma intuição, sabe-se lá, levou-me a trocar o descanso pela ida ao hospital Renaissance (nome paradoxal para um hospital que trata de pacientes com câncer?), na Rua 9, no Setor Marista, em Goiânia. Meu pai, Raul de França Belém, estava internado lá. Com câncer de pâncreas (a cauda do pâncreas e o baço haviam sido retirados pelo cirurgião Pedreira, do Hospital Amparo, no Setor Bueno), em processo de metástase. A oncologista Geórgia cuidou dele por mais de um ano. Com desvelo e competência.
Meu pai estava deitado, com o rosto coberto por um lençol, e não conversava mais. As pernas e testículos estavam inchados (ao levá-lo para o banho, certa noite, impressionou-me sua fragilidade; e sentia-se envergonhado de sua nudez ante os filhos, eu e Raul de França Belém Filho, o Raulzinho). Era o fim. Minha mãe, Frutuoza-Zinha, parecia esperançosa. A esperança benfazeja da religião, dos que acreditam numa instância superior. Estavam no quarto minha mãe e uma irmã, Eliane. De repente, percebemos que meu pai tentava se sentar e, sem palavras, pedia-nos que o sentasse ao lado de minha mãe. Com cuidado, para não machucá-lo, estava debilitado — com trombose nas pernas —, consegui colocá-lo ao lado de Zinha. Ao perceber que não estava bem, que se tratava de um arroubo — quem sabe, proximidade do estertor (queria se despedir da mulher com quem esteve casado por mais de 50 anos?) —, recoloquei-o na cama, com a ajuda de Eliane. Ele, que não estava bem, piorou. Chamados, enfermeiros e médicos aplicaram injeção e, em seguida, o levaram para a Unidade de Tratamento Intensivo. Deixaram-no entubado.
Na madrugada, ligaram do hospital. Meu pai, aquele que queria viver para conviver mais com os filhos e ler bons livros, jornais e revistas (guardava coleções da revista “Realidade” e a “Veja” desde o número 1), estava morto, aos 74 anos. Fui o primeiro a chegar ao hospital. Seu corpo foi colocado num quartinho — no terreno, mas fora da hospital, ao lado da garagem — dentro de um saco plástico. Ficamos ali, os dois, como se fôssemos mudos. Aos poucos, criei coragem e abri o zíper do plástico. Era mesmo meu pai, que eu nunca imaginara morto (antes do câncer, era um homem saudável, de uma energia que impressionava), mesmo sabendo, desde o início, que seria (e foi) devastado pelo câncer. Seu rosto estava sereno, apesar de levemente contraído, certamente pela entubação.